3. Conclusão
O quadro paradoxal que aqui foi mostrado, constando de um lado a teoria constitucional de valorização do homem, em toda a sua dignidade, e de seu trabalho, e, de outro, a submissão de trabalhadores a regimes de escravidão, no qual as condições de trabalho são humilhantes, desrespeitosas com sua natureza humana e degradantes de sua dignidade, demonstra que o caminho rumo à efetivação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito passa necessariamente pela preocupação em extirpar da sociedade práticas de tratamento cruéis de seres humanos. Assim, além da necessidade de lhes conferir igualdade de respeito e consideração, nada mais relevante que também lhes conceder igualdade de oportunidades.
Indubitavelmente, o sério enfrentamento das questões de superexploração do trabalho humano deve atentar para problemas de ordem estrutural. Muitas vezes se percebe a preocupação tão-somente com a repressão do trabalho escravo. É uníssona a opinião a respeito da necessidade de combater a impunidade, de responsabilizar, seja penal, seja economicamente aqueles que se aproveitam da escravidão. Porém, quando se avança na discussão, quando se parte para a conclusão de que os problemas no meio agrário advêm de um problema de concentração fundiária, aí sim há oscilações.
A bem da verdade, é comum esse tipo de comportamento relacionado a problemas sociais sérios da sociedade brasileira. A inquietação quanto à repressão é freqüentemente maior que aquela direcionada à prevenção. Certamente, o aspecto preventivo demanda muito mais tempo, mais dinheiro, mais planejamento e, principalmente, mais coragem para ser realizado. A questão que se coloca quanto ao trabalho escravo não é simplesmente a de aumentar a capacidade de punição do Estado e os mecanismos de reparação aos trabalhadores. Sem sombra de dúvidas, essas são posturas importantes para o combate dessas práticas e que devem ser efetivamente realizadas, mas jamais são satisfatórias para sua real erradicação. Os problemas brasileiros não podem mais ficar somente na esfera da repressão. É necessário que se assuma uma postura de combate à origem do problema.
Como pudemos verificar, a dinâmica escravagista brasileira está diretamente ligada à maneira como a produção capitalista se desenvolve no país. Dessa sorte, o verdadeiro combate que se deve travar é o de possibilitar que os trabalhadores tenham outras alternativas que não somente a de se submeter a condições de trabalho de superexploração. A problemática da concentração fundiária é, quiçá, o ponto central desta discussão. Porém, como já salientamos, é muito mais simples colocar em destaque o aspecto repressivo.
No Brasil, a terra continua sendo símbolo de riqueza, de poder e de autoridade. Quem tem terra tudo pode. Mesmo porque a principal atuação nesta seara é do Estado. Se nele, em seu Parlamento, estão pessoas diretamente vinculadas ao poder da terra, dificilmente se alcançará um combate às estruturas do trabalho escravo. Não é senão por essa razão que se encontra tanta dificuldade em se aprovar o Projeto de Emenda Constitucional nº 438 – à qual já nos referimos -, relativo ao confisco de terras em que tenha sido encontrada a utilização de mão-de-obra escrava. Partindo-se da evolução da teoria constitucional rumo à efetivação dos direitos humanos, é inegável a afirmação da possibilidade de existência dessa alternativa, ainda mais se considerarmos que há previsão constitucional do confisco para a hipótese de culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243, CF). No entanto, quando se parte para a discussão dessa alternativa para as hipóteses de escravidão, há aqueles que afirmam não mais existir trabalho escravo no Brasil ou então aqueles que estão a esperar a erradicação dessa prática para não mais ser preciso tal alteração constitucional. Enquanto isso, todavia, milhares de trabalhadores brasileiros permanecem sendo vítimas da escravidão pelo capital.
Ademais, ter os olhos voltados para a questão fundiária não implica, por outro lado, cegueira quanto às demais práticas preventivas. O investimento em programas de geração de emprego e renda, de qualificação profissional e de conscientização e educação da população é de suma importância para que se extirpe o regime escravagista no país. Como mencionamos, as principais zonas de aliciamento de trabalhadores coincidem com aquelas em que a miséria e o desemprego são elementos característicos. Se se combate isso, aliado com um programa de incentivo à aquisição de terras e de subsídios aos pequenos agricultores, certamente se dificultará que esses brasileiros sejam envolvidos com a superexploração de seu trabalho.
Não custa destacar, contudo, que as iniciativas repressivas são também muito necessárias, especialmente se estiveram articuladas com a prevenção. Assim, a conscientização de juízes e membros do Ministério Público é necessária para que a impunidade não seja regra no que tange à responsabilização dos envolvidos com o trabalho escravo. As iniciativas acima relacionadas, como a formação da "lista suja", a identificação da cadeia produtiva, a investigação da cadeia dominial são elementos relevantes para desestimular aqueles que se valem desse tipo de mão-de-obra.
Enfim, a persistência do regime de escravidão no país nos desafia a todos a respeito das possibilidades de efetivação das novas premissas paradigmáticas, principalmente as relativas à valorização do trabalho humano e à dignidade. A conscientização da população e das autoridades públicas acerca deste tema vem surtindo efeitos positivos, conforme anteriormente ressaltamos. Contudo, há ainda obstáculos que devemos seguramente transpor, no intuito de que o respeito à condição humana seja efetivamente dirigido e recebido por toda a sociedade brasileira. Enquanto isso, entretanto, não se concretiza, fica-nos mais uma importante reflexão de Martins, que, conquanto escrita em 1986, permanece incomodamente atual:
Num país em que a liberdade da pessoa vale tão pouco, quanto valerá a democracia? Por quanto tempo e para quem? Que democracia pode ser edificada em um país em que milhares de trabalhadores estão reduzidos à condição de escravos, apanham para trabalhar e podem ser vendidos e comprados sem que ninguém moleste os que se aproveitam de seu trabalho? A liberdade que falta a eles falta a todos nós e sua falta contamina e vicia toda a nossa estrutura política (MARTINS, 1986, p. 44).
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Notas
01 AUDI, Patrícia. A escravidão não abolida. In: VELLOSO, Gabriel e FAVA, Marcos Neves (coord.).Trabalho escravo contemporâneo – o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. Págs.74/88.
02 A "lista suja" refere-se a um cadastro oficial de empregadores que utilizam em suas fazendas trabalho escravo. Ela tem sido um instrumento relevante de repressão, já que as empresas que constam dessa lista são impedidos de receber financiamento público e, muitas vezes, privado, além de ter a cadeia produtiva identificada, a fim de que os compradores de seus produtos sejam comunicados que há a marca do trabalho escravo na produção. Esse cadastro oficial é objeto de uma ADIn (3347) apresentada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Destaque-se que, em lista atualizada pelo MTE em janeiro de 2011, constam 220 infratores: https://www.pgt.mpt.gov.br/noticias/noticias-das-prts/atualizada-lista-suja-de-trabalho-escravo.html (notícia divulgada em 03/01/2011 pela Procuradoria Geral do Trabalho).
03 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Disponível em www.oitbrasil.org.br. Data de acesso: 04/10/2006.
04 Exemplo disso foi a condenação em bloco na Vara Federal de Marabá/PA no ano de 2009. Dos 32 casos de trabalho escravo, 27 reús foram condenados. Desses 27, 24 foram julgados culpados pelo crime de redução à condição análoga a de escravo (art. 149. do Código Penal) e outros 3 foram condenados por outras infrações (Disponível em: https://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=5078&Itemid=1. Data de acesso: 11/01/2011).