1. INTRODUÇÃO
Tendo em vista os princípios que regem a Administração Pública, insculpidos na Constituição Federal de 1988, foi com bons olhos que vimos (lamentando eventuais injustiças) a unificação de Quadros de carreira de Oficiais e de Praças da nossa gloriosa Polícia Militar do Estado de São Paulo, realizada por meio da Lei Complementar n. 1.142/2011, publicada no DOE de 23.06.2011 [01].
Conforme reza a Exposição de Motivos n. 022/11-CRH [02], da lavra do Senhor Antonio Ferreira Pinto, digno Secretário da Segurança Pública, a citada unificação "ensejará a isonomia na questão da ascensão funcional, que antes poderia ocorrer com celeridade mais num quadro que noutro e no de Oficiais Femininos, que impossibilitava a nomeação ao cargo de Comandante Geral da Polícia Militar".
Tal fato se deu com o intuito de propiciar oportunidades idênticas de progressão na carreira e tratamento igualitário a homens e mulheres, valorizando o Policial Militar, conforme consta da Mensagem n. 031/2011 do Senhor Governador do Estado, referente ao PLC n. 34/2011 [03], convertido na LC em comento.
A nosso ver, no entanto, referida LC não esgotou o assunto. Para valorizar o Policial Militar, especialmente o Subtenente PM, que há muito anda esquecido, algumas alterações na carreira de Praças ainda precisam ser feitas, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos.
2. DA UNIFICAÇÃO PROMOVIDA PELA LC N. 1.142/2011
De acordo com a mencionada LC, o Quadro de Oficiais de Polícia Feminina (QOPF) e o Quadro de Praças de Polícia Feminina (QPPF) da PM Paulista foram extintos. Concomitante e respectivamente, os Oficiais e Praças vinculados aos referidos Quadros passaram a integrar o Quadro de Oficiais Policiais Militares (QOPM) e o Quadro de Praças Policiais Militares (QPPM).
Em razão disso, atualmente para ser um Policial Militar (masculino ou feminino), o interessado pode escolher entre ingressar na graduação inicial de Soldado PM 2ª classe, para a carreira de Praças (QPPM), ou na graduação de Aluno-Oficial PM, para a carreira de Oficiais (QOPM).
Em qualquer dos casos, porém, além de outros requisitos previstos em editais próprios, o candidato deve ter concluído, no mínimo, o ensino médio ou equivalente e ser submetido ao devido concurso público, por força do que dispõe o art. 37, II, da Constituição Federal.
A título de esclarecimento, a carreira de Praças inicia na graduação de Soldado PM 2ª classe e termina na graduação de Subtenente PM; já a de Oficiais inicia no posto de 2º Tenente PM e termina no posto de Coronel PM.
Para ingressar na carreira de Praças, o interessado deve ser aprovado no Curso Superior de Técnico de Polícia Ostensiva e Preservação da Ordem Pública (antigo Curso de Formação de Soldados); e, para ingressar na carreira de Oficiais, deve ser aprovado no Curso de Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública (antigo Curso de Formação de Oficiais), nos termos do Decreto n. 54.911/2009 [04], que regulamenta a LC n. 1.036/2008.
Registre-se que o Aluno-Oficial e o Aspirante a Oficial fazem parte do Quadro de Praças Especiais de Polícia.
3. DO QAOPM
É importante registrar que as Praças portadoras de diploma de curso superior, com mais de 15 anos de efetivo serviço na Corporação, bem como os Subtenentes e os 1ºs Sargentos PM, com diploma de ensino médio, portadores do Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – CAS (atualmente denominado Curso Superior de Tecnólogo de Polícia Ostensiva e Preservação da Ordem Pública II), podem ingressar no Quadro Auxiliar de Oficiais da Polícia Militar – QAOPM, no qual poderão atingir o posto de Major QAOPM.
Para tanto, além de serem submetidas ao respectivo concurso interno, as Praças devem frequentar o Curso Superior de Tecnólogo de Administração Policial-Militar (antigo Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais de Polícia Militar – CHQAOPM), nos termos do Decreto n. 54.911/2009.
Trata-se, portanto, de uma segunda "porta" de acesso à carreira de Oficiais da Polícia Militar, instituída pela LC n. 419/85 [05].
4. DA LC N. 419/85 DIANTE DA JURISPRUDÊNCIA DO STF
Como visto anteriormente, a carreira de Oficiais do QAOPM foi instituída pela LC n. 419/85, portanto, antes do advento da Constituição Federal de 1988.
Sendo assim, será que a LC em comento foi recepcionada pela Constituição Federal?
Antes de respondermos ao presente questionamento, e para que haja uma melhor reflexão sobre o assunto, vejamos, a seguir, o que diz a ementa referente à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 231-7 [06] – Rio de janeiro, que teve como relator o ilustre Ministro Moreira Alves:
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Ascensão ou acesso, transferência e aproveitamento no tocante a cargos ou empregos públicos.
- O critério do mérito aferível por concurso público de provas ou de provas e títulos é, no atual sistema constitucional, ressalvados os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração, indispensável para cargo ou emprego público isolado ou em carreira. Para o isolado, em qualquer hipótese; para o em carreira, para o ingresso nela, que só se fará na classe inicial e pelo concurso público de provas ou de provas títulos, não o sendo, porém, para os cargos subsequentes que nela se escalonam até o final dela, pois, para estes, a investidura se fará pela forma de provimento que é a ‘promoção’.
Estão, pois, banidas das formas de investidura admitidas pela Constituição a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso, e que não são, por isso mesmo, ínsitas ao sistema de provimento em carreira, ao contrário do que sucede com a promoção, sem a qual obviamente não haverá carreira, mas, sim, uma sucessão ascendente de cargos isolados.
- O inciso II do artigo 37 da Constituição Federal também não permite o ‘aproveitamento’, uma vez que, nesse caso, há igualmente o ingresso em outra carreira sem o concurso exigido pelo mencionado dispositivo.
Ação direta de inconstitucionalidade que se julga procedente para declarar inconstitucionais os artigos 77 e 80 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias do Estado do Rio de Janeiro."
Vejamos, agora, o que diz a ementa relativa à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 248-1 [07] – RJ, que teve como relator o ilustre Ministro Celso de Mello:
"EMENTA: ADIN – CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (ADCT, ARTS. 69 E 74) – PROVIMENTO DERIVADO DE CARGOS PÚBLICOS (TRANSFERÊNCIA E TRANSFORMAÇÃO DE CARGOS) – OFENSA AO POSTULADO DO CONCURSO PÚBLICO – USURPAÇÃO DO PODER DE INICIATIVA CONSTITUCIONALMENTE RESERVADO AO CHEFE DO EXECUTIVO – PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
- Os Estados-membros encontram-se vinculados, em face de explícita previsão constitucional (art. 37, caput), aos princípios que regem a Administração Pública, dentre os quais ressalta como vetor condicionante da atividade estatal, a exigência de observância do postulado do concurso público (art. 37, II).
A partir da Constituição de 1988, a imprescindibilidade do certame público não mais se limita à hipótese singular da primeira investidura em cargos, funções ou empregos públicos, impondo-se às pessoas estatais como regra geral de observância compulsória.
- A transformação de cargos e a transferência de servidores para outros cargos ou para categorias funcionais diversas traduzem, quando desacompanhadas da prévia realização do concurso público de provas ou de provas e títulos, formas inconstitucionais de provimento no Serviço Público, pois implicam o ingresso do servidor em cargos diversos daqueles nos quais foi ele legitimamente admitido. Insuficiência, para esse efeito, da mera prova de títulos e da realização de concurso interno. Ofensa ao princípio da isonomia.
- A iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação de poderes.
Incide em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local.
- A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido. Doutrina e jurisprudência." (sublinhados originais)
Vejamos, ainda, o que diz a ementa referente ao RE n. 209174-ES:
"EMENTA: Concurso público (CF, art. 37, II): não mais restrita a exigência constitucional à primeira investidura em cargo público, tornou-se inviável toda a forma de provimento derivado do servidor público em cargo diverso do que detém, com a única ressalva da promoção, que pressupõe cargo da mesma carreira: inadmissibilidade de enquadramento do servidor em cargo diverso daquele de que é titular, ainda quando fundado em desvio de função iniciado antes da Constituição. (Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 05/02/1998, Órgão Julgador: Tribunal Pleno)."
Para arrematar, vejamos o que diz a Súmula n. 685 do STF:
"É INCONSTITUCIONAL TODA MODALIDADE DE PROVIMENTO QUE PROPICIE AO SERVIDOR INVESTIR-SE, SEM PRÉVIA APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO DESTINADO AO SEU PROVIMENTO, EM CARGO QUE NÃO INTEGRA A CARREIRA NA QUAL ANTERIORMENTE INVESTIDO."
Como se vê, de acordo com a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal, estão "banidas das formas de investidura admitidas pela Constituição a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso". Promoção, só na mesma carreira. (grifamos)
A propósito, de acordo com o saudoso Hely Lopes Meirelles [08], "em razão do art. 37, II, da CF, qualquer investidura em carreira diversa daquela em que o servidor ingressou por concurso é, hoje, vedada." (g.n.)
O Curso Superior de Tecnólogo de Administração Policial-Militar "é sequencial de complementação de estudos, destinado a habilitar profissionalmente as Praças para o ingresso no Quadro Auxiliar de Oficiais de Polícia Militar (QAOPM)", nos termos do art. 51 do Decreto n. 54.911/2009.
A carreira de Praças, como visto anteriormente, termina na graduação de Subtenente PM.
Logo, salvo melhor juízo, diante da jurisprudência dominante no pretório excelso, é possível concluir que
a LC n. 419/85 não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, simplesmente porque ela não trata de promoção (na mesma carreira, de Praças), mas, sim, de ascensão e transferência, de uma carreira (QPPM) para outra (QAOPM), por meio de concurso interno, contrariando, portanto, o disposto no art. 37, II, da Constituição Federal.Diante disso, pergunta-se: o que deve ser feito para sanar o vício apontado e, ao mesmo tempo, fortalecer a carreira de Praças da PMESP? Há, no mínimo, três propostas: a ideal, a (talvez) possível e NDA.
Primeira - A ideal: consiste em instituir carreira única na Corporação, com início na graduação de Soldado e término no posto de Coronel. Entretanto, devido à tradição, resistência e outras questões que não cabe aqui discutir, essa alternativa, por óbvio, dificilmente (ou jamais) será realizada.
Segunda - A (talvez) possível: consiste em extinguir o QPPM e o QAOPM, e, simultaneamente, instituir um novo Quadro de carreira, que teria início na graduação de Soldado e término no posto de Major, a exemplo do que ocorre atualmente com o QAOPM.
Terceira - NDA: entendendo-se que a jurisprudência do STF não é aplicável ao caso em questão; que a nossa conclusão é equivocada; que tudo deve permanecer como está; ou que há uma quarta e melhor proposta, ainda desconhecida por nós, nenhuma das anteriores deve prevalecer. Alerta! Para quem entende que tudo deve permanecer como está, é oportuno lembrar que num futuro bem próximo, em razão do disposto no Decreto n. 54.911/2009, praticamente todos os Soldados, Cabos e Sargentos PM serão possuidores de diploma de curso superior. Logo, não é preciso muito esforço para concluir que todos eles poderão participar do concurso interno destinado ao CHQAOPM, o que, por motivos óbvios, o tornará inviável.
Afinal, qual delas deve prevalecer? Admitindo-se que deve prevalecer a segunda alternativa, o novo Quadro (a ser instituído) poderia ser denominado, por exemplo, Quadro de Tecnólogos da Polícia Militar – QTPM. Assim, seria possível estabelecer, inclusive, um vínculo lógico e coerente com os títulos previstos no Decreto n. 54.911/2009.
Se acatada tal proposta, o acesso na escala hierárquica do QTPM seria (como é natural) gradual e sucessivo, por meio de promoção, até o posto de Major.
Por uma questão hierárquica (e constitucional), ao posto de 2º Ten QTPM concorreriam apenas os Subtenentes, exclusivamente por meio de concurso interno.
Afinal, não é justo e muito menos razoável admitir que um Subtenente, com vários anos de experiência e, no mínimo, três cursos superiores (ver arts. 33, 44 e 48 do Decreto n. 54.911/2009) fique estagnado nesta última graduação, até passar para a inatividade, sem a possibilidade de progredir na vida profissional.
Trata-se, com o devido respeito, de verdadeiro desperdício de mão de obra qualificada e especializada, totalmente contrário aos princípios que regem a Administração Pública e, em especial, os princípios do interesse público e da dignidade da pessoa humana.
Instituindo-se o novo Quadro, o interessado em ser Policial Militar poderia escolher entre ingressar na carreira do QOPM ou do QTPM, ciente de que, nesta, seria obrigado a galgar todas as graduações (de Soldado a Subtenente), antes de poder concorrer ao posto de 2º Tenente QTPM.
Não se diga que os Cabos e Soldados seriam prejudicados com instituição do QTPM (ou Quadro semelhante), haja vista que, como se sabe, já foram beneficiados (com promoções por antiguidade) pela LC n. 892/2001 [09], a qual, lamentavelmente, não proporcionou nenhum benefício aos Subtenentes.
Neste ponto, é oportuno lembrar as sábias lições do Mestre Celso Antônio Bandeira de Mello [10], para o qual:
"A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes."
5. CONCLUSÃO
Embora possa ter provocado eventuais injustiças, a LC n. 1142/2011 deve ser recebida com bons olhos, uma vez que, como restou demonstrado, procurou dar tratamento isonômico entre homens e mulheres da nossa gloriosa Polícia Militar do Estado de São Paulo, em perfeita sintonia com a Carta Magna em vigor. Apesar disso, não sanou o vício apontado neste modesto trabalho.
A LC n. 419/85, salvo melhor juízo, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Logo, algo precisa ser feito urgentemente em relação ao QAOPM, constituído por ela.
A instituição de carreira única na Corporação seria o ideal. Entretanto, devido a uma série de motivos, essa proposta dificilmente (ou jamais) será concretizada.
Prevalecendo a segunda proposta, o QPPM e o QAOPM seriam extintos, e, ao mesmo tempo, o QTPM (ou Quadro semelhante) seria instituído. Com isso, além de se corrigir o vício apontado, os Subtenentes seriam valorizados e poderiam chegar ao posto de Major QTPM (com muita experiência, motivação e competência para tanto), exclusivamente por meio de concurso interno, propiciando, inclusive, um melhor (e desejado) fluxo nas promoções de seus subordinados hierárquicos.
Com o devido respeito, os Cabos e Soldados já foram beneficiados pela LC n. 892/2001 (com promoções por antiguidade). Logo, caso a referida proposta seja acolhida, não haverá do que reclamarem, mesmo porque, como é cediço, nada os impede de tentarem ingressar no QOPM, por meio de concurso público (art. 37, II, da CF), o que, aliás, também pode ser feito pelos Sargentos que não quiserem aguardar a promoção à Subtenente QTPM.
Esperamos que o Subtenente seja visto como um profissional que está sendo preparado para assumir uma posição de maior responsabilidade e importância na Corporação, e não como alguém que está prestes a passar para a inatividade.
Enfim, esperamos que o presente trabalho seja útil ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito e, em especial, às carreiras da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Para concluir, importa salientar que este artigo não esgota (nem tem a pretensão de esgotar) o assunto em estudo.
REFERÊNCIAS:
-
Disponível em http://diariooficial.imprensaoficial.com.br/nav_v4/index.asp?c=4&e=20110623&p=1
- Disponível em http://www.al.sp.gov.br – Legislação – Leis Complementares
- Disponível em http://www.al.sp.gov.br – Legislação – Leis Complementares
- Disponível em http://www.al.sp.gov.br – Legislação – Decretos do Executivo
- Disponível em http://www.al.sp.gov.br – Legislação – Leis Complementares
- Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266259 Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266272
- Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 29ª edição, 2004, p. 402.
- Disponível em http://www.al.sp.gov.br – Legislação – Leis Complementares
- Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 3ª edição, 17ª tiragem, 2009, p. 9.