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Imposto de Importação e majoração desmotivada

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01/04/2001 às 00:00
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8. Dos limites constitucionais e os percentuais da multa.

Os limites de aplicação das multas são tratados pela análise da observância do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade e do não confisco.

O princípio da razoabilidade tem sua base de formação nos Estados Unidos, tendo sua acepção ligada à razoabilidade que a lei deve ter e sua relação com a moralidade e a continência do fundamento da edição da norma com a solidariedade, segurança jurídica, ordem e principalmente a justiça. Dessa forma, o fundamento de validade primeiro de uma norma jurídica deve ser o sentido de justiça(25).

Aplicação do princípio da razoabilidade em matéria de penalidades pecuniárias é aceito na doutrina, conforme ensina José Carlos Graça Wagner(26) :

"o ato ilícito pode ser punido até o limite de sua própria substância, de tal modo que não só de nada aproveite a quem o praticar como também perca tudo que envolveu na prática daquele ato. Nesse caso, os acréscimos de multa, juros e correção não podem ultrapassar o limite do que razoavelmente possa se presumir como resultado econômico obtido com as operações tributadas a que se refere a obrigação em atraso."

O aludido princípio diz respeito, segundo o STF, aos balizamentos e parâmetros que o legislador, na sua atividade legislativa, deveria observar, estabelecendo ainda que os limites da lei devem regular a conduta de modo proporcional e adequado(27).

A doutrina constitucional moderna e o Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, determinam que não se deve analisar as leis somente sob a ótica do princípio da reserva legal. O julgamento da questão deve ter como base o princípio da reserva legal proporcional, que tem como pressuposto não somente a legitimidade dos meios e dos fins a serem alcançados, mas também a necessidade de utilizar-se o meio menos gravoso ao indivíduo para alcançar o fim almejado(28).

Com isso, não pode haver distorção entre a medida estabelecida em lei e o fim por ela objetivado, determinando que o modo de combater e punir os ilícitos deve ser disposto com penalidades que guardem adequação dos meios e dos fins, sob pena de violação ao princípio da razoabilidade e a proporcionalidade.

Gilmar Mendes(29) resume a questão:

"Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade."

Na análise deste princípio aplicado a multas pelo excesso ou não-economia de energia elétrica, vislumbramos que a lei deve estabelecer limite razoável e proporcional ao fim da multa, qual seja, redução do consumo. A nosso juízo, a noticiada multa de 45 vezes o valor da conta é inconstitucional. Não é razoável, nem proporcional, que consumidor por descumprir a regra de racionamento se veja obrigado a pagar valor maior que o dobro de seu débito.

Com efeito, não há na jurisprudência um percentual máximo de imposição de multas. Contudo, há balizamento do STF, que considerou confiscatória, multa de 300%.

No julgamento da ADIN ajuizada em face da exigência de multa em percentual de 300% (trezentos por cento), o STF(30) assim decidiu:

"Art. 3 º - Ao contribuinte, pessoa física ou jurídica , que não houver emitido a nota fiscal, recibo ou documento equivalente, na situação de que trata o artigo 002 º , ou não houver comprovado a sua emissão , será aplicada a multa pecuniária de trezentos por cento sobre o valor do bem objeto da operação ou do serviço prestado , não passível de redução , sem prejuízo da incidência do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza e das contribuições sociais. (grifamos) Parágrafo Único - Na hipótese prevista neste artigo, não se aplica o disposto no artigo 004 º da Lei nº 8218 , de 29 de agosto de 1991. O Tribunal , por votação majoritária, conheceu da ação direta quanto ao art. 003º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/94, vencido o Relator ( Ministro Celso de Mello, Presidente), que dela não conhecia. Prosseguindo no julgamento do pedido de medida cautelar, referente a essa norma legal , o Tribunal, por votação unânime, suspendeu, com eficácia ex nunc , até final julgamento da ação direta, a execução e a aplicabilidade do art. 003 º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/97. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence e Maurício Corrêa. - Plenário, 17.06.98." (grifamos)

Com base nesse precedente não há dúvidas de que leis que estabelecem multas podem ser declaradas inconstitucionais por violarem o princípio da razoabilidade e por induzirem a confisco.

A nosso juízo, o percentual máximo de uma multa cominatória é de 100% (cem por cento) do valor que o contribuinte deveria economizar, ou seja, não se pode criar incidência de penalidade sobre a conta normal de luz, quer dizer, sobre o valor que o consumidor paga pelo seu consumo habitual. A multa deve incidir sobre o plus que deveria ser reduzido ou sobre o excesso de consumo.

Dessa forma, se o consumo normal ou o limite é de 10 kWh e o contribuinte consumiu 15 kWh, a multa não poderá incidir sobre os dez previstos como consumo normal, mas somente sobre os cinco quilowatts que extrapolaram o limite. Pelo acréscimo de consumo o contribuinte irá pagar um valor maior, em face de que haverá a incidência de uma penalidade, a título de multa astreintes, na forma de uma sobretaxa.

Com isso, se a norma realmente vier a estabelecer multas abusivas não temos dúvidas que o Poder Judiciário irá acolher teses pela redução ou pela a inconstitucionalidade, muito porque a doutrina(31) assim entende: "No que toca às penalidades pecuniárias, todavia, o mesmo não ocorre, detendo o juiz, por força de lei, poder para imiscuir-se no processo de sua quantificação, poder que vai até o ponto de determinar-lhes a exclusão diante de certas circunstâncias."


9. Conclusões.

Com isso, podemos concluir que a multa por excesso ou aumento do consumo de energia elétrica tem natureza jurídica de multa a título de astreintes.

A aludida multa não tem natureza tributária.

É medida de cautela que, para os efeitos da lei, o excesso ou o aumento de consumo de energia elétrica e os limites sejam correta e claramente tipificados como ilícito.

A multa objeto da presente análise não pode ser criada por decreto, sendo hábil, contudo, a sua instituição por medida provisória, a ser convertida, posteriormente em lei ordinária.

A multa tem como limite máximo o dobro do valor da diferença entre o consumo normal e o excesso ou extrapolação do limite, sendo inconstitucionais percentuais abusivos.

Os consumidores poderão se valer de remédios jurídicos típicos do direito administrativo, principalmente, o manejo de mandado de segurança com vistas a coibir abusos na aplicação da multa, sem excluir as ações do Ministério Público.

Por derradeiro, julgamos que, conquanto seja possível juridicamente a imposição de multa, os questionamentos judiciais serão tantos que podem inviabilizar a sua exigência. Dessa forma, talvez fosse mais conveniente o reajustamento temporário dos valores das tarifas, em face da redução da oferta, que, com menos traumas jurídicos, atingiria o fim almejado, qual seja, a redução do consumo, uma vez que existe princípio que nenhuma norma jurídica pode derrogar: quanto menor a oferta, maior é o preço.


NOTAS

1. A imprensa noticiou a imposição da aludida multa nestes termos: "Não poderia ter sido mais drástico o racionamento adotado pela Agência Nacional de Energia (Aneel) para vigorar a partir de 1o de junho. Um sistema de apuração indicará o limite disponível para uso de cada consumidor. A base de cálculo tomará com referência quilowatts anteriormente gastos seguidos de cota redutora. A ultrapassagem do teto estabelecido ensejará multa que poderá alcançar 45 vezes o valor da conta. É o que ocorrerá no caso de reincidência na utilização acima do fornecimento ajustado. Espera-se com a inciativa reduzir em 20% as pressões consumistas sobre as redes distribuidoras." In Os ônus da imprudência. Correio Braziliense de 05 de maio de 2001, p. 4

2. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2a ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 41.

3. LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. 2a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 32.

4. "Poder", em seu significado mais geral, segundo Norberto Bobbio, designa "a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos." BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Luis Guerreiro Pinto, 12a ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 933.

5. FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sério Leite. Aspectos jurídicos-penais da tortura. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 27.

6. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Trad. Arnaldo Setti, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1991, p. 876.

7. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 875-876.

8. SZNICK, Valdir. Da pena de multa. São Paulo: Ed. Universitária, 1984, p. 20.

9. Idem, ibidem, p. 26.

10. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. T rad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.3., , 1976, p. 73.

11. Ver HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 2ª ed., Imprensa Nacional da Moeda, p. 247 e FONROUGE, Carlos M. Giuliani. Conceitos de direito tributário. Trad. Geraldo Ataliba e Marco Greco, São Paulo: Lael, , 1973, p. 221.

12. PARIZATTO, João Roberto. Multas e juros no direito brasileiro. 3a ed., Ouro Fino: Edipa, 1999, p.1.

13. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5a ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 33.

14. ROLIM, João Dácio; SILVA, Maria Inês Caldeira Pereira de. "A dedutibilidade ou não das multas moratórias perante o imposto de renda", in Revista Dialética de Direito Tributário, no 11, agosto de 1996, pp. 72-79, p. 73.

15. MACHADO, Hugo de Brito. "O ICMS e a prestação gratuita de serviço", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 41-47, p. 41.

16. MACHADO, Hugo de Brito. "As multas e o imposto de renda", in Revista Jurídica, ano XXXI, vol. 105, maio/junho de 1984, pp. 49-55, p. 54.

17. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 3a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 218.

18. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 217.267/SP, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, publicado no DJU de 08/11/99.

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19. ARZUA, Heron; GALDINO, Dirceu. "As multas fiscais e o poder judiciário", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 34-40, p. 36.

20. FRIAS, J. E. S.. "A astreinte, do direito estrangeiro ao brasileiro", in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano IV, 2o trimestre, nº 14, pp. 11-20, pp. 12-15.

21. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 94.966-6, Relator Ministro Moreira Alves, publicado no DJU de 26/03/82.

22. Tributo é toda a prestação pecuniária compulsória....que não constitua sanção por ato ilícito....(art. 3º do CTN)

23. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 891-901.

24. Ver informativo 115 do Supremo Tribunal Federal: "Entendendo que a Súmula 565 do STF foi recepcionada pela CF/88 ("A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência."), a Turma negou provimento a agravo regimental interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul em que se pretendia a não incidência desta Súmula quanto aos créditos tributários de competência estadual, cobrados via executivo fiscal contra a massa falida. Afastou-se a alegada ofensa aos artigos 150, § 6º ("Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g."), e 151, III (" Art. 151. É vedado à União:... III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."), ambos da CF. Precedentes citados: AG (AgRg) 197.625-RS (DJU de 17.10.97); RE (AgRg) 212.839-RS (DJU de 14.11.97). AG (AgRg) 212.963-RS, rel. Min. Octavio Gallotti, 16.6.98. (Grifamos)

25. SPISSO, Rodolfo. Derecho constitucional tributario. Buenos Aires: Ediciones Delpalma, 1993, pp. 281-282.

26. WAGNER, José Carlos Graça. "Penalidades e acréscimos na legislação tributária", in Caderno de Pesquisas Tributárias, vol., 2a tiragem, 1990, pp. 325-336, p. 329.

27. LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. "O depósito administrativo fiscal e a violação ao princípios da razoabilidade e proporcionalidade", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 58, março de 2000, pp. 75-81, p. 75.

28. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 39-40.

29. MENDES, Gilmar Ferreira. " O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", in Repertório IOB de Jurisprudência, nº 14, caderno 2, 2a quinzena de julho de 2000, pp. 361-372, p. 371.

30. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1075–1/DF, Relator Ministro Celso de Mello, data de Julgamento da Liminar no Plenário em 17.06.1998, acórdão pendente de julgamento.

31. Ver COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; DERZI, Misabel Abreu Machado. "Da inexigibilidade das multas fiscais em regime de concordata", in Revista dos Procuradores da Fazenda Nacional, ano 1, nº 1, janeiro de 1997, pp. 63-112

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Imposto de Importação e majoração desmotivada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2001. Acesso em: 26 abr. 2024.

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