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Pequeno passeio sobre a imputação objetiva

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EMENTA: IMPUTAÇÃO OBJETIVA – EQUÍVOCOS – TEORIA QUE NÃO É PURAMENTE OBJETIVA

1. A teoria da imputação objetiva tem bases filosóficas pouco discutidas e conhecidas no Brasil, sendo que a nova tese chega com defeitos ao nosso meio.

2. Diante da manutenção de critérios pouco precisos, inclusive com a inclusão de elementos subjetivos, a teoria mantém os mesmos casuísmos da relação de causalidade.


1. INTRODUÇÃO

O maior objetivo do presente artigo é propiciar aos alunos de Direito uma visão verdadeira, sem tendenciosidades profanas, da teoria que tem empolgado a muitos, embora sem grande fundamentação científica, que é a imputação objetiva. Assisti o Professor Damásio Evangelista de Jesus dizer durante a palestra realizada na AMAGIS/DF, no primeiro semestre de 2.000, que os estudos sobre tal teoria não estão concluídos.(1)

O ilustre professor mencionado afirmou durante a sua palestra (nupercitada), que estaria trazendo para o Brasil uma nova tese, que seria publicada em um novo livro, em fase de revisão, a qual reformularia todo o conceito de crime. Tal assertiva está consignada na obra por ele prometida, com o seguinte conteúdo:

"Agora, com a missão de sepultar o causalismo e assento na insuficiência do finalismo e da adequação social, que não deram solução a muitas questões, como a do crime culposo, e superando todas as doutrinas anteriores, a maioria dos autores está adotando a teoria da imputação objetiva, que propõe um novo sistema penal".(2)

Ao longo dos tempos, desde a criação do Código Penal, as leis foram alteradas muitas vezes, o que é normal. Não obstante, o que se pretende agora é fazer a modificação mais significativa do CP, desde a reforma de 1984. Essa alteração não seria unicamente legislativa, mas dos próprios conceitos de crime.

Por tal teoria, há uma tentativa de mudança dos conceitos outrora conhecidos, ou melhor, há uma adaptação dos velhos conceitos, dos quais, congregados, resultaria a imputação objetiva, como medida complementar para a correta percepção dos fatos juridicamente relevantes. Outros, mais extremistas, pregam o próprio fim do Direito Penal,(3) o que encontra fulcro na insuficiência do sistema penal.(4)

Neste pequeno ensaio procuraremos demonstrar que não se pode admitir a novel teoria em nosso meio, haja vista se ela pretende resolver problemas decorrentes do causalismo, não consegue atender aos seus objetivos e, da forma que tem se apresentado, em muitos casos, representaria uma violação da lei penal. Não obstante, nosso maior objetivo é demonstrar sua inutilidade, embora se tenha propagado, na doutrina pátria, que tal teoria representa um grande avanço para a concepção jurídica da atualidade. Corroborando, não se trata de uma imputação objetiva, mas subjetiva, conforme demonstraremos a seguir.

Para atingir nossos objetivos, apresentaremos uma síntese do que seja crime, segundo as concepções causalista, finalista e social. De tal estudo, decorrerá a certeza de que, melhor que se filiar integralmente a uma teoria, é a postura eclética, que permita a percepção de qual seja a contribuição que cada uma das teorias pode trazer à compreensão do crime.

Feito o estudo preliminar, analisaremos a relação de causalidade, enfocando alguns problemas decorrentes da adoção da teoria da equivalência das condições – segundo o critério da eliminação hipotética –, criando, então, o ambiente propício para a apresentação da teoria da imputação objetiva. Em síntese, inicialmente, serão ofertados dados para se conhecer os enunciados da teoria da imputação objetiva. Depois, muitas críticas serão feitas, inclusive, no tocante à aceitação repentina da teoria, o que parece mais a recepção do discurso de autoridade, do que efetiva preocupação com tema proposto. São essas críticas que nos permitirão demonstrar em nossa conclusão, a inutilidade da nova teoria, a qual, ao nosso sentir, emerge no Brasil em decorrência de determinado oportunismo econômico. 


2. O CRIME

2.1. NOÇÕES PRELIMINARES

Sempre que falamos em Direito, pensamos em uma única ciência, ou em várias ciências que têm um campo comum. Costumávamos dizer que o Direito se assemelhava a uma árvore, pois tem um tronco e vários galhos. Dessa forma, havia um tronco comum, aplicável aos vários ramos do Direito que se interligam por meio dele.(5) Hoje, a velha noção tem cedido lugar à autonomia das ciências jurídicas, não havendo mais ramos do Direito, mas efetivas ciências jurídicas autônomas.(6)

O Direito Penal é uma das ciências jurídicas de origem mais remota,(7) bem como é a que mais tem sofrido influências da Sociologia e da Filosofia.(8) Desde os primórdios, emergiu a necessidade de se coibir a prática dos fatos que mais profundamente atingissem as pessoas do grupo social e, consequentemente, o próprio grupo. Tais normas referiam-se às violações dos direitos individuais ou coletivos mais profundas, visto que a solução de pequenos problemas não eram disciplinados, cabendo aos particulares resolverem suas pendengas.(9)

Somente com a evolução humana é que se desenvolveu o conhecimento científico. Assim, falar em Direito Penal como ciência é algo novo.(10) De toda forma, cada ciência jurídica estuda as normas relativas ao campo a que ela se dedica. Partindo dessa noção, podemos definir o Direito Penal como a ciência que estuda as normas que definem os crimes e as sanções aplicáveis a quem os comete.

2.2. CONCEITOS FORMAL E MATERIAL

Diz-se que crime é a violação da lei penal. Este é o seu conceito formal.(11) De outro modo, o conceito material é mais complicado, uma vez que o crime é a ofensa ao objeto jurídico tutelado. Assim, nesse último conceito, cada crime deve ser analisado de per si, segundo o objeto jurídico tutelado pela norma penal.

Toda pessoa humana, ao nascer, traz consigo determinados direitos, os quais são denominados de direitos subjetivos (v.g., vida, liberdade, integridade física). Com o tempo, ao longo da vida, outros direitos subjetivos vão se acrescendo àqueles, sendo que muitos deles serão protegidos pelo Direito, daí falar-se em objeto jurídico, ou bem jurídico, que nada mais é que o direito subjetivo tutelado por determinada norma jurídica.

Nem todos os fatos são juridicamente relevantes, v.g., regras de boa educação, embora existindo determinadas normas que as regulem. As regras sociais, por si só, não chegam a pertencer ao mundo jurídico. Dessa forma, uma norma social se apresenta como insuficiente para que um fato possa ser juridicamente relevante. Aqui, bem jurídico é aquele tutelado pela lei penal. Normalmente, esses bens já são tutelados em outros ramos do Direito, daí dizer-se que o Direito Penal positivo é predominantemente sancionador, ou seja, apenas comina sanções para bens jurídicos tutelados por outros ramos do Direito.(12)

2.3. CONCEITO ANALÍTICO

O conceito analítico de crime é feito segundo a sua composição. Assim, examina-se seus requisitos, ou elementos, para se dizer o que é crime. Há uma certa discussão sobre a natureza das partes do crime. Para alguns, não seriam propriamente elementos, mas requisitos, ou seja, sendo o crime uma unidade que não pode ser fracionada, melhor seria falar em requisitos, uma vez que faltando qualquer deles, não haverá a figura delituosa.(13) Na verdade, a discussão é vazia de conteúdo, haja vista que lexicologicamente requisito significa condição necessária para se atingir determinado fim,(14) e elemento é tudo que entra na composição de alguma coisa.(15) Corroborando, Maggiori, diz que a questão teminológica não é de muita importância, sendo que a palavra, ou o conceito, não é a substância. Assim, denomina as partes essenciais do crime de elementos, caracteres, ou aspectos. Não obstante, reconhece que o crime resulta de um todo unitário e monolítico, ainda que ele seja considerado de um ou de outro ângulo visual.(16) Essa é, sem dúvida, a melhor posição.

Numa época mais remota, o crime foi concebido, já em 1551 a.d., por Deciano como sendo a conduta típica, antijurídica, culpável e punível.(17) Essa foi a posição de Bartaglini.(18) No entanto, não se pode ter a punibilidade como parte integrante do crime, eis que ao agir assim estaremos considerando causa o efeito.(19) Nesse sentido, preleciona Assis Toledo:

"Alguns autores acrescentam um outro elemento – a punibilidade – a nosso ver sem razão. A pena criminal, como sanção específica do direito penal, ou a possibilidade de sua aplicação, não pode ser elemento constitutivo, isto é, estar dentro do conceito do crime. Ao contrário, pressupõe a existência de um crime já aperfeiçoado".(20)

Depois, a partir da construção clássica, o crime era compreendido por um critério bipartido, representado por um elemento objetivo (ação ou omissão) e outro subjetivo (culpabilidade), o que foi denominado por Ferri de "anatomia jurídica do crime".(21) Somente no início deste século é que se desenvolveu o critério tripartido, pelo qual crime é a conduta humana típica, antijurídica e culpável. Este é o conceito mais aceito pela grande maioria dos penalistas.(22) No Brasil, contraditoriamente, adotando postura pouco científica – esposada por Damásio Evangelista de Jesus – crime é tão somente fato típico ilícito, sendo a culpabilidade tão-somente pressuposto da pena.(23)

2.3.1. Fato típico

Diz-se que fato típico é a conduta humana que se adequa ao tipo, produzindo um resultado proibido pela lei penal. Dessa forma, são elementos do fato típico: conduta; resultado; relação de causalidade; e tipicidade.(24)

Neste item, serão apresentados os elementos do fato típico, segundo as principais teorias desenvolvidas acerca dos mesmos. Outrossim, algumas classificações estarão presentes, bem como certos aspectos da teoria do crime que, inicialmente, parecerão não terem relação com o objeto do presente trabalho. No entanto, ao final, a relação se tornará evidente, sendo que o desconhecimento de algumas noções preliminares constituiria obstáculo à compreensão da conclusão crítica que será apresentada ao final.

I. Conduta

Existem várias teorias sobre a conduta, das quais enumeraremos as mais significativas:

  • Causalista
  • – esta teoria está superada, uma vez que considera a conduta como sendo a ação ou omissão humana voluntária que produz um resultado proibido pela lei penal. Nesse momento, não há que se perquirir a finalidade do agente, sendo a conduta um movimento exterior (positivo ou negativo – ação ou omissão, respectivamente) que deve ser apreciado sem qualquer referência a dolo ou culpa.(25)
  • Finalista
  • – teoria que teve como seu maior defensor e articulador Hans Welsen, que dizia que a ação humana (aqui incluída a omissão) é "o exercício de uma atividade finalista".(26) Esta contém o elemento subjetivo (dolo/culpa). Alguém que se conduz positivamente (ação) ou negativamente (omissão), o faz desejando alguma coisa; mesmo nos crimes omissivos puros, a vontade se faz presente, ou seja, o agente não deseja o resultado, mas quer praticar a conduta proibida.
  • Social
  • – "o mérito dessa teoria consiste em que, ao decidir-se sobre a tipicidade de uma ação, são considerados não os aspectos causal e finalístico, mas também o aspecto social",(27) tendo surgido como "uma ponte entre as teorias causalista e finalista".(28) Havendo dúvida sobre a "qualidade da ação", deve-se examinar: a) se há determinada conduta; b) se foi dominada ou era dominável pela vontade; sua relevância social.(29)
  • Jurídico-penal
  • – exprime que a "ação é o comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico".(30)

Poderíamos desenvolver um livro unicamente sobre a conduta.(31) Com efeito, existem sérias divergências doutrinárias e as soluções propostas não se revelaram suficientes para eliminar as divergências e, por isso, alguns penalistas consideram que esta é uma das questões mais controvertidas da ciência penal.(32) Destarte, parece que a melhor lição, no atual estágio de nossos estudos, à de Paulo José da Costa Jr.:

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"Do exposto se conclui: nenhum dos critérios apontados, tomados isoladamente, mostra-se suficientemente idôneo para conceituar a conduta. Cada um deles oferece sua contribuição à solução do problema. O critério naturalístico oferta a base necessária para a edificação da teoria do crime. A concepção teleológica ressalta o conteúdo social e os momentos de valor da conduta, além de emprestar unidade ao sistema, solucionando problemas como o instituto do concurso, ou o crime continuado. A conceituação jurídico normativa permite a exata utilização de todas estas estruturas ontológicas, fornecendo-lhes o contorno formal, além de contribuir valiosamente para o esclarecimento de importantes conceitos, como o de omissão. Esta solução que se afigura mais equilibrada, eqüidistante das paixões dos adeptos ferrenhos de várias doutrinas: aceitar de cada uma a contribuição válida que se pode oferecer. Não se venha a dizer que tal posição é eclética, pois é tridimensional. São três momento de uma só realidade, que não podem ser materialmente retalhados, por integrarem três aspectos onticamente inseparáveis. A escola naturalística focaliza o fato. A teleológica sublinha o valor. E a jurídico-normativa concentra-se na norma. As três visões, desmembradas e parciais, fundem-se numa única realidade, que não é a soma de suas integrantes, mas a fusão de todas, no cadinho da realidade social".(33)

No Brasil, houve uma fase em que um nome se destacou na doutrina penal, qual seja o de Damásio Evangelista de Jesus,(34) que foi grande defensor da teoria finalista. Assim, quando discorreu sobre o assunto, o doutrinador nupercitado inverteu a ordem de apresentação dos temas, tendo tratado primeiramente da teoria social para depois mencionar a teoria finalista, levando a crer que essa seria a ordem cronológica da criação de tais teorias. Aliás, ao concluir sua exposição sobre a teoria social, o autor expõe: "Por esses motivos, essa teoria foi repudiada pela doutrina penal". Então, o doutrinador, em sua obra, passa a discorrer sobre a teoria finalista, que parece ser um aperfeiçoamento das duas anteriores (causalista e social).(35) Tudo não passa de um equívoco, eis que, conforme exposto, a teoria social é posterior à finalista, procurando corrigir defeitos contidos nela, bem como na teoria causalista.(36)

Pelo que se observa, a vontade passou a ser parte integrante da conduta, daí dizer-se que, hodiernamente, o dolo e a culpa são partes integrantes da conduta.(37) Mas como distinguir o dolo da culpa? Sobre a matéria, foram desenvolvidas três teorias, a saber:

  • da representação
  • - o resultado previsível representa o dolo, razão pela qual será doloso o crime sempre que houver um resultado previsível;
  • da vontade
  • - apresenta o outro extremo porque só há dolo na vontade de obtenção do resultado proibido, excluindo a possibilidade da responsabilização daquele que age, mesmo assumindo o risco de produzir o resultado; e
  • do assentimento
  • (ou do consentimento) - diz que o dolo é o consentimento com o resultado previsto, mesmo que ele não seja desejado.

O CP adotou a teoria da vontade (dolo direto) e a teoria do assentimento (dolo eventual), ex vi do disposto no art. 18. No mesmo artigo, o CP trata da culpa, que pode ser consciente (o agente faz a previsão do resultado), ou inconsciente (o sujeito ativo não faz a previsão do resultado, mas o mesmo é previsível ao homem médio), sendo que suas modalidades são: imprudência, negligência e imperícia.

II. Resultado

O resultado pode ser naturalístico – aquele que provoca uma transformação no mundo natural – ou normativo-jurídico, que é representado pela violação à norma penal. Nem todo crime depende de um resultado natural. Daí emerge a seguinte classificação:

  • materiais
  • – são aqueles em que a lei prevê um resultado natural e o crime para se completar (se consumar), depende da produção do referido resultado;
  • formais
  • – são aqueles em que a lei prevê um resultado material, mas ela se precipita e traz o resultado para junto da conduta, não dependendendo, a consumação, da produção do referido resultado;
  • de mera conduta
  • – a lei não prevê qualquer resultado naturalístico.

Quanto ao iter criminis, os crimes são classificados em: a) plurissubsistentes (a conduta típica pode ser fracionada) e unissubsistentes (a conduta típica não pode ser fracionada).(38) Assim, como o CP estabelece, em seu art. 14, que a pessoa só pode ser punida por crime quando iniciada a execução, conclui-se que, a cogitação e a preparação são impuníveis, salvo quando vierem a constituir crime autônomo. Também, no mesmo artigo, o CP preceitua que constitui tentativa o início da execução, sem que o agente atinja o resultado por circunstâncias alheias a sua vontade. Do exposto, somente os crimes plurissubsistentes é que podem ser praticados na forma tentada.

O crime culposo não pode ser praticado na forma tentada, pois para que o delito seja culposo, o agente, mesmo que tenha feito a previsão do resultado (previsibilidade subjetiva), o crime culposo se caracterizará pela ocorrência do resultado. A título de exemplo, podemos apresentar o crime de homicídio que é, em regra plurissubsistente. Porém, o homicídio culposo não admite forma tentada, pois, ratifica-se, crime culposo é aquele cujo resultado previsível (previsibilidade objetiva) ocorre sem que o agente o deseje, ou que tenha assumido o risco de produzi-lo.

III. Relação de causalidade

Sobre esse assunto, concitamos o leitor a ler o artigo intitulado "Relação de Causalidade", de nossa autoria, no qual constam várias teorias, bem como a nossa opção pela solução casuística, uma vez que nenhuma das teorias causais é perfeita.(39)

Problema ainda maior, emerge dos cursos (desdobramentos, percursos) causais hipotéticos, visto que o Código Penal adotou o critério da eliminação hipotética, pelo qual "Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido"(40). Esse não é o melhor critério, seria melhor se tivéssemos adotado o critério da eliminação global, pelo qual, "se concorrem para o resultado diversas condições e uma vez eliminadas alternativa, mas não cumulativamente, cada uma delas, o resultado não é eliminado, qualquer delas é considerada como causa".(41) É lógico que essa teoria deve ser temperada pelas teorias atinentes ao concurso de pessoas, em que duas pessoas somam forças para a prática de um crime, quando, então, a causa do resultado será a decorrente da parcela de contribuição de cada um dos concorrentes.

IV. Tipicidade

Há tipicidade quando a conduta concretizada se enquadra na lei. Não obstante, a teoria social inseriu um plus na tipicidade, qual seja, a reprovabilidade social. Daí, para que haja tipicidade, não basta que a conduta concretizada se adeqüe à descrição contida na lei penal. É necessário, ainda, que a conduta seja socialmente reprovável. A lei será apenas um indício da ocorrência de crime, tendo em vista que a ela deve ser acrescentado um elemento normativo, que é a adequação social.

Essa teoria é criticada porque ela gera a possibilidade de arbítrios, uma vez que o julgador terá ampla margem de opção entre o que é crime e o que não é, tudo com fundamento em uma adequação social, que não é precisa. De qualquer forma, ante o princípio da adequação social, não se pode falar em crime quando uma conduta é tida como socialmente adequada.

Ainda no campo da tipicidade, não pode deixar de ser comentada a doutrina de Zaffaroni que cria a teoria da tipicidade conglobante. Partindo da noção de que não pode constituir fato típico obedecer a lei, o autor argentino distingue tipicidade penal de tipicidade legal e de tipicidade conglobante. De acordo com sua teoria, tipicidade penal é gênero, que comporta duas espécies cumulativas: tipicidade legal e tipicidade conglobante.

A tipicidade legal é aquela traduzida pela adequação do fato concretizado à lei, enquanto que tipicidade conglobante é a contrariedade ao direito. Dessa forma, se um oficial de justiça, cumprindo determinação contida em um mandado de busca e apreensão, invade uma casa e subtrai dali um forno microondas, não haverá tipicidade conglobante porque ele estará cumprindo a lei.(42) Na verdade, ante tal instituto, ficou esvaziada a excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (art. 23, inciso III, do CP), uma vez que todo aquele que cumpre seu dever legal, estará fazendo exatamente o que lei manda.

Diante da nova teoria, é necessário distinguir autorização para praticar o ato (excludente de ilicitude), de obrigação legal (excludente da tipicidade penal). Assim, se alguém mata em legítima defesa, não estará obrigado a fazê-lo, portanto, atuará com excludente de ilicitude. De outro modo, como tipicidade penal (TP) é junção da tipicidade legal (TL) com a tipicidade conglobante (TC), a ausência de qualquer delas excluirá, não a ilicitude, mas a tipicidade, o que pode ser traduzido pela seguinte formula: [TP = TL + TC]

Merece destaque o princípio da insignificância, pelo qual, entende-se que o fato concretizado, não se adequa ao tipo por inexistir lesão ao bem jurídico.(43) Há quem entenda que o princípio da insignificância exclui a ilicitude, o que é incoerente, pois se o fato concretizado traz uma lesão tão pequena ao objeto jurídico, a ponto de não ter relevância para o Direito Penal, não há como falar em tipicidade. No entanto, para esses autores, o princípio da insignificância se caracteriza no crime de bagatela, que, embora típico, não é ilícito.

3.3.2. Ilicitude

Os autores falam normalmente em antijuridicidade. Mas, o que seria antijuridicidade? A resposta é simples, decorre da própria formação da palavra, que é contrariedade ao direito. Assim, para que haja crime, além de típico, o fato deve ser antijurídico. Porém, a denominação não é a mais feliz, visto que todo fato típico é contrário ao direito, portanto, antijurídico. Daí a preferência pela denominação ilicitude.

A ilicitude pode ser material ou formal. A primeira é dada pelos conceitos sociais, enquanto que a segunda é dada pela lei. Excluir a ilicitude, segundo a noção material, importa em excluir o próprio fato típico, visto que o fato não é socialmente reprovável. De outro modo, adotando a noção formal, é possível que se exclua a ilicitude sem excluir o fato típico, existindo, portanto, fato típico que não é antijurídico.

Foi desenvolvido o princípio da adequação social, classificando a adequação social como causa excludente da ilicitude. Como corolário, os autores falam em causa supralegal excludente da ilicitude. No entanto, só o que pode excluir a ilicitude é a lei. Dessa forma, só existem causas excludentes da ilicitude legais.

2.3.3. Culpabilidade

A culpabilidade é elemento do crime, embora existindo quem diga que ela é tão-somente condição de aplicação da pena. Para quem vê a culpabilidade como sendo unicamente pressuposto da pena, ela reside fora do crime. Álvaro Mayrink diz que crime é fato típico e ilícito, praticado por agente culpável.(44) No Brasil, predominou o entendimento de que a culpabilidade não é elemento do crime, o que é criticável, uma vez que dizer que a culpabilidade é pressuposto da pena não torna verdadeira qualquer outra afirmação no sentido de que não sejam pressupostos da pena o fato típico e a ilicitude, pois se faltar qualquer um destes dois elementos, também não haverá pena. Assim, todos os elementos do crime são condições para a aplicação da pena, não havendo sentido na distinção que retira a culpabilidade do conceito analítico de crime.(45)

Mas, o que seria culpabilidade? É censuralibidade, reprovabilidade. Tal censura, decorre, dentre outros aspectos, do elemento subjetivo do agente. Destarte, o dolo [ou a culpa] precisa ser avaliado na conduta, mas voltará a ser apreciado na culpabilidade.

São três as teorias acerca da culpabilidade, a saber:

  • psicológica
  • – a culpabilidade é sinônimo de dolo ou de culpa. Para tal teoria, a censurabilidade é dada pela consciência do agente, acerca da reprovabilidade de sua conduta. Ela é imperfeita porque só inclui, na verdade, o dolo, ou, quando muito, a culpa subjetiva. Porém, na culpa em sentido estrito, aquela em que o agente, mesmo sem fazer a previsão, atua imprudentemente, negligentemente ou com imperícia, provocando um resultado proibido, não se pode falar em consciência da ilicitude;
  • normativa
  • – também defeituosa, prevê que a censurabilidade é dada pela norma. O finalismo preferiu essa teoria, mas ela também carece de fundamentação, porque a censurabilidade não pode ser unicamente da lei. A censura, confirme ensina Roxim, decorre de uma política criminal, que, ao nosso sentir, provém dos valores sociais;
  • psicológica-normativa
  • – essa é a melhor teoria, uma vez que conjuga os elementos de censura trazidos pela lei com os subjetivos. Na verdade, como falar em reprovação de um fato sem apreciar o elemento subjetivo do agente? O CP, nesse aspecto, visando a aplicação de sanções mais justas, propõe a apreciação da culpabilidade, bem como da conduta social do agente, a fim de se verificar a efetiva censurabilidade do delito no momento da aplicação da pena (art. 59, caput).

Não se admite a reprovação objetiva de uma conduta. Para que um fato seja censurável, mister é a existência de dolo, ou de culpa. Assim, são estranhos os julgados que imputam determinado crime a alguém, mesmo sem a ocorrência de culpa.

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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Pequeno passeio sobre a imputação objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2000. Acesso em: 24 abr. 2024.

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