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Writ of certiorari, arguição de relevância e repercussão geral.

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3 A arguição de relevância da questão federal: o precursor nacional

A Emenda Constitucional n.º 1/69 à Constituição Federal de 1967 procedeu a uma reforma tão intensa à referida constituição que grande parte da doutrina constitucional considerada que, de fato, a referida Emenda Constitucional n.º 1/69 inaugurara uma nova ordem jurídico-constitucional. Um dos pontos objeto de modificação por essa Emenda foi a competência recursal do Supremo Tribunal Federal, prevista no art. 119, parágrafo único da Constituição de 1967:

Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal:

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato do govêrno local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou

d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal.

Parágrafo único. As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, dêste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário. (grifos do autor)

O art. 119, parágrafo único, incluído pela Emenda Constitucional n.º 1/69, permitia ao Supremo Tribunal Federal, através de seu Regimento Interno, limitar o conhecimento de recursos extraordinários interpostos com fundamento no art. 119, III, "a" e "d", de acordo com restrições quanto à natureza ou à espécie da causa, e quanto a seu valor pecuniário.

As hipóteses indicadas no art. 119, parágrafo único (art. 119, III, "a" e "d") referem-se ao recurso extraordinário interposto contra decisão que, em tese, i) contrariou dispositivo da Constituição, ii) negou vigência a tratado ou a lei federal, iii) deu à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal. Nessas situações, a despeito de o recurso extraordinário estar desafiando situações que normalmente ensejariam o cabimento do recurso, o Supremo Tribunal Federal apenas deles conheceria se preenchidos, também, os requisitos estabelecidos em seu Regimento Interno, que deveriam atentar à natureza, à espécie ou ao valor pecuniário da causa.

Importante notar que o art. 119, parágrafo único, na redação da Emenda Constitucional n.º1/69, não fez menção à relevância de questão federal.

Na prática, o constituinte havia delegado ao Pretório Excelso a incumbência de elaborar um filtro recursal para a admissão do recurso extraordinário. No entanto, o que se verificou com a disciplina regimental da arguição de relevância não foi a criação de um filtro recursal, mas exatamente o oposto: argüida a relevância da questão federal, se esta viesse a ser acolhida por quatro, dos onze Ministros, um recurso extraordinário que, em princípio, não seria cabível, poderia, excepcionalmente, vir a ser conhecido [36].

A regulamentação regimental do art. 119, parágrafo único da Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional n.º 1/69, deve ser analisada em dois momentos distintos: um inaugurado com a Emenda Regimental n.º 3/75; e outro com a Emenda Regimental n.º 2/85. Em ambos os momentos a relevância da questão federal e a ofensa à Constituição ensejavam o conhecimento do recurso extraordinário.

3.1 Emenda Regimental n.º 3/75

Embora a autorização constitucional para o Supremo Tribunal Federal editar normas regimentais que tivessem por objeto requisitos de admissibilidade extras do recurso extraordinário seja de 1969, a regulamentação só foi efetuada pelo Tribunal em 1975, mediante a Emenda Regimental n.º 3/75:

RISTF. Redação conferida pela E.R. n.º 3/75.

Art. 308: Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou relevância da questão federal, não caberá recurso extraordinário, a que alude o seu artigo 119, parágrafo único, das decisões proferidas:

I. nos processos por crime ou contravenção a que não sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com eles relacionadas;

II. nos habeas corpus, quando não trancarem a ação penal, não lhe impedirem a instauração ou a renovação, nem declararem a extinção da punibilidade;

III. nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito;

IV. nos litígios decorrentes:

a) de acidente do trabalho;

b) das relações de trabalho mencionadas no artigo 110 da Constituição;

c) da previdência social;

d) da relação estatutária de serviço público, quando não for discutido o direito à constituição ou subsistência da própria relação jurídica fundamental;

V. nas ações possessórias, nas de consignação em pagamento, nas relativas à locação, nos procedimentos sumaríssimos e nos processos cautelares;

VI. nas execuções por título judicial;

VII. sobre extinção do processo, sem julgamento do mérito, quando não obstarem a que o autor intente de novo a ação;

VIII. nas causas cujo valor, declarado na petição inicial, ainda que para efeitos fiscais, ou determinado pelo juiz, se aquele for inexato ou desobediente aos critérios legais, não exceda de 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes as decisões das instâncias ordinárias; e de 50, quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita à instância única. (grifos do autor)

Percebe-se que a referida emenda regimental adotou um critério de exclusão [37], na medida em que elencava os casos nos quais não seria cabível recurso extraordinário, a despeito de se enquadrarem nas situações do art. 119, III, "a" e "d" da Constituição. Ou seja, o Regimento Interno elencou casos que estariam excluídos da apreciação extraordinária.

Entretanto, mesmo que uma situação estivesse enquadrada no critério de exclusão dos incisos do art. 308 do Regimento Interno, a ofensa à Constituição ou a relevância da questão federal permitiam o conhecimento do recurso extraordinário. De logo, duas conclusões são possíveis.

A primeira é que, mesmo figurando dentre as hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal limitou a admissão do recurso extraordinário (incisos do art. 308 do RISTF), sempre que numa situação houvesse alegação de contrariedade à Constituição, o recurso extraordinário seria cabível.

A segunda é que, mesmo sem haver previsão constitucional da "relevância da questão federal", ela foi utilizada no regimento interno (Emenda Regimental n.º 3/75) como critério que ensejaria, sempre, o cabimento do recurso extraordinário.

Apenas com a Emenda Constitucional n.º 7/77 à Constituição Federal de 1967 é que houve alteração na redação do parágrafo único do art. 119, então renumerado para §1°, incluindo no seu final a expressão "relevância da questão federal":

Art. 119. §1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal. (grifos do autor)

Por oportuno, vale salientar que a Emenda Regimental n.º 3/75 não acrescentou qualquer dispositivo no Regimento Interno que viesse a traças os limites do que viria a ser "questão federal relevante", ainda que se utilizando de conceitos abertos e indeterminados.

3.2 Emenda Regimental n.º 2/85

Observe-se a redação conferida pela Emenda Regimental n.º 2/85 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal:

RISTF. Redação conferida pela E.R. n.º 2/85.

Art. 325. Nas hipóteses das alíneas "a" e "d" do inciso III do art. 119 da Constituição Federal, cabe recurso extraordinário:

I. nos casos de ofensa à Constituição Federal;

II. nos casos de divergência com a Súmula do Supremo Tribunal Federal;

III. nos processos por crime a que seja cominada pena de reclusão;

IV. nas revisões criminais dos processos de que trata o inciso anterior;

V. nas ações relativas à nacionalidade e aos direitos políticos;

VI. nos mandados de segurança julgados originariamente por Tribunal Federal ou Estadual, em matéria de mérito;

VII. nas ações populares;

VIII. nas ações relativas ao exercício de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, bem como às garantias da magistratura;

IX. nas ações relativas ao estado das pessoas, em matéria de mérito;

X. nas ações rescisórias, quando julgadas procedentes em questão de direito material;

XI. em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal. (grifos do autor)

A Emenda Regimental n.º 2/85 conferiu nova sistemática na indicação das causas que, segundo o art. 119, III, "a" e "d" da Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional n.º 7/77, seriam passíveis de impugnação via recurso extraordinário. Abandonou-se o critério de exclusão e adotou-se o de inclusão [38], já que não mais se previam no Regimento Interno os casos que não desafiavam o recurso extraordinário, mas tão-somente os casos que o desafiavam.

Em outras palavras, ao invés de elencar os casos em que o recurso extraordinário não seria cabível, o Regimento Interno passou a enumerar, numerus clausus, as hipóteses em que ele seria admitido, independentemente de relevância da questão federal envolvida. Em todas as demais, seria necessário ao recorrente a demonstração de tal relevância, sob pena de se não conhecer do recurso.

Muito embora se tenha alterado a sistemática do filtro recursal de exclusiva para inclusiva, permaneceu intacta a situação anterior segundo a qual sempre que houvesse ofensa à Constituição ou que houvesse uma "questão federal relevante", seria cabível o recurso extraordinário.

Por fim, diferentemente do vazio normativo que havia anteriormente, o Regimento Interno, com a Emenda Regimental 2/85, passou a disciplinar, no art. 327, §1º, o que se deveria entender por "questão federal relevante", da seguinte maneira:

RISTF. Redação conferida pela E.R. n.º 2/85.

Art. 327. §1º. Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal. (grifos do autor)

Destarte, a questão federal seria relevante a depender dos reflexos que causasse na ordem jurídica e, simultaneamente, dos aspectos morais ou econômicos ou políticos ou sociais da causa.

3.3 Inexistência de questão constitucional irrelevante

À época em que existiu a arguição de relevância, dentre as competências do Supremo Tribunal Federal não estavam só a de interpretar a Constituição Federal e a de assegurar sua prevalência perante leis federais, leis locais e tratados. Aquela corte detinha competência para interpretar a legislação federal, resolvendo as divergências de sua interpretação, e a de resolver acerca da validade de lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal.

Dessa maneira, o recurso extraordinário era utilizado não só como instrumento de controle de constitucionalidade, mas também como controle de legalidade. Cabe enfatizar, como demonstrado, que a exigência da relevância da questão era necessária tão-somente para as questões federais, o que, a contrario sensu, permite concluir que todas as questões constitucionais eram, sempre, relevantes [39].

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Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, as competências recursais do Pretório Excelso restaram repartidas entre o Superior Tribunal de Justiça, que passou a ser o guardião e o intérprete da legislação federal, através do recurso especial, e o próprio Supremo Tribunal Federal, que passou a ser o guardião da Constituição, através do recurso extraordinário.

Em suma, a partir de 1988 a arguição de relevância da questão federal perdeu o sentido diante da distribuição de competências suso exposta.

3.4 Aspectos do julgamento da arguição de relevância

A apreciação da relevância de questão federal era apreciada pelo Pretório Excelso em "sessão de Conselho", de caráter secreto, e a decisão que acolhesse ou negasse a relevância estava dispensada de fundamentação [40]. Era exatamente esta a disciplina contida no Regimento Interno, na redação da emenda Regimental n.º 3/75:

RISTF. Redação conferida pela E.R. n.º 3/75.

Art. 308. §4º. A arguição de relevância da questão federal processar-se-á por instrumento, da seguinte forma:

IX – a apreciação em Conselho não comportará pedido de vista, dispensará motivação e será irrecorrível. (grifos do autor)

Para que a arguição de relevância restasse acolhida, era necessária a manifestação positiva de pelo menos quatro Ministros no sentido da existência da relevância, sendo a decisão do Conselho, em qualquer caso, irrecorrível:

RISTF. Redação conferida pela E.R. n.º 2/85.

Art. 328. §5º. No Supremo Tribunal Federal serão observadas as regras seguintes:

VII - Estará acolhida a arguição de relevância se nesse sentido se manifestarem quatro ou mais Ministros, sendo a decisão do Conselho, em qualquer caso, irrecorrível.

Ademais, o acolhimento da arguição de relevância não ensejava, necessariamente, o conhecimento do recurso extraordinário, pois caberia ao relator verificar posteriormente se o recurso atendia aos pressupostos genéricos e específicos de admissibilidade [41].

A semelhança existente entre a arguição de relevância e o writ of certiorarinorte-americano pode ser verificada ante o caráter secreto das sessões em que o critério subjetivo de relevância era apreciado e ante a inexigência de fundamentação dos votos que acolhiam ou não a relevância do caso, haja vista a discricionariedade existente em ambos no que tange ao aspecto da admissibilidade.

Conseqüência imediata dessas semelhanças é a inexistência de direito subjetivo do recorrente à cognição do recurso extraordinário [42], diferentemente do que ocorria com os demais recursos existentes.

A despeito da semelhança existente entre o quorum necessário para se reconhecer a relevância do caso, qual seja, o pronunciamento favorável de quatro Ministros ("regra dos quatro’), deve-se destacar a diferença da composição da Suprema Corte norte-americana e do Supremo Tribunal Federal: neste havia onze Ministros, ao passo que naquele havia nove juízes. Isso, em tese, tornava mais fácil, proporcionalmente, o atingimento, pelo Pretório Excelso, do quorum e o reconhecimento da relevância.

Pelo fato de a arguição de relevância não ter sido aproveitada na Constituição Federal de 1988, seu funcionamento como filtro recursal realmente efetivo (com a E.R. 2/85) foi muito breve, compreendendo o interregno de fevereiro de 1986, quando entrou em vigor a referida emenda, a outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Essa efemeridade, juntamente com a ausência de motivações das decisões e o sigilo das sessões de Conselho, impediu que se fizesse uma sistematização do conceito de relevância adotada pelo Supremo Tribunal Federal naquele período [43].

Alguns dados relativos aos resultados dos treze anos de existência da arguição de relevância, desde a E.R. 3/75 até a promulgação da C.F. de 1988, foram coletados por MARTINS FILHO, in termis:

"Das mais de 30.000 argüições de relevância apreciadas pelo STF durante o período de funcionamento do sistema, o Pretório Excelso não acolheu mais de 5%, sendo que 20% deixaram de ser conhecidas por deficiência de instrumentação e 75% foram rejeitadas. A discricionariedade no processo de seleção, aliada ao reduzidíssimo número de argüições acolhidas, contribuiu para que a classe dos advogados se opusesse ao sistema, esperando contar com maior número de recursos para prosseguir litigando, quando vencidos.

Assim, o sistema funcionou até a promulgação da Constituição Federal de 1988, que terminou com a arguição de relevância pelo simples fato de transferir para o Superior Tribunal de Justiça (criado pela nova Carta Magna) a função de uniformizador da interpretação do direito federal infraconstitucional, a par de prevê-la com a composição de 33 ministros, o que quadruplicava o número de magistrados que, originariamente, apreciavam as questões antes afetas apenas à suprema Corte. Assim, entendeu-se que, diante da divisão funcional de trabalho e da elevação considerável do quadro de ministros, desnecessária se faria a triagem prévia pelo mecanismo da relevância." [44] (grifos do autor)

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Sobre o autor
Antonio Henrique de Amorim Cadete

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade Integrada do Recife - FIR. Procurador Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CADETE, Antonio Henrique Amorim. Writ of certiorari, arguição de relevância e repercussão geral.: Semelhanças e dessemelhanças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2975, 24 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19832. Acesso em: 26 abr. 2024.

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