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O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo

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4. O Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumior é multidisciplinar, posto conter em seu contexto normativo os regramentos básicos da defesa das relações de consumo tanto na esfera civil, processual, administrativa e penal. Com isso buscou o legislador emprestar maior efetividade à defesa e coerência na aplicação da lei com vistas à proteção do bem jurídico tutelado.

Não se quer dizer com isso que outras leis tais como o Código Civil ou o Código Penal não sejam aplicáveis às relações de consumo; porém, isso somente ocorrerá de modo subsidiário ao Código de Defesa do Consumidor, a fim de ser suprida eventual lacuna do texto legal, e desde que tal incidência não entre em conflito com os novos princípios instituídos pela legislação consumerista.

Há que se ter em conta o caráter principiológico do Código de Defesa do Consumidor, aplicável a toda relação de consumo, pouco importando a sua natureza - contratual ou extracontratual -, ou espécie, como demonstrou o mestre Nelson Nery Júnior: "É preciso aliar-se ao fato de o CDC ser lei especial que regula as relações de consumo, a circunstância de que o Código é um microssistema que contém regramentos e princípios gerais sobre relações de consumo, que não podem ser modificados por leis posteriores setorizadas, isto é, por leis que tratem de algum tema específico de relações de consumo.

Assim, sobrevindo lei que regule, v.g. transportes aéreos, deve obedecer aos princípios gerais estabelecidos no CDC. Não pode, por exemplo, essa lei específica, setorizada, posterior, estabelecer responsabilidade subjetiva para acidentes aéreos de consumo, contrariando o sistema principiológico do CDC, que prevê o regime da responsabilidade objetiva para os acidentes de consumo (CDC, arts. 6º, VI, e 12).

Pensar-se o contrário é desconhecer o que significa o microssistema do Código de Defesa do Consumidor, como lei especial sobre relações de consumo e lei geral, principiológica, à qual todas as demais leis especiais setorizadas das relações de consumo, presentes e futuras, estão subordinadas."(33)

A modificação no sistema introduzida por estas novas leis é substancial, conseqüência direta do abrangente campo de aplicação que o legislador costuma conceder a estas leis. Muitas vezes, seu campo de aplicação será coincidente com o campo de aplicação de outras leis especiais, de forma a combater privilégios não mais condizentes com os novos valores que pretende introduzir.(34)

A entrada em vigor de uma nova lei de função social traz como conseqüência natural uma modificação profunda no ordenamento jurídico vigente.(35) Daí a dificuldade do operadores do direito em interpretá-la tomando por base o pensamento e a filosofia que impregnavam o direto codificado do século XIX.

Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor é uma destas leis de função social, as quais têm o mérito de positivar as novas noções valorativas orientadoras da sociedade, procurando, assim, assegurar a realização dos modernos direitos fundamentais (direitos econômicos e sociais) previstos nas Constituições. Leis típicas do intervencionismo do Estado Social, elas nascem com a difícil e a específica função de servir de parâmetro de nova orientação, de efetivo instrumento para alcançar o equilíbrio social que o legislador moderno pretende realizar.(36)

Ninguém duvida da árdua e difícil – para muitos praticamente impossível – tarefa de mudar a realidade através de normas jurídicas. O legislador, porém, na sua sociológica e política finalidade de transformar a realidade cuida de dotar as leis de função social de uma série de características que, no sistema do Direito, isto é, internamente no ordenamento jurídico de determinado país, as possibilitarão de cumprir a sua função.(37)

São leis declaradas de ordem pública, a reconhecer a superioridade da lei em relação à autonomia da vontade do indivíduo. São normas, portanto, inderrogáveis pela ação da vontade do indivíduo, a regular de maneira imperativa e imediata as questões jurídicas que tratam.(38)

Trata-se, pois, de conjunto ordenado de princípios e de normas editado para a proteção de direitos reconhecidos universalmente às pessoas, uma vez que ínsitos em sua própria essência, a saber, os direitos à vida, à segurança, à higidez física, à higidez psíquica, à intimidade, à honra e outros que se incluem no elenco dos denominados direitos da personalidade. Volta-se ao amparo das pessoas nas relações de consumo, ou seja, enquanto participantes de operações em que se apresentam como destinatárias finais dos produtos ou dos serviços oferecidos ao mercado.(39)

4.1. - Natureza das Normas Protetivas dos Consumidores: A Ordem Pública

Somente a partir da 1ª Guerra Mundial, com as profundas modificações que acarretou no meio sócio-econômico e político, é que ocorreu um fenômeno no Direito, forçado pela necessidade de se restabelecer a paz social, que possibilitou abalar a autonomia da vontade nas relações contratuais, que deixaria de ser um princípio sem limites para admitir limitações. Tal fenômeno ficou conhecido como dirigismo contratual, fundado no reconhecimento de que a autonomia da vontade das partes em um determinado ajuste privado cede às exigências do bem comum, que deve prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fator limitativo da liberdade contratual.

No Brasil tal visão é acentuada pela caráter social da Constituição Federal de 1998, a qual, como já se disse, claramente impõe freios à livre atuação dos agentes econômicos.

Com isso, o Direito Privado passa a sofrer uma influência direta da Constituição, da nova ordem pública por ela imposta e muitas relações particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, obtêm uma relevância jurídica nova e um conseqüente controle estatal, que já foi chamado de "publicização do direito privado". A defesa do consumidor inclui-se, assim, na chamada ordem pública econômica, cada vez mais importante na atualidade pois legitima e instrumentaliza a crescente intervenção do Estado na atividade econômica dos particulares.(40)

A expressão Ordem Econômica designa, com as expressões Ordem Política e Ordem Social, um universo presidido por princípios, e regras rígidas, que as informam, assegurando-lhes condições de existência, resguardo e equilíbrio, endereçando-se, em cada Estado, a regra jurídica constitucional e a lei contra qualquer tipo de ato atentatório pertubador da atividade humana, no seio de cada Ordem.(41)

Ao lado da ordem pública social e da ordem pública econômica, fala-se modernamente em ordem pública de proteção dos consumidores, com especial incidência nas relações de consumo por contrato de compra e venda. Com efeito, as regras ortodoxas do direito privado não mais atendem à ordem pública de proteção do consumidor, notadamente quanto aos vícios do consentimento, à noção de causa no contrato, ao regramento da cláusula penal, à teoria das nulidades e à proteção contra as cláusulas abusivas. Daí a necessidade de criar-se um microssistema informado por modernas técnicas de implementação de regras de ordem pública modificadoras da então ordem jurídica privada vigente no Brasil, em atendimento aos preceitos universais que reclamam seja feita defesa mais efetiva dos direitos dos consumidores."(42)

Seguindo a linha adotada pelos legislador constitucional, o Código de Defesa do Consumidor veio cumprir o expresso mandamento previsto no artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal: "Art. 1º - O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e Art. 48 de suas Disposições Transitórias."

O Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública, pois salvaguarda relevantes interesses sociais.

E sendo de ordem pública(43), incide mesmo contra a vontade dos interessados, devendo o juiz conhecer todas as questões de ofício, bastando que delas tenha tido conhecimento no decorrer do processo.

As normas de ordem pública representam uma das formas de intervenção do Estado Social no domínio econômico, fruto do fenômeno denominado dirigismo contratual, o qual atua como fator de mitigação da autonomia privada.

O Estado atinge o seu objetivo protecionista através de dois enfoques. Primeiramente, a desregulamentação econômica, eliminando as restrições impostas à circulação de bens, preservando a liberdade do tráfico mercantil, mas tudo sob a tônica da intervenção do Estado. O segundo enfoque para obter os objetivos desejados - restabelecimento das relações contratuais, equilíbrio - é a presença do dirigismo contratual, que durante o período do liberalismo era visto como verdadeiro "atentado à liberdade contratual". O estabelecimento, em determinados negócios específicos, de condições contratuais a serem observadas, o ordenamento impõe situações que obrigatoriamente devem constar da contratação, não podendo as partes, por sua própria vontade, derrogar ou mesmo alterar as disposições, uma adaptação dos contratos às circunstâncias econômicas, procurando manter situação de paridade entre prestação e contraprestação, o sinalagma.(44)

Sobre a importância das normas de ordem publica, o jurista argentino Rubén S. Stiglitz diz que "Lo cierto es que la dificultad em capturar conceptualmente la noción de orden público com um criterio universal, há generado algunas alternativas: la de quienes, por uma parte. agrupan por categorías las disposiciones que revisten esse carácter, la de quienes intentan aportar nuevos elementos que permitan precisar el perfil de tan imprecisa noción, y la de quienes contribuyen convergentemente em enunciar supuestos y enriquecer el concepto. Em esta última opción se adscribe Enneccerus cuando, al referirse a la preponderancia del interés público y a la consiguinte interferencia de disposiciones forsozas en el derecho privado, alude a las exigencias del bien general, concepciones morales, la seguridad del tráfico, la tutela de la familia y los económicamente más débiles o la protección contra la propia ligereza y la propria inexperiencia, como elementos condicionantes de um derecho privado forzoso que aun así sigue siendo propiamente derecho privado.

Aquel cartabón referido a los económicamente más débiles, reiteradamente há sido aplicado em pronunciamientos judiciales referidos a las relaciones industriales (contrato de trabajo), y a al venta de inmuebles em fracciones y a plazos y a las leyes de emergencia (contrato de locación de inmuebles).

De lo hasta aquí expresado se desprende que la noción de orden público porta aptitud suficiente em punto a la corrección de situaciones creadas, abusos del derecho, e injusticias generales previstas por la organización social, por la cual cumple uma función reguladora, de carácter institucional, cara al Estado, reparadora y solidarista.

El efecto que trae aparejada la celebración de um contrato contrario al orden público, debe ser la nulidad por ilicitud em función de lo previsto por el art. 21 del Cód. Civil: "Las convenciones particulares no pueden dejar sin efecto las leyes en cuya observancia estéan interesados el orden público y las buenas costumbres". (45) (Grifamos)

O fenômeno do dirigismo contratual não se dá em qualquer situação, mas apenas nas relações jurídicas consideradas como merecedoras de controle estatal para que seja mantido o desejável equilíbrio entre as partes contratantes.(46)

As leis reguladoras têm por escopo o restabelecimento do equilíbrio contratual, criando barreiras ao abuso do poder econômico e mecanismos preventivos - controle administrativo do conteúdo das condições gerais de negociação ou estabelecimento de regras legais para não se admitir a imposição de determinadas situações -, limites legislativos e, por fim, tornar mais fácil o acesso da parte contratante mais frágil ao Judiciário.(47)

Assim, o contrato, anteriormente concebido como o intangível acordo de vontades formalizado entre duas pessoas capazes encontra limites no próprio ordenamento jurídico que lhe dá sustento, em virtude da nova visão social do contrato, com especial ênfase nos deveres anexos de conduta, corolários da boa-fé objetiva, bem como nas normas jurídicas de ordem pública, como bem diz sobre estas últimas o mestre de sempre Orlando Gomes: "A liberdade de obrigar-se tem limites. Se bem que o regime dos contratos se constitua basicamente de preceitos de caráter supletivo, há princípios gerais e normas imperativas que devem ser respeitados pelos que querem contratar, certo sendo que a vontade dos contratantes, conquanto autônoma, sempre encontrou limitações na lei. A ordem jurídica descansa em princípios gerais que dominam toda a área do direito contratual. Para se resguardar nos seus fundamentos e preservar sua política institui a ordem pública e os bons costumes como fronteiras da liberdade de contratar e atribuir caráter imperativo a preceitos cuja observância impõe irresistivelmente, negando validade e eficácia aos negócios jurídicos discrepantes desses princípios ou infringentes dessas normas."(48)

Segundo o escólio do genial Pontes de Miranda, "Direito cogente (impositivo, proïbitivo) é o direito que a vontade dos interessados não pode mudar. Uma vez composto o suporte fáctico, a regra jurídica incide, ainda que o interessado ou todos os interessados não no queiram."(49)

Por fim, cumpre sublinharmos que os fins visados pelas normas de ordem pública são, ao buscar a proteção dos interesses da parte mais fraca de uma relação jurídica, restringindo a liberdade contratual, a realização do pacto materialmente justo. Segundo o jurista português Antunes Varella, "Entre os fins visados por semelhantes restrições destacam-se o de assegurar a lisura e a correção com que as partes devem agir na preparação e execução dos contratos, o de garantir quanto possível a justiça real, comutativa (não a simples justiça formal expressa pela igualdade jurídica dos contratantes) nas relações entre as partes, o de proteger a parte que dentro da relação contratual se considera económica ou socialmente mais fraca e o de preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito."

4.2. Âmbito do Microssistema

Os artigos 2º e 3º da Lei nº 8.078/90 delimitam, num primeiro momento, o âmbito de incidência da tutela legal apenas e tão-somente às denominadas relações de consumo.

Poderíamos definir relações de consumo como o vínculo jurídico, consubstanciado em um produto ou serviço, existente entre um fornecedor e um consumidor.

Nos termos da lei fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, pública ou privada, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou serviços. Consumidor, por seu turno, é toda pessoa física ou jurídica que adquira ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final.

Aparentemente os conceitos de fornecedor e de consumidor não trariam qualquer problema dada a clareza com que se encontram presentes no texto legal.

No entanto, a situação é bastante debatida na doutrina, especialmente no que diz respeito a extensão do termo destinatário final, presente na conceituação legal de consumidor, e, também, no que concerne na possibilidade das pessoas jurídicas receberam a proteção do Código de Defesa do Consumidor.

Ao lado da definição legal dos conceitos de fornecedor e consumidor, o Código de Defesa do Consumidor veicula os denominados consumidores por equiparação.

Isso quer dizer que muito embora determinadas pessoas não se enquadrem prima facie na definição legal básica do artigo 3º, da Lei, serão consideradas consumidoras, e receberão a proteção especial do Código, desde que presentes os pressupostos previsto no parágrafo único, do artigo 2º, no artigo 17 e no artigo 29.

No que tange a equiparação existente no parágrafo único, do artigo 2º, do Código, o Código passará a incidir desde que uma coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, haja intervindo nas relações de consumo.

Para Arruda Alvim, "O que caracteriza os entes despersonalizados é, basicamente, a inexistência formalizada da chamada "affectio societatis" (intenção manifesta de manter vínculo associativo) dentro de um grupo que contenha um liame organizacional, tendo em vista sociedades de fato, lucrativas ou não.(50)

O segundo conceito de consumidor por equiparação legal encontra-se estampado no artigo 17, do Código de Defesa do Consumidor, e diz respeito a todas as pessoas que foram vitimadas por um acidente de consumo.

Acidente de consumo é o evento que causa dano aos consumidores em virtude de um defeito no produto ou no serviço. É também denominado de fato do produto ou do serviço.

O terceiro e último conceito de consumidor por equiparação diz respeito diretamente as práticas comerciais e contratuais abusivas, assim como a publicidade. Diz o artigo 29, do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 29 - Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas."

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O artigo em questão tem gerado inúmeras controvérsias, dado o seu amplo espectro de incidência: todas as pessoas expostas a uma das práticas nele previstas estariam sob o manto protetor do Código.

Para alguns, o artigo em comento disse mais do que tencionava, pois pretendia apenas reforçar a proteção do consumidor no campo contratual, das práticas comerciais e da publicidade.

Todavia, em que pesem as considerações em contrário, entendemos que o artigo 29, do Código de Defesa do Consumidor está a representar verdadeira regra de sobredireito, alcançando até os contratos interempresariais.

Em primeiro lugar, quando o artigo em comento veicula a equiparação legal de consumidor, ele apenas restringe a incidência do Código de Defesa do Consumidor aos capítulos nele indicados. Com efeito, essa é a única restrição existente.

Em segundo lugar, o artigo 29, do Código de Defesa do Consumidor, segundo entendemos, procura inserir no direito privado a moderna noção do direito obrigacional(51), o qual tem por objeto manter o equilíbrio e a proporcionalidade dos pactos privados. Como já se disse anteriormente, tendo em vista os valores maiores sufragados pelo texto constitucional - justiça, dignidade, igualdade - entendemos que o secular princípio da autonomia da vontade somente poderá ser exercido desde que respeitados tais valores, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.

E foi justamente isso que ocorreu: ao contrário do pensam alguns doutrinadores, o artigo 29 buscou humanizar e flexibilizar os princípios seculares do direito privado clássico, consentâneo aos princípios vigorantes no direito contratual moderno: autonomia privada, boa-fé objetiva e justiça contratual.

Nesse sentir, cumpre trazermos à colação o pensamento do ilustre desembargador gaúcho Antonio Janyr Dall´Agnol Junior: "Noticia Antonio Benjamin, incansável batalhador pela causa do "consumerismo" e jurista experimentado, que "o conceito do art. 29 integrava, a princípio, o corpo do art. 2º. Como conseqüência de lobby empresarial que queria eliminá-lo por completo, foi transportado, por sugestão minha, para o Capítulo V".

"Não houve qualquer prejuízo - prossegue o eminente autor. Mantém-se, não obstante a fragmentação do conceito, a abrangência da redação primitiva. O consumidor é, então, não apenas aquele que ‘adquire ou utiliza produto ou serviço’ (art. 2º), mas igualmente as pessoas expostas às práticas previstas no Código (art. 29). Vale dizer: pode ser visto concretamente (art. 2º) ou abstratamente (art. 29). No primeiro caso, impõe-se que haja ou esteja por haver aquisição ou utilização. Diversamente, no segundo, o que se exige é a simples exposição à prática, mesmo que não se consiga apontar, concretamente, um consumidor que esteja em via de adquirir ou utilizar o produto ou o serviço"."(52)

Prossegue o autor: "Em outros termos, estende-se a rede protetiva àquele que se encontra em situação de vulnerabilidade - de modo restrito, pois limitada ao conjunto de regras que compreendem os capítulos V e VI-, pouco relevando que não haja relação estritamente de consumo.

Esta tem sido a tendência jurisprudencial dos tribunais gaúchos, conforme se observa, para lembrar apenas os primeiros, de julgamentos publicados na Revista de Direito do Consumidor, em seus números 6 e 9. Em ambos os casos, cuidava-se de negócio jurídico de financiamento, figurando, de uma lado, instituição financeira, e, de outro, pequena empresa; nos dois julgamentos foram invalidadas, por abusivas, cláusulas contratuais, invocado o art. 51 do CDC; as cláusulas previam, em contrato de mera adesão, possibilidade de variação da taxa de juros pela predisponente."(53)

Como se vê, a técnica de equiparação de determinadas pessoas a consumidores adotada pelo Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 17 e 29 permite a sua aplicação até mesmo às hipóteses em que não haja uma relação de consumo propriamente dita - aqusição ou utilização de produtos ou serviços na condição de destinatário final -, o que representa grande avanço no direito pátrio, eis que visa inibir a utlização do instrumento contratual, máxime os contratos de adesão, como forma de prepotência, de pressão, de abuso, da parte econômica e técnicamente mais forte contra aquela que não se encontra no mesmo pé de igualdade. Em síntese, é o denominado take it or leave it basis.

4.2.2. Os Direitos Básicos dos Consumidores: A Efetiva Reparação

Dentre os vários direitos básicos que o Código de Defesa do Consumidor (art. 6º e incisos) positivou, destacamos aquele que interessa mais de perto à presente monografia: o direito à efetiva reparação de danos patrimoniais e morais.

Lê-se no artigo 6º, inciso VI, da Lei nº 8.078/90: "VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;"

Constitui direito básico dos consumidores a efetiva reparação de danos patrimoniais e morais causados pelos fornecedores de produtos e serviços em geral. E efetiva, na sistemática adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, significa a mais ampla possível, tendo em mira o restabelecimento do status quo ante.

Todo o aparato legal visa prevenir a ocorrência de danos ao consumidor, quer estipulando obrigações ao fornecedor, quer responsabilizando-o por danos e defeitos, quer restringindo a autonomia da vontade nos contratos, quer criminalizando condutas, mas isso não impede que tais danos venham a ocorrer. Daí ser assegurado como direito do consumidor o ressarcimento do prejuízo sofrido, seja patrimonial, individual, coletivo ou difuso, pois, do contrário, não haverá efetividade na tutela (art. 6º, VI).(54)

Com efeito, é o princípio da reparação integral, reflexo da garantia estampada no artigo 5º, incisos X e XXXII, e artigo 170, inciso V, da Constituição Federal, de modo que o viés constitucional deverá estar sempre presente na análise dos casos emanados duma relação de consumo.

Os produtos e serviços ofertados no mercado destinam-se a satisfazer as necessidades dos consumidores, nos aspectos de indispensabilidade, utilidade e comodidade, sendo conatural a expectativa de que funcionem conveniente e adequadamente ou se prestem à finalidade que deles legitimamente se espera. Não fosse assim e não estaria justificada a razão de sua existência.(55)

Para a consecução do seu objetivo, o Código de Defesa do Consumidor instituiu a responsabilização objetiva dos fornecedores de produtos ou serviços, vale dizer, independente da existência de culpa.

4.2.3. A Responsabilização Objetiva dos Fornecedores

O direito brasileiro adotava, tradicionalmente com regra, a responsabilidade civil dos particulares, em face da cláusula geral positivada no artigo 159, do Código Civil, prevendo a responsabilização do causador de determinado dano apenas quando o mesmo obrasse com negligência, imprudência ou imperícia. Portanto, caberia ao lesado, a fim de obter o ressarcimento que entendia pertinente, comprovar, além do dano e do nexo causal, ter agido o autor do fato com culpa, o que na maioria das vezes tornava impossível a reparação.

Todavia, se na sociedade rural a medida da responsabilidade de alguém era satisfatoriamente avaliada por um padrão de comportamento negligente, atribuível à conduta esperada de um homem médio, já na sociedade industrial esse critério entrou em crise, com a dificuldade de individualizar-se o culpado por ações perdidas no anonimato das cadeias de distribuição dos bens, estabelecidas nas fases intermediárias entre produção e consumo. Na atual sociedade tecnológica e pós-industrial, com mais razão, não se pode conviver com modelos jurídicos pertencentes a outras épocas. A responsabilidade civil não se assenta mais na conduta culposa de uma pessoa determinada, porque terminou a era do individualismo e do voluntarismo jurídico. Ela agora encontra seu fundamento num dever de solidariedade social, base de uma responsabilidade sem culpa.(56)

A descoberta do verdadeiro autor de um dano deu lugar à atribuição do dever do ressarcimento a um sujeito predeterminado, escolha que não é feita aleatoriamente, mas, na expressão de Eliseu Figueira, " segundo um critério de valoração de interesses", pelo qual "a responsabilidade é um conceito de relação entre uma atividade e um sujeito."(57)

O centro de interesse do sistema de reparação desloca-se do autor do dano para a vítima. Entre ambos há um conflito de interesses, envolvendo a liberdade de um e a segurança do outro. O dano constitui um atentado aos direitos da vítima, que devem ser reparados como os outros direitos subjetivos. Com essa fundamentação, Boris Stark desenvolveu sua toria da garantia, compreensiva de todos os casos de obrigação de reparar danos com abstração da culpabilidade. É menos importante a aplicação de sanção no plano subjetivo (culpa do defendente) do que os efeitos no plano objetivo (garantia dos direitos do demandante).(58)

Essa tendência vem sendo incorporada à legislação de muitos países nos últimos anos, geralmente precedidas por decisões jurisprudenciais que vão rompendo com as antigas barreiras da responsabilidade individual subjetiva(59), o que ocorreu com o Código de Defesa do Consumidor, diploma que expressamente contemplou a responsabilidade civil objetiva.

Seguindo tal tendência. consagrou o Código de Defesa do Consumidor, de forma incisiva e clara, que o fornecedor responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados por defeitos ou insuficiência e inadequação de informações, em relação aos produtos e serviços que colocou no mercado (CDC, arts. 12 e 14)(60)

A respeito, doutrina Nelson Nery Junior: "O Código adotou a teoria do risco da atividade como postulado fundamental da responsabilidade civil ensejadora da indenização dos danos causados ao consumidor. A simples existência da atividade econômica no mercado, exercida pelo fornecedor, já o carrega com a obrigação de reparar o dano causado por essa mesma atividade. A responsabilidade é, portanto, objetiva (arts. 12 e 18). Não é necessário que tenha agido com culpa, tampouco que a sua atividade esteja autorizada pelo órgão competente do poder público, ou, ainda, que tenha havido caso fortuito ou força maior. Apenas e tão-somente as circunstâncias mencionadas no CDC em numerus clausus como cláusulas excludentes do dever de indenizar é que efetivamente podem ser invocadas pelo fornecedor a fim de eximi-lo desse dever. Esse sistema é semelhante ao já existente no Brasil para o dano causado ao meio ambiente (art. 14 da Lei 6.938/81), que não admite o caso fortuito e a força maior como causas de exclusão da responsabilidade civil.

Como o sistema do CDC no que respeita à responsabilidade civil, é o da responsabilidade objetiva, deve ser aplicado a toda e qualquer pretensão indenizatória derivada de relação de consumo. Dizemos isso porque ao intérprete apressado poderia parecer que o CDC teria apenas regulado a responsabilidade civil pelos acidentes de consumo (fato do produto ou serviço), colocando-a sob o regime da responsabilidade objetiva, ao lado de regular, também, a responsabilidade pelos vícios do produto ou serviço, cuja norma reguladora (art. 18) parece tratar-se de responsabilidade subjetiva, porque não repetiu a locução "independentemente de culpa" constante do art. 12.

Em remate, conclui o festejado autor: "Conforme já salientamos alhures, tanto a responsabilidade pelos acidentes de consumo como a pelos vícios dos produtos e serviços são de natureza objetiva, prescindindo da culpa para que se dê o dever de indenizar. (...) Portanto, não teria sentido falar-se em responsabilidade subjetiva, com culpa, pelos vícios dos produtos e serviços no sistema do CDC, pois isto representaria retrocesso jurídico a um tempo anterior à edição de nosso Código Comercial de 1850! O CDC, por certo, veio para modernizar as relações de consumo. (...) Como as relações de consumo como um todo se encontram reguladas pelo microssistema do Código de Defesa do Consumidor, a elas são aplicáveis as regras e os princípios existentes no CDC. Somente devem incidir sobre elas as normas do Código Civil, Código Comercial, Código de Processo Civil etc., quando houver lacuna no CDC e, mesmo assim, se as normas desses outros diplomas não forem incompatíveis com os princípios reguladores das relações de consumo que se encontram expressamente tratados no CDC."(61)

4.3. A Disciplina dos Contratos no Âmbito do CDC

No contexto da teoria contratual clássica, o contrato era fruto da vontade de duas ou mais pessoas, as quais discutiriam cláusula a cláusula os termos do ajuste, eis que encontravam-se - ou pelo menos eram consideradas - no mesmo patamar de igualdade.

Entretanto, tal premissa era plenamente válida quando a sociedade levava em consideração as necessidades de um indivíduo ou ao menos de um pequeno grupo deles.

Todavia, atualmente, vivemos o período da economia de massas: produtos são desenvolvidos ou serviços são prestados em grande quantidade, tendo as relações jurídicas se despersonalizado. Os empresários não se importam com as reais necessidades dos consumidores, mas, ao revés, buscam neles incutir desejos, criar expectativas, ditar tendências que precisam ser seguidas, sob pena de serem excluídos socialmente.

Em matéria contratual, não mais se acredita que assegurando a autonomia de vontade e a liberdade contratual se alcançará, automaticamente, a necessária harmonia e eqüidade nas relações contratuais. Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizaram, aparecendo os métodos de contratação estandardizados, como os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos. Hoje esses métodos predominam em quase todas as relações entre empresas e consumidores, deixando claro o desnível entre os contratantes - um, autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. É uma realidade social bem diversa daquela do século XIX, que originou a concepção clássica e individualista do contrato, presente em nosso Código Civil de 1917.(62)

"La evolución económica y social de nuestro tiempo", disserta o jurista espanhol Luiz Diez-Picazo, "se ha visto condicionada merced a la dinámica interna del capitalismo por el fenómeno de la producción en massa y, por ello mismo, se ha visto forzada a una ampliación de la masa de los consumidores, que determina in ensanchiamiento del número de personas que aspiran a adquirir o desfrutar los bienes y los servicios que las grandes empresas proporcian. Este hecho ha determinado un tráfico económico, cada vez más acelerado, que se há ido convirtiendo en lo que rigurosamente puede llamarse un <<tráfico en massa>>."(63)

Todos os dias novas "necessidades" são criadas pela mídia através do bombardeio incessante de publicidade sob os mais diversos produtos ou serviços. O que importa para os empresários é criar a "necessidade vital"(64) do consumo.

Produtos que pouco interessavam anos atrás, hoje se mostram essenciais: o mais moderno aparelho de televisão estéreo ou a roupa usada pela estrela de tevê.

Na realidade, tais necessidades não são reais, mas sim criadas pela mídia que tem o interesse de manter a roda do consumo em pleno andamento. Quanto maior o consumo, maiores as verbas publictárias.

Com efeito, a publicidade faz com que as pessoas adquiram produtos por impulso. Você ainda não tem o relógio do James Bond? Não?! Ora, não corra o risco de ficar fora de moda! Adquira já o seu!

Por certo, a vida tornou-se uma verdadeira competição: compra-se cada vez mais não por necessidade, mas pelo desejo de não se ficar desatualizado, ficar deslocado na sociedade. Ora, se todos têm, por que não tenho? O ter é muito mais importante do que o ser.

Diante disso, indaga Philip Kotler: "O que o homem realmente precisa? Algumas centenas de grama de comida todos os dias, aquecimento e abrigo, dois metros para se deitar e alguma forma de trabalho que lhe proprocionará uma sensação de realização. E isso é tudo, sob o aspecto material. Todos nós sabemos disso. Mas recebemos uma lavagem cerebral de nosso sistema econômico, até que terminemos numa tumba, debaixo de uma pirâmide de prestações, hipotecas, utensílios absurdos, brinquedos que desviam nossa atenção de tudo isso."(65)

Como atualmente a regra é a fabricação e a aquisição de produtos ou serviços em massa, vale dizer, em larga escala, e por impulso, o dogma da autonomia da vontade sofreu forte abalo. Na sociedade moderna a liberdade contratual passou a ser unilateral. Em regra, a parte economicamente mais forte impõe à mais frágil as condições de contratação: se quiser adquirir ou usufruir de algo, que acate as regras.

Consciente de tal realidade, o Código de Defesa do Consumidor restringiu a liberdade contratual no âmbito das relações de consumo, invalidando cláusulas e instituindo padrões de conduta a serem seguidos pelos fornecedores de produtos e serviços. Buscou, com efeito, reequilibrar a força desigual dos figurantes das relações de consumo, privilegiando a boa-fé e a lealdade dos parceiros contratuais.

Hodiernamente, a nova concepção do contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para o qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.(66)

À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.(67)

O Código remodela a função jurisdicional na apreciação da legitimidade dos pactos privados, atribuindo poderes ao juiz para perscrutar o próprio conteúdo contratual. A atividade do magistrado deixa de ser apenas um controle formal da vontade dos contraentes, se comprometida (ou não) por vícios ou defeitos que retiram a validade do negócio jurídico. Em sede judicial, a atividade controladora do conteúdo contratual implica no exame da própria justeza do pacto, em termos de equilíbrio das obrigações assumidas.

Nesse contexto cabe ao juiz, pois, exercer o controle das estipulações contratuais, como doutrina o jurista italiano Enzo Roppo: "Ao juiz, na realidade, são facultados também instrumentos que lhe permitem controlar o regulamento contratual elaborado pelos sujeitos privados, e interferir, eventualmente, nas suas determinações, já não segundo uma lógica solidária com as escolhas da autonomia privada (como se viu acontecer com a interpretação e como o juízo de equidade) mas, ao invés, segundo uma lógica de potencial antagonismo relativamente a ela: são os instrumentos, através dos quais o juiz avalia se a operação realizada com o contrato se coloca, nalguma sua faceta, em conflito com os objetivos fundamentais e valores de natureza ética, social, económica, pelos quais se rege o ordenamento jurídico, ou até com as contingentes escolhas políticas do legislador - por outras palavras se os interesses privados prosseguidos com o contrato violam o interesse público, o interesse geral da colectividade."(68)

A visão teleológica e atual do Direito, alteração essa provocada pela Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor, passa a ser sempre presidida por uma lógica de solidariedade(69) e lealdade entre os parceiros contratuais, baseando-se na boa-fé e eqüidade, como bem salienta o jurista argentino Anibal Alterini: "El discurso jurídico descalificador de las cláusulas abusivas, y de las condiciones generales írritas, tiene un alto voltage ético: en él aparecen la moral, las buenas costumbres, el imperativo de la buena fe, las riquíssimas nociones del error y del dolo-engaño, del ejercicio regular de los derechos, de la lesión, de la delibilidad jurídica. Tales cláusulas abusivas son naturalmente inaceptables para el Derecho común, tanto en los contratos de empresa como en culaquier contrato."(70)

Vê-se, pois, que o contrato deixou a sua esfera jurídica restrita ao domínio da vontade das partes, para passar a integrar uma outra área, na qual se manifesta o predomínio do interesse da coletividade, cuja guarda, efetivação e incentivo cabe ao Estado como responsável pela implementação de políticas públicas destinadas a concretizar a ordem econômica e social.(71)

4.2.3.2 Os Contratos de Adesão

Fruto das novas necessidades advindas da sociedade de massas, surgiram os denominados contratos de adesão.

Contrato por adesão é aquele no qual as cláusulas são preestabelecidas unilateralmente por um dos futuros contratantes, de maneira que o outro não pode modificá-las, apenas aceitá-las ou repudiá-las, sem participação na configuração do conteúdo negocial.(72)

Essa técnica de contrato por adesão, sob condições gerais, preestabelecidas pelo fornecedor, é, nos dias atuais, inevitável, mercê da dinâmica do tráfico econômico moderno que impede a elaboração de contratos individuais e discutidos com cada um dos clientes. Um critério elementar de racionalização e organização empresarial (em si irrepreensível, pois visa ao progresso global), que conduz, contudo, à imposição de contratos uniformes, contratos-tipos, instrumentados em formulários, impressos, etc. (73)

Como se observa na sociedade de massa atual, a empresa ou mesmo o Estado, pela sua posição econômica e pelas suas atividades de produção ou de distribuição de bens ou serviços, encontram-se na iminência de estabelecer uma série de contratos no mercado. Estes contratos são homogêneos em seu conteúdo (por exemplo, vários contratos de seguro de vida, de compra e venda a prazo de bem móvel), mas concluídos com uma série ainda indefinida de contratantes. Logo, por uma questão de economia, de racionalização, de praticidade e mesmo de segurança, a empresa predispõe antecipadamente um esquema contratual oferecido à simples adesão dos consumidores, isto é, pré-redige um complexo uniforme de cláusulas à simples adesão dos consumidores, isto é, pré-redige um complexo uniforme de cláusulas, que serão aplicáveis indistintamente a toda esta série de futuras relações contratuais.(74)

Segundo Luiz Diez-Picazo, "Nos es posible que la gran empresa económica establezca contratos peculiares con cada uno de sus eventuales clientes. Un mínimo criterio de racionalización y de organización empresarial explica la necesidade del contrato único o contrato tipo, establecido por medio de formularios o de impresos. Las grandes empresas mercantiles o industriales mediante esos contratos en masa imponen a sus clientes un tipo de contratos previamente redactado. Estos contratos se refieren muchas veces a la utilización y a la defensa de bienes y servicios imprescindibles para la vida cotidiana o de uso necesario, y otras en contra a bienes cuya adquisición aparece impuesya por el nivel de vida.

De hecho, el esquema del contrato en masa y la estandardización de la materia contractual rompen el paradigma del contrato, que tenía in mente la doctrina tradicional. El presupuesto ideológico de la igualdad de los contratantes no pasa de ser una quimera. El contrato no es ya una regla de conducta, obra de común de ambas as partes. Es algo que una de ellas tiene que limitar-se a admitir, en virtud de una situación de necesidad y, por tanto, algo que le viene previamente impuesto."(75)

"Na sua formação teórica tradicional", ensina Antunes Varella, "o contrato é normalmente precedido de uma livre discussão entre os pactuantes sobre o teor de cada cláusula.

Pressuposto do debate prévio entre os contraentes é a igualdade jurídica das partes, uma das premissas em que o liberalismo individualista assentava a força soberana do contrato.

À medida, porém, que o poder económico dos grupos se foi fortalecendo com o desenvolvimento do capitalismo, a actividade das empresas se foi diversificando e a oferta dos produtos em massa se foi alargando, começaram a surgir e a multiplicar-se no comércio jurídico os casos em que a lex contractus é praticamente elaborada por um só dos contraentes, sem nenhum debate prévio acerca do seu conteúdo.

Ao outro contraente fica apenas, na prática, a liberdade (tantas vezes precária) de aceitar ou não o contrato que lhe é facultado, mas não a de discutir a substância das soluções nele firmadas.

Ao tipo de contratos assim forjados, bem próprios das sociedades de consumo e bem distanciados do modelo clássico da época liberal, é que na doutrina e prática dos países latinos se tem dado o nome sugestivo de contratos de adesão.

Diz-se, por conseguinte, contrato de adesão aquele em que um dos contraentes - o cliente, o consumidor - como sucede, por exemplo, na generalidade dos contratos de seguro e de transporte por via aérea, férrea ou marítima ou dos contratos bancários, não tendo a menor participação na preaparação e redação das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado.

Sucede, realmente, que determinadas empresas, explorando certos ramos de actividade comercial ou industrial ou a prestação de determinados serviços, em lugar de discutirem caso por caso o conteúdo dos contratos que celebram com os seus clientes, adoptam determinados padrões ou modelos que utilizam na generalidade dos seus contratos. Depois, seja porque a empresa tem o monopólio da actividade que explora, seja porque igual atitude é tomada por todas as empresas concorrentes (pondo em jogo s força resultante da sua fácil união contra a fraqueza relativa da outra parte, proveniente da sua debilidade económica ou da dispersão dos seus membros), os particulares, necessitados de celebrar o contrato, são forçados pelas circunstâncias a aceitar o modelo que de certo modo lhes é imposto. Eles são apenas livres de aderir ao modelo, padrão ou norma que lhes é oferecida, ou de a rejeitar, não de discutirem ou alterarem o conteúdo da proposta. Não há aqui, por conseguinte, a livre discussão entre as duas partes, que salutarmente costumava preceder a fixação do conteúdo do contrato e da qual nascia a seiva ético-jurídico do negócio bilateral.

Daí exatamente o nome de contrato de adesão, dado a esse tipo de convenções, que entre nós têm os seus exemplos mais vulgarizados, como vimos, nas várias modalidades do contrato de seguro, em algumas variantes do contrato de transporte (aéreo, marítimo ou terrestre), de fornecimento (de água, energia ou gás), em certas operações bancárias e nas promessas de compra e venda de imóveis."(76)

Para o mestre Orlando Gomes, "Seja qual for a natureza dos chamados contratos de massa, a verdade é que constituem uma técnica de legalização de operações econômicas que favorece a um dos participantes, ao lhe permitir a emissão de um regulamento que tem de ser aceito pelo outro, sem alternativa. É só e só ele que regula a operação, quer dizer, que traça o esquema da relação negocial; ao outro não se concede liberdade alguma no jogo das negociações pré-contratuais ou preliminares.

É compreensível que essa condição hegemônica - de preponderância, de superioridade, de supremacia -, da empresa que presta o serviço, fornece bens ou vende em massa sob o estímulo do mecanismo de contratação a incite a prescrever condições favoráveis a seus interesses e a impô-las em seu proveito. Pulverizada a clientela em centenas senão milhares de indivíduos interessados na obtenção do serviço, no fornecimento ou na aquisição do bem, cada qual se apresenta perante a empresa numa situação de inferioridade por força da necessidade de ter de se submeter ao regulamento prescrito e imposto. Atente-se para o casos, corriqueiros da vida moderna, da utilização de um transporte coletivo, do consumo de água, luz e força, do estacionamento pago de um automóvel, da compra num supermercado, e até mesmo, da contratação de um seguro ou de um empréstimo bancário. Quem precise se locomover, consumir, estacionar, comprar, fazer seguro ou tomar dinheiro emprestado, estrá adstrito à observância das regras estabelecidas unilateralmente pela empresa, ainda que proteste (protestastio facto contraria), alegue ignorância ou invoque erro. Desamparado, o cliente, seja um usuário seja um consumidor, precisa de amparo como parte fraca na relação jurídica que provoca. Daí por que a proteção do aderente se tornou o grande problema dos contratos de massa.

Passou, com efeito, a ser a principal preocupação do legislador, na seqüela da doutrina e da jurisprudência, concentrada a sua política em torno da idéia de que a proteção deve realizar-se mediante controles." (77)

O Código de Defesa do Consumidor, ciente da nova realidade econômica fulcrada na sociedade de massas, disciplinou, pela primeira vez no direito brasileiro, através do seu artigo 54 e incisos, o denominado contrato de adesão: "Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo."

Tal positivação tornou-se de extrema importância porque na realidade da economia de massas em que vivemos a parte que se investe de maior vantagem por estar dotada de maior quantidade de poder econômico terá sempre maior poder sobre a que detém menor poder econômico. Seria destruir a essência de uma relação econômica pura pretender, no nível de relação meramente econômica, qualquer contenção ao exercício e à efetivação desse poder de dominação. Desta forma, a tendência expansiva do fenômeno econômico puro levará seguramente à situação de prepotência do contratante mais forte sobre o mais fraco.(78)

A forma pela qual essa prepotência se concretiza na relação entre dois pólos de uma operação econômica se dá pela inserção de exigências destinadas a garantir aquela situação concreta de vantagem, atribuindo maiores porções à parte que já detém maior poder.(79)

Para concretizar e reafirmar esse objetivo de fortalecimento cada vez maior da parte mais forte economicamente, vale-se esta do fenômeno contratual e, através deste, da inserção de cláusulas garantidoras de sua situação de prevalência, que tende a se tornar cada vez maior. Assim, o instrumento que se destinava, no plano objetivo, a efetuar o deslocamento de riquezas em condições de equivalência de quantidade de riqueza transposta de parte a parte, assume, no plano subjetivo, uma situação propiciadora de desigualdade e até mesmo garantidora e incrementadora da prepotência de uma das partes na relação jurídica.(80)

No contexto dos pactos de adesão, portanto, dificilmente um resultado justo será alcançado, como bem doutrina o professor português Joaquim de Sousa Ribeiro em obra recente: "Um resultado justo não pode ser assegurado pelo simples facto de ter sido unilateralmente querido por um declarante. Essa conclusão é segura, sem reservas, quando ele lhe é favorável, pois cada um quer o máximo de vantagens para si, sem ter em conta os interesses dos outros. Mas também quando a consequência jurídica é desfavorável ao sujeito que a quer a garantia da sua adequação é ténue, pois é sempre de recear que ele só aceite desvantagens menos gravosas do que as que a justiça exigiria (e que o próprio, aliás, não está em condições de avaliar com rigor). Além de que a transferência só é adequada e tem sentido quando é proveitosa para o accipiens, e este a quer (daí o princípio do contrato, como regra, e, onde ele não vigora, a possibilidade renúncia ao benefício).(81)

Daí porque no âmbito dos contratos de adesão ou das condições contratuais gerais ser maior a incidência de cláusulas abusivas, impostas nestes pactos pelos fornecedores de produtos e serviços, a fim de submeterem os consumidores integralmente à sua vontade, pouco importando se o conteúdo da estipulação é ou não jurídico, melhor dizendo, justo.

4.3.2. As Cláusulas Abusivas

O fenômeno da elaboração prévia e unilateral, pelos fornecedores, das cláusulas dos contratos possibilita aos empresários direcionar o conteúdo de suas futuras relações contratuais com os consumidores como melhor lhes convém. As cláusulas contratuais assim elaboradas não têm, portanto, como objetivo realizar o justo equilíbrio nas obrigações das partes, ao contrário, destinam-se a reforçar a posição econômica e jurídica do fornecedor que as elabora.(82)

Não é raro, portanto, que contratos de massa, contenham cláusulas que garantam vantagens unilaterais para o fornecedor que as elaborou, diminuindo os seus deveres em relação ao consumidor, exonerando-o de responsabilidades, diminuindo assim seus riscos e minimizando os custos de uma futura lide. Assim, por exemplo, as cláusulas referentes às obrigações do fornecedor em caso de inadimplemento total ou parcial terão como objetivo, geralmente, limitar ao máximo estas obrigações, limitar a responsabilidade contratual do fornecedor, transferi-la a terceiros ou fixar sancionamentos indevidos para o caso de rescisão por parte do consumidor.(83)

São as chamadas cláusulas abusivas, as quais incluídas em contratos de adesão ou em condições gerais dos contratos vão ser oferecidas à aceitação pelos consumidores. Poderíamos perguntar porque o consumidor aceitaria contratar sob estas condições que lhe são tão gritantemente desfavoráveis. (84)

Em verdade, a maioria dos consumidores que concluem contratos pré-redigidos o fazem sem conhecer precisamente os termos do contrato. Normalmente o consumidor não tem a oportunidade de estudar com cuidado as cláusulas do contrato, seja porque elas se encontram disponíveis somente em outro local, seja porque o instrumento contratual é longo, impresso em letras pequenas e em uma linguagem técnica, tudo desestimulando a sua leitura e colaborando para que o consumidor se contente com as informações gerais (e nem sempre totalmente verídicas) prestadas pelo vendedor. Assim, confiando que o fornecedor cumprirá, pelo menos, o normalmente esperado naquele tipo de contrato, ele aceita as condições impostas, sem plena consciência de seu alcance e de seu conteúdo.(85)

A abusividade da cláusula contratual é, portanto, o desequilíbrio ou descompasso de direitos e obrigações entre as partes, desequilíbrio de direitos e obrigações típicos àquele contrato específico; é a unilateralidade excessiva, é a previsão que impede a realização total do objetivo contratual, que frustra os interesses básicos das partes presentes naquele tipo de relação, é, igualmente, a autorização de atuação futura contrária à boa-fé, arbitrária ou lesionária aos interesses do outro contratante, é a autorização de abuso no exercício da posição contratual (Machtposition).(86)

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Sobre o autor
Alessandro Schirrmeister Segalla

advogado em São Paulo , especialista em Direito das Relações de Consumo com Extensão em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Aluno Especial do Programa de Mestrado em Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2008. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Texto adaptado de trabalho apresentado como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito das Relações de Consumo perante a PUC/SP. Agradecimentos: Professor Luiz Antonio de Souza, da PUC/SP e Exmo. Sr. Min. José Augusto Delgado, do Superior Tribunal de Justiça

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