A teoria do valor do desestímulo, de origem norte-americana, baseia-se na aplicação de uma punição exemplar ao agente causador do dano, de forma a inibir a reiteração da conduta danosa. Tal teoria traduz-se pela fixação, além da indenização de natureza compensatória, de outra indenização a título de danos punitivos, vingativos ou exemplares (punitive damages, vindictive damage ou exemplary damages). Para melhor compreensão do tema, deve-se apontar a distinção básica entre as indenizações de caráter compensatório e punitivo. Em síntese, pode-se afirmar que a primeira modalidade busca compensar a parte em razão das perdas e danos sofridos, enquanto a segunda modalidade não está diretamente relacionada a uma perda específica, mas tem um caráter nitidamente punitivo, inibitório e preventivo da repetição de comportamentos abusivos. [01], [02]
Após uma breve distinção entre a indenização por danos compensatórios e por danos punitivos, é interessante se fazer uma breve revisão dos principais julgamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o assunto, principalmente no que concerne a constitucionalidade e a legalidade da fixação de indenização punitiva em valores exorbitantes.
Inicialmente, cumpre tecer algumas considerações sobre o caso Browning-Ferris Industries of Vermont, Inc. v. Kelco Disposal, Inc. (1989). Trata-se de um caso que envolvia a Browning-Ferris Industries (BFI) que dominava o serviço de coleta de lixo na cidade de Burlington, Vermont. O caso teve início quando a BFI começou a adotar uma série de medidas anticoncorrenciais contra a empresa Kelco, com o propósito de retirá-la do mercado de coleta de lixo. [03]
Em 1984, Kelco ajuizou uma pretensão em que alegava violação da Lei antitruste. Quando houve o julgamento da causa, a indústria BFI foi condenada a pagar US$ 51.146,00 (cinqüenta e um mil cento e quarenta e seis dólares) de danos compensatórios e US$ 6.000.000,00 (seis milhões de dólares) de danos punitivos (punitive damages). A BFI apelou da decisão com o argumento que a fixação do valor dos danos punitivos em seis milhões de dólares representava uma multa excessiva, que era vedada pela Constituição dos Estados Unidos. Ao julgar a apelação, o Tribunal local decidiu que os danos punitivos arbitrados não eram excessivos e que não era caso de aplicação da 8ª Emenda à Constituição norte-americana. [04]
Em 1989, ao julgar o mérito do presente caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos firmou o posicionamento de que a 8ª Emenda à Constituição norte-americana [05], que veda a exigência de "fianças exageradas, nem impostas multas excessivas ou penas cruéis ou incomuns", não se aplicava aos casos em que se discutia indenização por danos punitivos. [06]
No que se refere à indenização punitiva, a Suprema Corte dos Estados Unidos voltou a enfrentar o tema no julgamento do caso Pacific Mutual Life Insurance Co. v. Haslip (1991). O caso em análiseteve início quando Haslip ajuizou uma pretensão em desfavor de uma companhia de seguro de saúde, por descumprimento de contrato. No julgamento em primeira instância, a seguradora foi condenada a pagar US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares) a Haslip a título de danos punitivos. [07]
Assim sendo, trata-se de mais um precedente em que se discutia a constitucionalidade das indenizações em valores exorbitantes a título de danos punitivos (punitive damages). Para a melhor compreensão do presente precedente, é importante compreender que, durante os anos 80 e 90, a opinião pública dos Estados Unidos observava com perplexidade os valores arbitrados a título de indenização por danos punitivos, que chegavam até mesmo a quantias superiores a dezenas de milhões de dólares. Dessa forma, a Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou uma série de casos em que se alegava violação da 8ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos ou à 14ª Emenda, que trazia a garantia do devido processo legal. [08]
Ao decidir o mérito do caso Pacific Mutual Life Insurance Co. v. Haslip (1991), a Suprema Corte dos Estados Unidos manteve o posicionamento de que a 8ª Emenda não se aplicava a caso que envolvesse apenas particulares, por força da decisão no caso Browning-Ferris Industries of Vermont, Inc. v. Kelco Disposal, Inc. (1989). No entanto, no que se refere à alegação de violação do devido processo legal, a Corte Suprema firmou o posicionamento de que "o poder de júri de fixar danos punitivos poderia causar resultados extremos e inaceitáveis diante da cláusula do devido processo legal". No entanto, "não se pode desenhar uma linha matemática entre os valores considerados aceitáveis e inaceitáveis de danos punitivos, de acordo com a Constituição". Assim, em cada caso, deverá ser observada a razoabilidade na fixação de valores a título de indenização punitiva. Por fim, no caso em análise, a Corte entendeu que os danos punitivos fixados contra a seguradora eram aceitáveis e razoáveis. [09]
No que tange aos punitive damages, cumpre mencionar o caso TXO Production Corp. v. Alliance Resources Corp. (1993), no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos firmou o entendimento de que a indenização por danos punitivos (punitive damages) arbitrada em um valor 526 (quinhentos e vinte e seis) vezes superior à indenização por danos compensatórios não violava, por si só, a cláusula do devido processo legal. [10]
Dessa forma, pode-se afirmar que o caso Pacific Mutual Life Insurance Co. v. Haslip (1991) e o caso TXO Production Corp. v. Alliance Resources Corp. (1993) decepcionaram, pois a Corte Suprema não estabeleceu limites claros para os valores das indenizações por danos punitivos, o que facilitou a proliferação de processos no Poder Judiciário norte-americano.
Nesse contexto, cita-se o caso paradigmático Liebeck v. Mcdonalds Restaurants (1994), em que uma elevada quantia a título de indenização punitiva (mais de dois milhões de dólares) foi concedida a uma cliente idosa que se queimou com um copo de café comprado na lanchonete Mcdonalds. [11]
Também, no que concerne à indenização punitiva (punitive damages), no ano de 1996, a Suprema Corte dos Estados Unidos voltou a se deparar com o tema no caso BMW of North America, Inc. v. Gore (1996). Os fatos que deram origem ao presente caso tiveram início em 1990, quando Gore comprou um carro novo da marca BMW pelo valor aproximado de US$ 40.750,00 (quarenta mil setecentos e cinqüenta dólares). Ocorre que, algum tempo depois, Gore recebeu a informação de que o carro "novo" havia sido previamente batido e consertado. Inconformada, Gore ajuizou uma pretensão contra a BMW e pediu a quantia de US$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares) por danos compensatórios e punitivos. Em sua defesa, a empresa BMW admitiu que os pequenos danos ocorridos durante o transporte dos novos carros importados não eram informados aos clientes e apenas consertados pela empresa, desde que fossem de pequena monta. [12]
No julgamento de primeira instância, o júri firmou o posicionamento de que a política da empresa BMW de não informar os clientes sobre danos ocorridos nos veículos novos era uma prática evidentemente fraudulenta e de má fé. O júri condenou a BMW a pagar US$ 4.000,00 (quatro mil dólares) de indenização por danos compensatórios e a quantia de US$ 4.000.000,00 (quatro milhões de dólares) de indenização por danos punitivos. Posteriormente, a BMW apelou da decisão e conseguiu a redução da indenização por danos punitivos para a quantia de US$ 2.000.000 (dois milhões de dólares). [13]
Quando o caso BMW of North America, Inc. v. Gore (1996) chegou ao conhecimento da Suprema Corte, firmou-se o entendimento de que "a indenização por danos punitivos em valores excessivos poderia causar uma perda arbitrária da propriedade em violação da cláusula do devido processo legal". Além disso, a Suprema Corte asseverou que os danos punitivos deveriam ser fixados em valores razoáveis, de acordo com a gravidade da conduta do agente causador do dano, a proporção entre os danos compensatórios e punitivos, e por meio da comparação com as penalidades civis e penais aplicadas à conduta danosa. [14]
Posteriormente, não se pode deixar de mencionar o caso State Farm Auto. Ins. v. Campbell (2003), em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os danos punitivos somente poderiam ser baseados nas condutas causadoras do dano e que as Cortes estaduais poderiam rever os valores arbitrados a título de danos punitivos, de acordo com o princípio do devido processo legal. [15]
Já, no ano de 2007, cabe salientar que houve o julgamento do caso Philip Morris USA v. Williams (2007). O caso teve origem quando Williams veio a perder seu marido por causa de um câncer de pulmão relacionado ao consumo de cigarro. Posteriormente, ela ajuizou uma pretensão contra a empresa fabricante de cigarros Philip Morris USA, com a alegação de que os anúncios da empresa eram fraudulentos, pois não informavam todos os riscos potencialmente fatais que o cigarro poderia trazer para a saúde dos fumantes. Em primeira instância, Williams recebeu a indenização de aproximadamente US$ 821.000,00 (oitocentos e vinte e um mil dólares) a título de danos compensatórios e a quantia aproximada de US$ 79.500.000,00 (setenta e nove milhões e quinhentos mil dólares) a título de danos punitivos. Em segunda instância, os valores foram reduzidos para a quantia aproximada de US$ 521.000 (quinhentos e vinte e um mil dólares) e US$ 32.000.000 (trinta e dois milhões de dólares), respectivamente. [16]
Posteriormente, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que o Tribunal local reconsiderasse o valor de danos punitivos. A Suprema Corte entendeu que os danos punitivos não poderiam ser impostos pelas condutas praticadas pelo causador do dano em relação a terceiros, mas que o valor da indenização poderia considerar os danos causados a terceiros para caracterizar o grau de reprovação da conduta do causador do dano. Dessa forma, o caso Philip Morris USA v. Williams (2007) foi importante porque estabeleceu que a cláusula do devido processo legal de 14ª Emenda impedia que os danos punitivos fossem fixados em relação a indivíduos que não estavam envolvidos diretamente na lide. [17]
Por fim, não se pode esquecer o caso Atlantic Sounding Co, Inc. v. Townsend (2009). O caso teve início em 2005 quando Townsend ajuizou uma pretensão em desfavor da empresa Atlantic Sounding Co, Inc., com pedido de danos compensatórios e punitivos,em razão de lesões sofridas quando trabalhava numa embarcação de propriedade da referida empresa. [18]
Posteriormente, alegou-se perante a Suprema Corte dos Estados Unidos se um marinheiro poderia pedir danos punitivos em relação a seu empregador, nos casos em que restasse comprovada a falta de manutenção da embarcação ou, ainda, quando a empresa marítima se recusasse a pagar as despesas médicas relacionadas à recuperação do marinheiro. No mérito, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que os danos punitivos são permitidos para os casos em que há descumprimento da manutenção das embarcações, ou seja, poderiam ser arbitrados em casos que envolvessem a legislação marítima. [19]
Por todo o exposto, sem ter a menor pretensão de se esgotar o tema, percebe-se que a indenização por danos punitivos ou exemplares (punitive ou exemplary damages) gera situações absurdas, conforme observado nos precedentes acima citados, em que as indenizações são fixadas comumente em valores exorbitantes, totalmente dissociados da realidade e do dano sofrido pela vítima. Dessa forma, a indenização por danos punitivos assume um contorno nitidamente vingativo (vindictive damage) e desproporcional, não sendo aconselhável a introdução dessa modalidade de indenização no ordenamento jurídico brasileiro. [20]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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- BARBUTO NETO, Antônio Marzagão. Os danos punitivos do Direito Norte-Americano e sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro.Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/83>. Acesso em: 18 jun. 2011.
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