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Mediocracia tropical

21/04/1998 às 00:00
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A mediocracia ao pé-da-letra significa o Governo dos Medíocres. Porém, conceitualmente, entende-se como a forma de administrar contraproducente, destituída de uma linha de desenvolvimento histórico e de força sociais para a mudança. E ainda apresenta um aspecto, no mínimo curioso, qual seja, o fato de que nela uma crise não é entendida como resultado de contradições latentes que se tornam manifestas, nem como produto de lutas e conflitos entre interesses contrários e contraditórios, nem muito menos como expressão do jogo interno entre a lógica e a contingência da história. Pelo contrário, na mediocracia não se lida com o conceito nem com a realidade da crise, mas com sua imagem e seu fantasma. A crise é interpretada como irrupção súbita e inesperada do irracional, como o caos e o perigo que pede solução redentora: a extirpação.

Os mediocratas laboram no terreno pessoal, discutindo indivíduos, quando, ao contrário, deveriam sulcar no terreno impessoal, discutindo idéias. Estes seres temem a mudança, recuam diante da tentação da utopia, esconjuram-na. Vê-se, pois, a atitude falsa e coacta desses desfibrados, a desconfiança que têm da publicidade, o medo que têm das idéias e o silêncio profundo em que atravessam, como sombras, o cenário da vida. Por isso, a dificuldade em se lutar contra esses entes, pois, são adversários que fogem à publicidade e manobram somente no segredo e no silêncio da cabala, contrariando, inclusive, a essência do regime democrático.

“A atual Constituição é clara. Condena omissões. A omissão é antidemocrática. Chegou-se mesmo a criar a ação de inconstitucionalidade por omissão. Parafraseando Bobbio, a regra da democracia é a ação e a publicidade e não a omissão e o silêncio” (Joaquim Falcão - Prof. de Direito Constitucional da UFRJ- , “O Congresso e a Medida Provisória”, Jornal Folha de São Paulo, 28/06/96, p.03).

As pessoas assim estruturadas são incapazes de conviver na democracia; formam a base para o desenvolvimento das ditaduras e da burocratização. É de se ver, portanto, que com essa gente cabalista e inerte, que se enrosca na obscuridade, não está em xeque apenas a administração pública, mas a própria Democracia.

Individualmente, os mediocratas constituem-se num zero à esquerda escrito a lápis (como alhures disse Balzac, no livro “O Lírio do Vale”), sendo impenetráveis na sua concha ou inçados de espinhos para rechaçar qualquer aproximação verdadeiramente amistosa. Todavia, na busca pela sobrevivência e fortalecimento de sua composição interna, eles entrelaçam-se entre seus pares num mosaico de dimensões aterradoras. Munidos desta horrível catadura, tentam aterrorizar e amedrontar seus adversários. Essa tática chinesa de assustar o inimigo pintando monstros e dragões nas bandeiras e nos escudos não produz efeito no ânimo dos verdadeiros gladiadores do idealismo. Eles também não se deixam vencer pela superstição e não recuam diante de animais sagrados, como o Poder, a Propriedade, a Maquinação, o Proselitismo, que, à modo dos gatos de Cambises, os mediocratas põem na frente do seu exército para deter o passo ao adversário.

Até hoje ninguém melhor descreveu um mediocrata do que Ruy Barbosa ao tecer, jocosa e ferinamente, o perfil de Floriano Peixoto - o “Marechal de Ferro” da nascente República brasileira - dessa forma:

“Há um gênero de ambição inerte e retraída como certos répteis, que se enroscam na obscuridade, à espreita da ocasião que lhes passe ao alcance do bote. Os indivíduos dessa família moral, silenciosos, escorregadios e traiçoeiros, passam às vezes a maior parte da existência quase ignorados, até que a oportunidade fatal os favoreça. Então o instinto originário lhes desperta as faculdades dormentes, a espinha desentorpecida coleia-lhes sob as descargas de um fluido sutil e vêem-se esses preguiçosos, esses flácidos, esses sonolentos desenvolver inesperadamente a distensibilidade, a flexibilidade e a tenacidade das serpentes constritoras” (Ruy Barbosa - descrição de Floriano Peixoto - cit. por Luís Viana Filho, “A Vida de Ruy Barbosa”, p.243).

A descrição acima cai a talho de foice a todos os espíritos medianos que nos rodeiam e que ficam à espreita do momento oportuno para, qual uma serpente, dá o bote fatal. Mas, indiferente ao momento atual, em todo o Brasil, a História nos presenteia com personagens que se encaixam perfeitamente no tipo descrito, como o Chalaça e Rasputin, eminências pardas de D.Pedro I e do Czar russo Nicolau II, respectivamente.

Além de ser um umbrícola (aquele que vive nas sombras, segundo Aurélio), o mediocrata desponta como um sujeito bonzinho, sorridente, popular, enfim, amigo de todos. “Ele chama o interlocutor pelo nome, depois do terceiro encontro suas frases começam com meu amigo, sempre elogia alguma coisa que a pessoa fez recentemente” (Rev. Veja, “Aventuras de um Bode Expiatório” - descrição de PC Farias -, 03.07.96, p.48).

O romancista inglês Oscar Wilde disse outrora, com rara felicidade que: “Todos os bons chapéus são feitos do nada (...). E também a boa reputação. Todo efeito que produzimos nos proporciona um inimigo. Quem quer ser popular, tem que ser uma mediocridade” (“O Retrato de Dorian Grey”, p.153). Portanto, as características do mediocrata são facilmente identificáveis e servem como um Farol de Lesbos para ciceronear-nos no labirinto pérfido e orgânico desse regime.

Ruy Barbosa, num momento de dor e frustração, disse: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” (Ob. cit., p.347).

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Sinto ter de discordar do grande mestre, mas se alguma coisa observei neste pequeno lapso de vida que desfrutei, é quanto são fúteis as nossas tentativas para deprimir, e como sempre vinga a generosidade... Infeliz de quem entre nós não tem outro talento ou outro gosto senão o de abater! A nossa natureza está votada à indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a benevolência ilimitada de todos.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Mediocracia tropical. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1948. Acesso em: 4 nov. 2024.

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