IV. A autocolocação da vítima em perigo ou risco
Na história do Direito Penal, à vítima sempre coube um papel passivo, como mera parte ofendida, que suportava os danos causados pelas lesões típicas [53]. A doutrina moderna, no entanto, vem gradualmente reforçando a necessidade de se atribuir um maior destaque ao seu comportamento, que passa a ser encarado de forma dinâmica, baseado em um agir comunicativo (dinamismo em sua posição quanto aos delitos).
A tese da autocolocação da vítima em perigo ou risco [54], que encontra na Corte Constitucional Alemã seus primeiros precedentes, foi inicialmente desenvolvida e aplicada nas seguintes hipóteses: (a) drogados que compartilham seringas de modo que um deles venha a óbito; (b) participação em suicídio; e (c) transmissão de AIDS por via sexual.
Antonio Luís Chaves Camargo aponta outras situações que ensejariam, em tese, a aplicação da autocolocação da vítima em perigo: a pessoa que observa outra se afogar e tentar salvar-lhe, mas acaba por morrer; a vítima de atropelamento que se nega a receber auxílio; o torcedor de um clube de futebol que invade espaço territorial da torcida adversária e é agredido [55].
Tratam-se, aqui, de hipóteses que excluiriam a tipicidade do delito, ou, quando muito, diminuiriam a responsabilidade do autor, já que se considera que as vítimas criaram o perigo (desnecessário) para si mesmas. Por isso, a "autocolocação" é uma forma de atribuir ao autor de uma conduta típica uma culpabilidade exacerbada, pois a vítima concorreu com a realização do risco e do delito.
É nesse sentido que diversos autores de expressão passaram a considerar que a contribuição (consentimento) do ofendido na prática do fato, naquelas hipóteses em que o tipo não contém o dissentimento como elementar, deve produzir efeito no plano da tipicidade, excluindo-a, e não mais na área da ilicitude, como excludente supralegal [56].
Nesses casos em que o titular do bem jurídico consente em que o objeto material seja lesado [57], a doutrina clássica não encontrou meios de excluir a responsabilidade penal do autor do plano da tipicidade, tendo em vista a presença indisfarçável da conduta dolosa, resultado, nexo de causalidade material e adequação aos tipos incriminadores.
Os principais critérios indicados pela doutrina para a aplicação do instituto são [58]: (a) que a vítima tenha sob seu controle o desenvolvimento da situação perigosa; (b) que a vítima possa calcular a dimensão do risco, sendo este conhecido ou cognoscível; e (c) que o terceiro que preste auxílio não esteja numa posição de garante.
Logo, a vítima, outrora não considerada na análise do tipo penal, assume, na teoria da imputação objetiva, papel relevante, até porque o agir comunicativo exige um ator e um ouvinte, que invertem suas posições no correr da argumentação. Desta forma, quando a vítima assume, conscientemente, o risco permitido, não se pode atribuir ao agente a responsabilidade pelas consequências danosas do fato [59].
V. A Atribuição ao Âmbito de Responsabilidade de Terceiros
Pela teoria da imputação objetiva o tipo não pode ser atribuído ao agente que não tem previsão de que o resultado final possa vir a ocorrer. Roxin exemplifica com o caso de uma pessoa que colide seu carro contra uma árvore, por imprudência, sendo que um dos passageiros fratura o quadril. No hospital, esse mesmo passageiro morre em razão de uma infecção [60].
A fratura, por si só, não gerou um perigo de morte; este foi criado unicamente pelo comportamento dos médicos. Assim, como o primeiro causador não pode vigiar esse comportamento, não deve responder por ele. Isso se aplicaria a qualquer erro médico que se encontre fora do risco típico de lesão. "Esses erros, mesmo que previsíveis, já não se encontram no âmbito de responsabilidade do primeiro causador, não sendo, portanto, alcançados pelo tipo" [61].
Analisemos um caso em que o Superior Tribunal de Justiça aplicou a Teoria da Imputação Objetiva [62]: os membros da comissão de formatura de uma determinada faculdade organizaram uma festa para cerca de 700 pessoas, onde circulou livremente entre os participantes grande quantidade de bebidas alcoólicas, assim como substâncias ilícitas, entorpecentes e psicotrópicas.
Em um dado momento, um dos participantes foi atirado dentro de uma piscina e, em razão de sua embriaguez (eis que a perícia técnica concluiu que considerando-se a profundidade, altura e o biotipo da vítima, a piscina não apresentava riscos para uma pessoa em condições normais, independentemente de saber ou não nadar), acabou se afogando. O Ministério Público denunciou todos os integrantes da comissão de formatura por homicídio culposo, pois teriam dado causa ao resultado por imprudência e negligência.
Neste caso, entendeu o Tribunal que houve consentimento do ofendido na ingestão de substâncias psicotrópicas, o que, em casos tais, determina a exclusão da responsabilidade, pois se trata de autocolocação em risco [63].
Desse modo, o fato de a vítima ter vindo a óbito em razão da ingestão de substâncias psicotrópicas não teria relação direta com a conduta dos acusados. Ainda que se admitisse a existência de relação de causalidade entre a conduta destes e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, o que, segundo a Corte, não ocorreu na hipótese, uma vez que seria inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.
Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários para a organização da festa por parte da Comissão de Formatura estaria fora dos limites do que a doutrina denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando um risco permitido (risco geral da vida), pois "é fato corriqueiro, de todos sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpecentes nas festas promovidas por jovens, inclusive e principalmente no âmbito universitário, em todo o país".
No caso concreto, entendeu a Corte que não poderia a Comissão de Formatura prever o comportamento da vítima, que somente veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se de forma contrária ao direito.
VI. O Princípio da Confiança
O chamado Princípio da Confiança, comumente invocado nos delitos de trânsito, mas aplicável a uma ampla gama de crimes, refere-se à confiabilidade que um indivíduo tem de que os demais se portarão conforme o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário.
Na concepção de Roxin, apenas uma reconhecível inclinação, ou disposição [64], para o fato punível afastaria tal princípio. Portanto, no caso de um vendedor que vende um punhal a um dos contendores que participam de uma rixa em frente a sua loja, vindo alguém a ser morto, entende-se que o vendedor não criou o perigo proibido, de sorte que independentemente da causação ou de seu substrato psíquico, nem a venda do punhal, nem o resultado morte daí decorrente, lhe podem ser imputados como ações de homicídio [65].
Em outras palavras, o princípio assenta que as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita (pois se trata de um critério vago, passível de aleatórias interpretações), mas só diante de uma reconhecível inclinação para o fato [66].
VII. Breves Críticas à Teoria da Imputação Objetiva
Um dos grandes críticos da teoria da imputação objetiva é o catedrático de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri Enrique Gimbernat Ordeig. Gimbernat, sustenta que, em relação aos crimes culposos, se o agente se mantém dentro do risco permitido, não há imputação objetiva, já que, em tais casos, simplesmente não existe culpa. Dessa forma, atuando dentro do risco socialmente tolerado, o autor não infringe o dever objetivo de cuidado, sendo despiciendo recorrer-se à imputação objetiva [67].
Na Alemanha, a Teoria da Imputação Objetiva encontra grande aceitação doutrinária, porém nos Tribunais não é adotada na sua integralidade. Seus principais opositores compõem o círculo dos finalistas, como Kaufmann, Struensee, Hirsch e Küpper, que desejam manter a preponderância do elemento subjetivo do tipo [68].
No Brasil, um dos mais ferrenhos críticos da imputação objetiva foi Paulo de Souza Queiroz, que chegou a afirmar que o surrealismo dos exemplos citados pelos defensores da teoria da imputação objetiva põe de manifesto que seu âmbito de aplicação é reduzidíssimo (se é que existe mesmo), de sorte que em razão do seu excessivo grau de abstração, constitui, em boa parte, uma pura especulação teórica desprovida de interesse prático.
Contudo, influenciado por Juarez Tavares, Luis Greco, Fábio Roberto D'Ávila, Fernando Galvão e Damásio de Jesus, o professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) reescreveu sua obra "Direito Penal - Parte Geral" aderindo à moderna teoria, porém mantendo certas restrições.
A exemplo de Greco [69], reconhece que a imputação objetiva e seus conceitos básicos nada mais são do que a própria teoria do crime culposo, porém com denominações e alcances diversos [70]. Assim, a violação do dever objetivo de cuidado, no seio da imputação objetiva refere-se à criação de um risco juridicamente desaprovado; bem assim, o nexo de antijuridicidade passa a chamar-se realização do risco [71].
Queiroz considera, ainda, que "a moderna teoria da imputação é, em verdade, ao menos se se pretende garantista, uma teoria, em verdade, da ‘não-imputação’". E mais: "não uma teoria absolutamente objetiva, pois, em muitos casos, é indispensável, como o reconhecem seus principais defensores, o aspecto subjetivo, isto é, o dolo" [72].
Outrossim, o penalista assevera que, apesar de suas imperfeições, essa moderna teoria pretende responder a uma exigência constitucional garantista, conforme os princípios da legalidade, pessoalidade e proporcionalidade, razão pela qual passou a adotar essa "nova linguagem" [73].
VIII. Considerações Finais
A função da dogmática penal é proporcionar ao juiz critérios seguros e precisos na distribuição da justiça. Apurando-se os pressupostos para que se concretize um tipo criminal, é possível distinguir uma figura delituosa de outra e, consequentemente, evitar a arbitrariedade e a improvisação, no intuito de facilitar a aplicação do Direito Penal [74].
Pela teoria da imputação objetiva, haverá imputação "objetiva" do resultado quando a conduta do sujeito produziu, criou, materialmente um risco juridicamente reprovável, proibido, e relevante [75]. De outro lado, inexistirá a imputação "objetiva" quando faltar essa criação de perigo [76].
Nessas premissas, é possível evidenciar um limite político-criminalmente plausível ao arbítrio do julgador e à atividade abusiva dos acusadores, o que, nas palavras de Damásio de Jesus, enriquece a Justiça, porquanto fornece instrumentos modernos à acusação, como a teoria do incremento do risco, e à defesa, como a exigência no tipo incriminador de um novo elemento normativo, qual seja, a própria imputação objetiva [77].
Para Juarez Tavares, ela não é uma teoria para atribuir, senão para restringir a incidência da proibição sobre determinado sujeito, de sorte que, na medida em que puder cumprir semelhante função, sua adoção é válida e louvável [78].
Uma de suas consequências perceptíveis é a antecipação para o plano da tipicidade da exclusão de certas condutas e resultados do campo penal, solução que as doutrinas clássicas só admitem na esfera da ilicitude [79]. Assim, a atribuição do efeito de atipicidade ao consenso válido, impede a persecução criminal, atendendo a reclamos de um Direito penal democrático e garantista [80].
É evidente que não há consenso sobre o tema na doutrina [81]. José Carlos Pagliuca atesta que o pragmatismo dominante em nosso sistema penal, trazendo conceitos apriorísticos já arraigados e fechados numa determinada proposição legal (a norma jurídica) impede, de certa forma, a liberdade de alcançarmos outra interpretação, senão aquela determinada no comando normativo em testilha quando do evento naturalístico real [82].
O argumento de Roxin para defender essa teoria nos remete à proteção dos bens jurídico-penais:
Quem deseja proteger jurídico-penalmente bens que não podem ser protegidos de outra forma, deve tornar a criação e a realização de um risco não permitido para estes bens o critério central de imputação, mas deve também utilizar o risco permitido, o fim de proteção da norma de cuidado bem como a auto-responsabilidade da vítima e a esfera de responsabilidade de terceiros, para uma limitar a responsabilidade, o que é necessário em razão do bem comum e da liberdade individual [83].
As colocações aqui invocadas só comprovam a necessidade da ampliação do estudo na doutrina brasileira, a fim de se averiguar se a vasta base teórica verificada satisfaz nossas exigências político-criminais.
Certo é que esse desenvolvimento está atrelado à superação de uma cultura formalista e de relativismo valorativo, que enaltece uma jurisprudência com pretensão vinculante e o conhecido argumento de autoridade, arraigado de preconceitos que retraem a natural evolução das ciências criminais, a despeito do pluralismo ideológico preconizado pela Constituição Federal.