Resumo: A premente necessidade de se conferir efetividade à tutela jurisdicional, de modo a garantir a realização dos direitos sociais elencados na Constituição, somada aos ideais contemporâneos que indicam ser a participação democrática da sociedade nas atividades exercidas pelos Poderes, em especial pelo Judiciário, um elemento essencial do Estado Democrático de Direito, faz com que se torne necessária uma reflexão sobre a possibilidade de participação da figura do amicus curiae nos processos de natureza coletiva. Em face do evidente interesse público existente em tais demandas, o objetivo primordial do presente trabalho é demonstrar a necessidade de admissão (e de sistematização da atuação processual) deste importante auxiliar do juízo no âmbito da defesa dos interesses metaindividuais.
Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. Abordagem constitucional; 2.2. O amicus curiae e a tutela dos direitos coletivos lato sensu: apontamentos históricos e questões doutrinárias relevantes; 2.2.1. A evolução histórica do conceito de amicus curiae,sua natureza jurídica e o tratamento dispensado ao "amigo da corte" pela doutrina contemporânea; 2.2.2. Os direitos coletivos lato sensu e sua titularidade: breve análise da legitimidadenas ações coletivas e o papel da participação de terceiros; 2.3. A participação do amicus curiae nas demandas de natureza coletiva: os fundamentos e as implicações práticas de sua atuação processual; 2.3.1. O processo civil de interesse público como justificativa para a intervenção do amicus curiae nas ações coletivas: o ponto de contato entre o instituto e a tutela dos interesses metaindividuais; 2.3.2. A necessidade de sistematização da atuação do amicus curiae na tutela coletiva: o microssistema de Processo Coletivo e o atual "microssistema" delimitador da atuação do amicus curiae no processo civil brasileiro; 2.3.3. A harmonização do instituto do amicus curiae para com as tendências reformadoras no processo civil brasileiro; 3. Considerações finais; 4. Bibliografia.
1. Introdução
Nos últimos anos, intensificaram-se no Brasil os estudos acerca do amicus curiae, sendo possível encontrarmos hoje um vasto número de obras que tratam do tema, dada a sua inegável importância. Podemos afirmar ainda que, apesar de serem diversas as opiniões - sobretudo em relação à natureza jurídica da participação desta figura no processo civil - andou bem a doutrina, tendo em vista a seriedade com que o assunto vem sendo esmiuçado, ficando evidenciada cada vez mais a impossibilidade de qualquer operador do direito abster-se de obter conhecimento acerca de institutos de natureza tão contemporânea.
Na mesma esteira, a tutela dos interesses coletivos lato sensu (assim entendidos os difusos, os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos, conforme a disposição do artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor) continua ganhando cada vez mais a atenção da doutrina, da jurisprudência e da legislação. Considera-se, cada vez mais, que os dogmas e os antigos institutos processuais já não são capazes de promover a tutela efetiva dos interesses da sociedade contemporânea, esta entendida como uma sociedade de massa, e que por tal motivo toma parte, com muita frequência, de conflitos também de massa, carecedores de soluções desprovidas do individualismo e da antiga concepção exclusivamente privada que pairava sobre a maior parte das demandas trazidas a juízo.
Não parece possível que o Estado Democrático e de Direito consiga atingir tais objetivos – dar soluções que mais se aproximam dos ideais de justiça às lides que envolvam interesse de uma coletividade – sem o auxílio do amicus curiae nos processos de natureza coletiva. Tendo em vista que é da essência desta participação no processo a colaboração útil da sociedade à tarefa de julgar exercida pelo magistrado, motivada pela relevância para a coletividade de que goza a demanda em questão, pode-se afirmar que sua admissão será frequentemente possível no julgamento das ações coletivas, sendo inegável que delas o interesse público é praticamente indissociável. Trata-se, portanto de efetivação da participação democrática da sociedade no âmbito do Processo Civil Constitucional brasileiro.
Em decorrência desta realidade, o tratamento a ser dado ao "amigo da corte" no Processo Coletivo passa a ser de extrema importância e, em face disto, a questão a ser respondida neste breve trabalho é se existe ou não a possibilidade de sua admissão como interessado em tais processos. Faz-se necessário o confronto do instituto com os diplomas legislativos vigentes, no intuito de sistematizar-se tanto a sua admissibilidade quando a forma de sua atuação processual. E como consequência, busca-se despertar a atenção do legislador para a necessidade de regulamentação de tais questões, sempre norteada pela ideia de conferir segurança jurídica às relações sociais.
Este trabalho pretende, de modo geral, trazer uma breve exposição da figura do "amigo da corte", no tocante à sua harmonização com o Processo Coletivo brasileiro no seu atual estágio, e, especificamente, demonstrar a necessidade de realizar-se uma sistematização de sua participação nas relações processuais desta natureza, em consonância com os objetivos do Direito Processual Constitucional moderno, em cuja esfera se faz imprescindível a participação democrática da sociedade.
A escolha do presente tema justifica-se diante da clara necessidade de obtenção de uma visão cada vez mais pragmática por parte dos profissionais da área jurídica, o que também é uma das justificativas para que tais estudos não fiquem restritos apenas ao âmbito acadêmico, embora não se desconsidere a relevância desta perspectiva. O aumento exponencial de decisões em relação ao amicus curiae que hoje pode ser observado nos tribunais, bem como a atuação frequente da figura no âmbito do Processo Civil Constitucional, corrobora de modo inequívoco tal afirmação, cabendo ao operador do direito empenhar-se em buscar soluções para as lacunas legislativas no ordenamento pátrio, de forma a atender aos anseios de uma sociedade que carece de segurança jurídica.
Pretende-se realizar o presente trabalho, basicamente, por meio de pesquisa bibliográfica, de forma a demonstrar o entendimento da mais recente doutrina sobre os temas abordados, buscando assim responder às questões apresentadas. Não obstante, serão realizados apontamentos jurisprudenciais no decorrer da exposição, demonstrando assim o pragmatismo necessário à análise dos problemas a serem discutidos e enfrentados ao longo do trabalho.
2. Desenvolvimento
2.1. Abordagem constitucional
A Carta Constitucional de uma nação deve ser entendida como resultado das conquistas políticas da sociedade que a instituiu. Da mesma forma, o Estado Democrático de Direito deve se apresentar firme diante dos seus destinatários, principalmente quando a sociedade a ele submetida exige a efetiva realização das promessas e programas constitucionais ainda não cumpridos. O ordenamento constitucional, portanto, não pode estar em desconformidade com a realidade que pretende regular, sob pena de sucumbir à ineficácia de sua promulgação. [44]
Sem embargo, a participação popular no Estado Democrático de Direito não pode estar restrita à esfera política, no sentido, por exemplo, de exercício de representação direta pelo voto, mas, a contrario sensu, fazer-se presente em âmbitos maiores de atuação, possibilitando o mais amplo debate, por exemplo, nas instâncias jurisdicionais, com o objetivo de fazer valer os direitos que lhe são constitucionalmente assegurados, individual ou coletivamente. [01] Ademais, o fato de que o Poder Judiciário é considerado atualmente o verdadeiro responsável pela concretização e efetividade dos direitos sociais termina por corroborar este entendimento.
A partir deste raciocínio, considera-se que, apesar do reconhecimento da indiscutível importância do Judiciário como intérprete formal da Constituição, os juízes não detêm o monopólio desta atividade. O modelo do Estado Democrático de Direito necessita uma interpretação aberta, capaz de absorver a heterogeneidade e complexidade da sociedade atual. Leciona Gilmar Ferreira Mendes, na introdução da obra do ilustre doutrinador Peter Häberle, que: "A interpretação constitucional dos juízes, ainda que relevante, não é (nem deve ser) a única". [02] Isto porque existe, claramente, a impossibilidade de que os tribunais detenham um poder incontestável de dizer a norma constitucional, tendo em vista que a hermenêutica constitucional não está acorrentada aos procedimentos formalizados, nem limitada à palavra final dos juízes. O processo de interpretação da norma constitucional deve ser aberto e democrático e capaz de legitimar interpretações no seio de uma sociedade plural e heterogênea. Assim, na esteira das ideias difundidas por Peter Häberle, todos os cidadãos, grupos e órgãos devem estar legitimados a interpretar e realizar a Constituição, tendo em vista que o processo de abertura dos intérpretes constitucionais insere a sociedade aberta e pluralista no debate político-constitucional. [03] Tal conceito é assim explicado pela doutrina:
[45]O modelo constitucional tradicional atribuía aos órgãos do Estado, aos agentes públicos e às partes litigantes a função de exegeta constitucional. No entanto, modernamente, o conceito de intérprete constitucional e sua extensão vêm sendo repensados, a partir da constatação do pluralismo social. Sem embargo, a doutrina moderna, em especial a alemã e norte-americana, prega ser a hermenêutica constitucional um processo aberto, abrangendo toda a sociedade, que é participante desse processo, já que "a interpretação constitucional jurídica traduz a pluralidade da esfera pública e da realidade". Para Peter Häberle, a constituição é a síntese dialética entre a norma e a realidade social concreta por ela regulada. Todos os cidadãos são também intérpretes da constituição. [04]
Como será visto adiante, o amicus curiae foi adotado pelo ordenamento jurídico pátrio em diversas ocasiões, estando algumas delas presentes no âmbito da jurisdição constitucional, diante da premente necessidade de disponibilizar-se a maior quantidade possível de informações ao juiz constitucional, possibilitando-lhe, assim, a realização de uma análise mais realista e concreta do alcance da norma impugnada e dos reflexos que a decisão acarretará, objetivo este que, segundo Häberle, não poderia ser alcançado sem o efetivo aumento do número de participantes do processo constitucional. [05]
Ainda, no entendimento da doutrina, a razão da possibilidade de atuação amicus curiae no controle de constitucionalidade reside na sua importância política, ou seja, no interesse público de participar da jurisdição constitucional. Então, defende-se que, em atenção ao mesmo fundamento, as mesmas regras deverão ser aplicadas, pois, conforme será visto, o "amigo da corte" já tinha previsão normativa no direito brasileiro antes mesmo de sua inclusão no âmbito da jurisdição constitucional, diante da clara preocupação com o legislador em concretizar o interesse público de controle da sociedade sobre determinadas atividades. Logo, não só no âmbito da jurisdição constitucional deverá incidir o instituto do amicus curiae, mas em qualquer outro processo em que presente o interesse público na participação processual, já que se trata de instrumento garantidor da participação democrática. [06]
No decorrer do presente trabalho, será evidenciado que em nenhum momento é possível desvincular o interesse público do seio das ações de natureza coletiva. A clara necessidade de participação da sociedade na colaboração para o justo julgamento de tais demandas, diante do interesse público nelas presente, se torna o principal fundamento da legitimação do amicus curiae em sua atuação processual nesta esfera. Colaborar com o debate, de forma a propiciar decisões jurisdicionais legítimas numa sociedade cada vez mais complexa e pluralista, com o intuito de concretizar a participação democrática do corpo social nos processos judiciais como intérprete dos ditames constitucionais, é, portanto, a tarefa a que se propõe o "amigo da corte" no âmbito da tutela coletiva.
2.2. O amicus curiae e a tutela dos direitos coletivos lato sensu: apontamentos históricos e questões doutrinárias relevantes.
2.2.1. A evolução histórica do conceito de amicus curiae,sua natureza jurídica e o tratamento dispensado ao "amigo da corte" pela doutrina contemporânea.
Apesar de existir certa divergência na doutrina, pode-se afirmar que os primeiros traços da atuação do amicus curiae em juízo remontam ao direito romano. Poderia o juiz romano, quando considerasse necessário ao efetivo julgamento da controvérsia, valer-se do auxílio de um indivíduo que possuía conhecimento técnico acerca do objeto da discussão, ou mesmo da opinião do consilium, um órgão colegiado que era responsável por desempenhar diversas funções na sociedade romana, de cunho político, religioso ou administrativo. A atuação deste auxiliar do juízo, individualmente ou em grupo, possuía, principalmente, duas características: dependia de convocação por parte do julgador, e após isto, o mesmo passava a atuar conforme seu livre convencimento, com certa neutralidade, observando os princípios gerais do direito à época. [07]
Basicamente, este auxiliar deveria ser leal aos juízes, desempenhando um papel de observador neutro na demanda, com o objetivo de evitar algum eventual erro na atuação do magistrado. Por isso, parte da doutrina não considera esta figura como embrionária do conceito de amicus curiae, tanto por conta desta neutralidade em sua atuação, bem como pela necessidade de provocação do juiz para possibilitar o seu ingresso na demanda, passando a considerar que as reais origens do instituto são provenientes não do direito romano, mas sim do direito inglês medieval. [08] Já neste período, o amicus curiae participava do processo apontando precedentes jurisprudenciais não mencionados pelas partes ou ignorados pelo julgador, atuando em benefício de menores, chamando a atenção do julgador para fatos como: erro manifesto, morte de uma das partes, descumprimento de certo procedimento, ou existência de norma específica regulando a matéria. Cumpria um papel meramente informativo e supletivo, mas considerado de extrema importância para a obtenção de uma justa solução da demanda. [09]
Ainda neste período, a atuação do "amigo da corte" sofreu certa ampliação, encaixando-se perfeitamente como um elemento apto a solucionar um dos principais problemas inerentes ao adversarial system (o sistema processual utilizado no direito inglês), que se caracterizava pela total autonomia das partes em tomar a iniciativa da instauração do processo, bem como em determinar em que passo e de que forma caminharia o procedimento a ele atribuído. Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá, ao escrever sobre as origens do instituto, assim explica:
Havia, portanto, natural resistência à interferência de terceiros no processo, que se realizava sob a égide do "trial by duel". Entretanto, essas características do adversary system acabavam por dar espaço a intentos pouco legítimos das partes, como os processos movidos com propósitos colusivos. E foi exatamente nesse ponto que a função do amicus curiae passou a ganhar mais importância para a própria administração da justiça. O terceiro comparecia em juízo para apontar a intenção fraudulenta e colusiva das partes, não raramente em casos nos quais ele próprio detinha interesse na demanda, muito embora não participasse formalmente do processo. [10]
Observa-se, portanto, que o amicus curiae surgiu como uma forma de auxílio ao julgador no esclarecimento de questões fáticas e de direito, sem que a figura manifestasse interesse próprio, mas que, com a evolução da jurisprudência (já que o "amigo da corte", obviamente era estritamente vinculado e leal ao julgador), passou a ser também um meio de proteção do interesse de terceiros, manifestando-se contra intenções fraudulentas e colusivas das partes no processo.
Porém, parece que foi somente no direito norte-americano que a figura do "amigo da cúria" sofreu uma evolução significativa, passando a ser uma modalidade de intervenção processual que, em linhas gerais, influenciou o sistema jurídico de diversos países ao redor do mundo. Absorvido do direito inglês, o instituto passou gradativamente a deixar de ser um instrumento desinteressado, demonstrando verdadeira parcialidade e comprometimento para com interesses não representados pelas partes em juízo, sejam eles de um indivíduo ou de uma coletividade, abandonando assim a característica de neutralidade que lhe era inerente anteriormente. [11] Não obstante, foram observados casos em que entidades públicas passaram a ser admitidas como amici curiae, sob o argumento de haver a necessidade de defender-se interesse, considerado público, não representado pelas partes em juízo, fazendo com que a doutrina passasse a considerar a existência de dois grandes grupos: os amici curiae governamentais e os amici curiae privados. [12] Entidades privadas e públicas passaram a atuar (frequentemente de forma simultânea) incisivamente nas demandas judiciais em que a sua participação na qualidade de amici curiae era admitida. Antonio do Passo Cabral, escrevendo sobre o tema, trouxe a lume casos curiosos, que demonstravam esta tendência:
Com efeito, o amicus curiae ofereceu mecanismo da ampla participação social em alguns célebres casos da jurisprudência norte-americana. Durante o julgamento do caso Paterson v. McLean Credit Union, 112 entidades privadas, 47 State Attorney Generals, 66 Senadores dentre outros grupos foram admitidos como amici curiae. No caso Gideon v. Wainright, julgado em 1963, em que se discutia a constitucionalidade de um julgamento sem a assistência de advogado, mais de 20 Estados-membros da Federação e outras entidades intervieram nesta condição. Também no caso Romer v. Evans, em que se debatia acerca da constitucionalidade de uma lei estadual que restringia posições jurídicas de indivíduos homossexuais, a atuação de um grupo de entidades, na condição de amicus curiae, representou decisivo fator para o resultado do processo. [13]
Percebe-se aqui o caráter de instrumento de resguardo do interesse público que passou a ter a intervenção do amicus curiae.
Em face da clara facilidade de adaptação do instituto ao sistema common law, outros países que utilizam este modelo jurisdicional passaram a admitir a participação do "amigo da corte", como o Canadá, onde a regra nº 92 do Regimento Interno da Suprema Corte permite que o tribunal ou um de seus membros possa nomear um amicus curiae. Também na Austrália existe a aplicação do instituto, mesmo sem previsão legal. [14]
Sem embargo, tal evolução foi também observada no âmbito do direito internacional, em face do esforço conjunto das nações para criar um sistema global de proteção dos direitos humanos, principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial. Organismos de defesa dos direitos humanos passaram a pressionar as instâncias internacionais de investigação e controle a tomarem medidas eficazes para o combate e prevenção de atos ofensivos a tais direitos. Órgãos para apuração de denúncias e aplicação de penalidades foram criados, cuja atividade sempre auxiliada por terceiros (amici curiae). [15] A título de exemplo, a doutrina menciona o artigo 45, alínea um, do atual Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que possibilita àquela Corte ouvir, na qualidade de testemunha, de perito ou por outro título, a qualquer pessoa cujo testemunho, declaração ou opinião considere pertinente. [16]
Após tais apontamentos, nota-se que a evolução do conceito de amicus curiae em sua trajetória ao longo dos anos, desenvolvendo-se nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo (até mesmo os supranacionais), gradativamente inclinou-se não somente à defesa de interesses meramente privados que não estariam representados em juízo, mas sim, principalmente, à tutela de interesses sociais, públicos, que não poderiam ser desconsiderados quando do julgamento de determinada demanda, em face dos efeitos deste claramente ultrapassarem os limites subjetivos da lide.
Além de acompanhar e descrever a evolução histórica do instituto, conforme acima exposto, a doutrina contemporânea também se incumbiu da tarefa, árdua, de tentar determinar a natureza jurídica da participação do "amigo da corte" na tutela jurisdicional. A principal celeuma em torno do tema possui o seu cerne na tentativa, por parte de alguns estudiosos e até mesmo da jurisprudência, de enquadrar a participação do amicus curiae entre as diversas modalidades de intervenção de terceiros previstas no Código de Processo Civil, em seus artigos 50 a 80 (assistência, oposição, nomeação à autoria, denunciação da lide e chamamento ao processo). [17] De forma diversa, a maioria dos autores que buscaram aprofundar-se no tema, a exemplo de Antônio do Passo Cabral, tratam sua participação como uma intervenção atípica ou especial de terceiros, considerando que, ainda que a mesma não esteja prevista entre as espécies regulamentadas no CPC, não pode ser desconsiderada a sua natureza efetivamente interventiva:
Aquele que atua como amicus curiae decerto não se inclui no conceito de parte, pois não formula pedido, não é demandado ou tampouco titulariza a relação jurídica objeto do litígio. Também não exterioriza pretensão, compreendida como exigência de submissão do interesse alheio ao seu próprio, pois seu interesse não conflita com aquele das partes. E, dentro da conceituação puramente processual dos terceiros, devemos admitir necessariamente que o amicus curiae inclui-se nesta categoria. Sua manifestação deve ser compreendida como verdadeira modalidade de intervenção de terceiros, não obstante a disposição do art.7º da Lei 9868/99 que nega peremptoriamente o uso da intervenção de terceiros no processo da ação direta de inconstitucionalidade, cristalizando entendimento já consagrado no regimento interno do STF. Esta vedação deve ser compreendida como proibição do manejo das modalidades de intervenção previstas no CPC (arts.50/80), o que não desconfigura o amicus curiae como espécie de intervenção de terceiros. [18]
No mesmo sentido é o entendimento de Milton Luiz Pereira:
No mais, o amicus curiae é voluntário partícipe na construção de assentamentos judiciais para o ideal de pretendida "sociedade justa", sem confundir-se com as hipóteses comuns de intervenção. Demais, não sofre a rejeição dos princípios básicos do sistema processual edificado. Desse modo, apenas com o propósito de avançar ideias sobre o tema e sem a presunção de abordoamento exaustivo, conclui-se que o amicus curiae, como terceiro especial ou de natureza excepcional, pode ser admitido no processo civil brasileiro para partilhar na construção de decisão judicial, contribuindo para ajustá-la aos relevantes interesses sociais em conflito. [19]
Diante de tais argumentos, parece ser mais acertado o entendimento de que o amicus curiae é um terceiro interveniente especial, ao qual deve ser dispensado um tratamento específico no âmbito do direito processual, a despeito de inexistir na codificação processual pátria expressa previsão legal que discipline a sua atuação. Além do mais, com base no que foi observado no decorrer da evolução histórica do instituto e em sua atuação em juízo nos dias atuais, é inequívoco o fato de que o "amigo da corte" possui características especiais. Dependendo da matéria discutida no Judiciário e da legislação específica que admite a participação da figura em determinadas demandas, observa-se que o amicus curiae pode, em certos casos, se encaixar perfeitamente no papel de custus legis, que originalmente é exercido pelo Ministério Público no ordenamento pátrio, bem como pode atuar no papel de perito, diante das claras situações em que traz ao juízo conhecimento técnico essencial sobre determinada área, com o objetivo de auxiliar na solução da controvérsia de maneira justa. [20] O caráter geral do instituto, portanto, faz com que seja impossível dar a este o mesmo tratamento dispensado às modalidades convencionais de intervenção de terceiros.
Até mesmo o argumento aqui anteriormente exposto com o intuito de servir como a principal justificativa à possibilidade de intervenção do amicus curiae, cujo núcleo abarca a participação democrática da sociedade no debate útil à solução de determinadas demandas judiciais, em face do interesse público nelas existente (item 2.1 supra), faz com que a figura se afaste das demais modalidades de intervenção de terceiros previstas no Código de Processo Civil, haja vista que o objetivo destas é, claramente, o de tutelar interesses meramente privados.
2.2.2. Os direitos coletivos lato sensu e sua titularidade: breve análise da legitimidadenas ações coletivas e o papel da participação de terceiros.
Os direitos coletivos lato sensu estão atualmente elencados no artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), sendo estes entendidos como gênero, cujas espécies são: os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. Mesmo não sendo o objetivo do presente trabalho aprofundar-se nas questões conceituais que envolvem tais direitos, é importante observar que a doutrina, antes mesmo de imiscuir-se na tarefa de promover soluções para a efetiva tutela de tais interesses, enfrentou dificuldades para alcançar a delimitação e a conceituação necessárias à sua compreensão, bem como "determinar" - ainda que impropriamente se utilize tal termo - quem seriam os seus titulares.
Faz-se necessário, em face da natureza do tema aqui abordado, citar que a titularidade dos direitos coletivos lato sensu (ou transindividuais) não pertence a indivíduos determinados, mas sim a uma comunidade ou coletividade. Em relação a esta, assim se expressam, de forma bastante didática, Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr:
As categorias de direito expostas (difuso, coletivo e individual homogêneo) foram conceituadas com vistas a possibilitar a efetividade da prestação jurisdicional. São, portanto, conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a instrumentalidade, para a adequação do direito material da realidade hodierna e, dessa forma, para a sua proteção pelo Poder Judiciário. Por este motivo é que o art. 81 do CDC, integrado à sistemática das ações coletivas (em nosso entender), identifica os titulares dos direitos subjetivos em seu parágrafo único e incisos. ((Dessa forma, são titulares nos respectivos incisos: I) direitos difusos: as pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II) direitos coletivos stricto sensu: o grupo, categoria ou classe de pessoas; III) direitos individuais homogêneos: os indivíduos lesados, quando a lesão decorrer de origem comum, tomados abstrata e genericamente para fins de tutela. [21]
Em face destas especiais características, pode-se concluir que uma das mais complexas questões, no que diz respeito às ações coletivas, refere-se à legitimidade para a causa, seja porque os direitos são transindividuais (não pertencendo a pessoas específicas), seja por estarem os direitos individuais enfeixados em um conjunto (direitos individuais homogêneos), não sendo possível determinar com facilidade uma hipótese em que haverá legitimidade ordinária para propor tais demandas. [22]
Para tanto, a lei processual brasileira estabelece, para as demandas de natureza coletiva, um sistema de legitimação extraordinária, atribuindo a defesa dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos a organismos que, em tese, teriam condições de defendê-los de maneira adequada. Tal sistema busca inspiração nas class actions do direito anglo-americano, onde se prevê a chamada "representatividade adequada", com a avaliação da condição de certos autores para representar os interesses de todo um grupo sendo realizada casuisticamente pelo magistrado.
Além desta forma de legitimação, a lei brasileira concede a determinados agentes públicos o poder de utilizar-se da ação coletiva. Seja por representarem, por sua própria natureza jurídica, o interesse público, seja pela estrutura e pelas prerrogativas de que gozam, entendeu o legislador como conveniente autorizar também a órgãos públicos a defesa desses direitos. Assim, estabeleceu-se que são legitimados para a ação coletiva: I) o Ministério Público; II) a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III) as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; IV) a Defensoria Pública, cuja legitimidade foi especificamente conferida pela lei 11.448/2007, desde que limitada às funções institucionais que lhe foram conferidas pelas Constituição Federal. [23]
O que se nota, diante do sistema adotado pelo ordenamento pátrio para a atribuição de legitimidade ativa nas demandas de natureza coletiva, é a constante preocupação com o caráter evidentemente público da tutela jurisdicional aqui empregada, tanto no momento em que é considerada a representatividade adequada pelo magistrado ao aferir se é admissível ou não a propositura da ação por parte deste ou daquele ente, como no momento em que a próprio legislador, através da norma, confere legitimidade a certos entes públicos para atuar na defesa de tais interesses em juízo.
Obviamente, assim como ocorreu ao conferir-se recentemente legitimidade à Defensoria Pública para militar nesta esfera, é perfeitamente possível que ao longo dos anos surjam novas hipóteses de legitimação ativa para a defesa dos interesses transindividuais, haja vista que a sociedade, por si só, passará por mudanças que tornarão tais medidas necessárias, em face do constante dinamismo presente em suas relações. Não é possível que a tutela jurisdicional nas ações coletivas obtenha êxito em conferir soluções justas aos casos concretos a ela submetidos, se a sua característica de inércia ficar adstrita a critérios estáticos para conferir-se legitimação ativa nestas hipóteses, ou mesmo a um rol estático de entes públicos legitimados, o que, como será demonstrado, também não pode representar óbice à presença de outras formas de participação - a dizer, democrática - da sociedade em processos desta natureza. Aqui se inclui, de forma clara, a possibilidade de atuação do amicus curiae na tutela dos interesses metaindividuais, de forma a concretizar a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição descrita por Peter Häberle.
2.3. A participação do amicus curiae nas demandas de natureza coletiva: os fundamentos e as implicações práticas de sua atuação processual.
2.3.1. O processo civil de interesse público como justificativa para a intervenção do amicus curiae nas ações coletivas: o ponto de contato entre o instituto e a tutela dos interesses metaindividuais.
Encontrar uma definição precisa acerca de um conceito jurídico indeterminado não é tarefa das mais fáceis. A doutrina, corajosa, há muito vem se empenhando em tentar descrever de forma satisfatória o que seria o "interesse público", partindo de várias premissas e pontos de vista distintos, examinando os diversos ramos do direito envolvidos (aqui podem ser citados, por exemplo, o direito constitucional, o direito administrativo e o direito processual). Como o objetivo do presente trabalho é claramente voltado à análise da atuação amicus curiae no âmbito do processo civil coletivo, se faz necessária uma restrição neste campo de observação, motivo pelo qual será aqui abordado diretamente o conceito de "processo civil de interesse público", ou "litigação de interesse público" (public law litigation). [24]
Atualmente, é possível afirmar que o Poder Judiciário obteve uma expansão em suas atribuições, passando a resolver questões de âmbito público, no cumprimento de um papel que antes seria desempenhado por outros centros de decisão existentes na sociedade. A atividade jurisdicional passou a ser, diante das circunstâncias, a verdadeira concretizadora dos objetivos sociais, em face do tratamento insuficiente dado a estes pelos demais setores políticos estatais. Estas alterações no panorama da tutela jurisdicional provocaram, consequentemente, transformações nas normas de processo, fazendo surgir assim um novo modelo processual, voltado à necessidade de solucionar litígios de natureza distinta daqueles originalmente tratados no processo civil. [25] Tal tendência jurídica é assim demonstrada por Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr.:
Junto a essa transformação, de uma postura individualista para uma postura totalizante na percepção e tratamento dos conflitos, aparece a summa divisio existente entre o direito público e privado como elemento relativizado, pois tende o direito à publicização, assente a preocupação com o desenvolvimento da pessoa humana, da cidadania e dos direitos sociais e coletivos; e, superada a ideia (pelo menos quanto à ciência jurídica) do Estado laissez faire, laissez passer, que tudo permitia, afastando-se a concepção liberal fundada na autonomia "absoluta" de vontade. [26]
Nesta esfera se inserem os processos coletivos, que reconhecidamente servem à "litigação de interesse público": representam as demandas judiciais que envolvem, para além de interesses individuais, aqueles referentes à preservação da harmonia e à realização dos objetivos constitucionais da sociedade e da comunidade. Interesses de uma parcela da comunidade constitucionalmente reconhecida, a exemplo dos consumidores, do meio ambiente, do patrimônio artístico, histórico e cultural, bem como, na defesa dos interesses dos necessitados e dos interesses minoritários, marginalizados no meio social. [27] É dizer que, no tratamento de interesses coletivos lato sensu, a atividade jurisdicional deixa de ser voltada a litígios exclusivamente individuais, para impactar num âmbito predominantemente público. E tal espaço público, que passa a ser objeto de intervenção judicial, é decorrente da crescente atividade legislativa e regulamentar do Estado, dirigida à modificação e disciplina de fatores básicos da organização social e econômica. A preocupação dos tais interesses se insere justamente neste contexto, à medida que as normas constitucionais, ordinárias ou mesmo regulamentares passam a incorporar objetivos gerais ou coletivos. [28]
Ocorre que a esta tendência jurisdicional e processual se aproxima, e muito, do conjunto de linhas gerais norteadoras da atuação do amicus curiae em juízo, e claramente possui relação com a própria evolução do instituto em si, relação esta que é assim identificada pela doutrina:
No campo do direito processual, a progressiva referência e preocupação com o amicus curiae é devida à concepção publicista da jurisdição que dominou a doutrina nos últimos tempos. Admitindo o processo como ramo do direito público, identifica-se no exercício da jurisdição a busca do Estado em realizar objetivos que são seus e que precedem os interesses das partes envolvidas: objetivos sociais — educação social e pacificação de conflitos — e políticos, no sentido de preservar as liberdades públicas, afirmar o poder estatal e assegurar a participação popular através do processo. [29]
Cassio Scarpinella Bueno, em minuciosa obra sobre o tema, compartilha deste entendimento e vai além, expondo claramente a relação existente entre o amicus curiae e a tutela jurisdicional coletiva, analisando a evolução histórica do instituto:
Não há dúvidas de que existe um ponto de contato entre o "interesse" que justifica (e legitima) a intervenção do amicus curiae e aquele que justifica (e legitima) a propositura de ações chamadas de coletivas por determinadas entidades previamente apontadas pela Constituição ou pelo legislador. Tanto assim que, em uma das pioneiras obras de nossa literatura a respeito do tema, a figura do amicus curiae do direito anglo-saxão é relatada como uma das específicas formas de tutela dos interesses difusos em juízo, vale dizer, uma das variadas formas com as quais, desde o direito romano, os ordenamentos jurídicos se ocuparam para responder à seguinte questão: "Quem está legitimado a defender um direito não personificado?". Este ponto de contato, no entanto, longe de eliminar um dos institutos, é razão mais que suficiente para a necessidade do estabelecimento de razões que leve à sua convivência, em prol de maior segurança jurídica e, mais do que isso, de maior eficácia dos próprios direitos materiais, razão última de ser do processo. [30]
Nota-se, portanto, que o chamado "processo de interesse público" manifestado nas demandas de natureza coletiva faz com que o amicus curiae seja considerado uma peça de extrema importância no decurso de tais processos, tendo em vista que, há muito, o papel deste instituto é colaborar com o magistrado nas lides em que se faz presente um interesse que transcende o representado pelas partes, cujos reflexos do julgamento afetam, de uma maneira ou de outra, a sociedade em si.
Conforme será visto adiante, o amicus curiae já é admitido no ordenamento jurídico pátrio por força da necessidade, identificada pelo legislador, de se tutelar o interesse público presente em diversas hipóteses por meio do direito processual e, portanto, é perfeitamente possível que a figura passe a compor os mecanismos jurisdicionais presentes nos diplomas legais que disciplinam a tutela coletiva, já presentes no direito brasileiro, bem com os que ainda estão por vir.
2.3.2. A necessidade de sistematização da atuação do amicus curiae na tutela coletiva: o microssistema de Processo Coletivo e o atual "microssistema" delimitador da atuação do amicus curiae no processo civil brasileiro.
Considera-se muito recente a experiência brasileira no âmbito da tutela coletiva. Com o intuito de regulamentar os meios de prestação jurisdicional nesta esfera de direitos, a doutrina majoritária e a jurisprudência consideram a existência de um regramento processual próprio para este fim, instituído pela Lei de Ação Popular (Lei 4.717/65), pela Lei de Ação Civil Pública (LACP - Lei 7.347/85), pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC - Lei 8.078/90), bem como por outros instrumentos normativos específicos de natureza coletiva, estabelecendo assim o chamado Microssistema Processual Coletivo brasileiro.
De início, cabe aqui salientar que os microssistemas jurídicos nada mais são do que a representação de uma tendência (chamada, pela doutrina, de "recodificação") demonstrada no ordenamento jurídico pátrio, visto que o legislador, cada vez mais, desconsidera a necessidade de centralização de normas jurídicas em codificações extensas e abrangentes, e passa a utilizar-se de instrumentos normativos esparsos e específicos, que seriam combinados entre si para disciplinar determinada matéria. Em relação ao direito processual, especificamente, podemos apontar ainda que as reformas legislativas comumente são realizadas de maneira pontual, e que qualquer necessidade de regulamentação de nova matéria se faz pela edição de normas específicas, abandonando-se assim a ideia de que os Códigos seriam necessariamente as únicas fontes basilares de regras jurídicas, já que todo o arcabouço jurídico passa a ser observado sob a ótica da Constituição, sendo esta o seu pilar central. [31] Vale citar o entendimento da doutrina acerca dos microssistemas jurídicos, e em especial o microssistema de tutela coletiva:
Estes microssistemas evidenciam e caracterizam o policentrismo do direito contemporâneo, vários centros de poder e harmonização sistemática: a Constituição (prevalente), o Código Civil, as leis especiais. Pensar em recodificar significa imaginar uma função residual aos Códigos que não seja fechada em si mesma, uma função que contribua para a harmonização dos microssistemas com a Constituição, bem como para a preservação dos valores jurídicos comuns na elaboração de novos microssistemas. Esta ordem de ideias pode ser facilmente transportada para o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor como atual elemento harmonizador do microssistema de tutela coletiva. [32]
É possível ser encontrado idêntico e recentíssimo posicionamento na jurisprudência pátria:
[...] 8. A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se. [...] [33]
Fica claro, portanto, que o processo coletivo brasileiro nos dias atuais é regulado por normas extraídas do microssistema acima descrito. Mas cabe ressaltar, também, que existem vários projetos em andamento, elaborados por renomados juristas, que visam à criação de um autêntico Código Processual Coletivo brasileiro. Tais projetos, por sua vez, possuem como objetivos principais a uniformização e a melhoria dos instrumentos jurídicos necessários à efetividade da tutela coletiva e não representam, segundo a doutrina, um retrocesso da tendência de "recodificação", pois se considera que não há impossibilidade de coexistência entre microssistemas e códigos, eis que a Constituição Federal continuará sendo a base norteadora e orientadora de todo o ordenamento jurídico pátrio. [34]
Obviamente, a importância da sistematização de institutos já admitidos dentro do ordenamento jurídico de um Estado decorre da necessidade de conferir segurança jurídica às relações sociais, impedindo assim que seja dado tratamento (neste caso, jurisdicional) discrepante a situações idênticas ou semelhantes, causando ofensa à isonomia atribuída aos indivíduos que compõem determinado corpo social. Em relação à figura do amicus curiae, salvo um ou outro entendimento divergente, considera-se que não há no direito brasileiro qualquer referência legislativa que o mencione expressamente. [35] Como consequência lógica disto, não existe uniformidade na jurisprudência ao tratar do tema, o que sem dúvida faz com que o instituto enfrente dificuldades práticas em sua possibilidade de atuação processual.
Ocorre, porém, que existem diversas situações específicas no direito brasileiro que são apontadas como claras hipóteses de intervenção do amicus curiae, ainda que nenhuma das leis regulamentadoras assim expressamente as denomine. Obviamente, as modalidades de intervenção previstas em tais dispositivos legais guardam diversas particularidades e distinções entre si, mas servem para delimitar o caráter geral do amicus curiae no ordenamento jurídico pátrio, tornando possível a descrição de um "microssistema", ainda que atípico, composto pelos principais diplomas legais que admitem a participação do "amigo da corte" no direito brasileiro.
Os diplomas legislativos regulamentadores do controle concentrado de constitucionalidade brasileiro abarcam hipóteses de admissão do amicus curiae, mais especificamente nos seguintes dispositivos: art. 7º, §2º, art. 9º, §§ 1º e 2º e art. 20, §§ 1º e 2º, todos da Lei 9.868/99, e art. 6º, §§ 1º e 2º, da Lei 9.882/99. Aqui, considera-se que o legislador ampliou os canais de comunicação para o juiz constitucional, possibilitando que o mesmo obtenha informações por distintos meios, tanto do ponto de vista técnico, como também através de uma ampliação subjetiva do debate, autorizando-se audiência pública e permitindo a manifestação de terceiros, voluntariamente ou por requisição judicial. [36] Caso emblemático que pode ser citado é o recente julgamento da ADPF nº 54, cujo objeto foi a possibilidade de permitir-se a realização do aborto de feto portador de anencefalia, em cujas audiências públicas várias entidades, de natureza religiosa e defensoras dos direitos humanos, manifestaram-se oralmente e através de memoriais, após serem admitidas como amicus curiae naquele processo.
Outra situação admitida pela doutrina como representativa da atuação do amicus curiae é a prevista no art. 14, § 7º, da Lei 10.259/2001, instituidora dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal. O caput do art. 14 da referida lei cuida do pedido de uniformização de interpretação de lei federal, cabível quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. O parágrafo 7º do mesmo artigo confere o prazo de trinta dias para que eventuais interessados, ainda que não sejam partes do processo, nele se manifestem. O instituto deu margem a diversas interpretações, até que a Resolução 290 do Conselho da Justiça Federal, regulamentando a hipótese, possibilitou expressamente a manifestação oral e por escrito do amicus curiae. [37]
Não obstante, é possível identificar a atuação processual "do amigo da corte" em outras três hipóteses, que podem ser analisadas conjuntamente por guardarem certa semelhança entre si. A primeira diz respeito à participação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) nos processos judiciais que tenham por objeto matéria de sua competência, com base na disposição do art. 31 da Lei 6.385/76. Aqui, a lei autoriza a participação da CVM porque à entidade foi outorgado o poder de polícia sobre as atividades do mercado de valores mobiliários. O diploma legal também dispõe que a CVM poderá oferecer ou prestar esclarecimentos, pois, dada a complexidade do tema, considera-se que facilmente alguma questão de extrema relevância para o julgamento da causa pode não ser compreendida de forma satisfatória pelo magistrado, cujo conhecimento médio não é comparável à especialização que possui aquela instituição neste âmbito. [38]
A segunda hipótese de intervenção dentro deste grupo é a participação do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), prevista no art. 89 da Lei 8.884/94. Da mesma forma que a CVM, o CADE aqui exerce o papel de fiscalizador da atividade econômica, atuando em defesa da concorrência, sendo a autarquia, portanto, legitimada para atuar nas causas em que seja discutida a aplicação da referida Lei. [39] E, por fim, se faz necessária a devida menção à intervenção do INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), que deverá ser intimado a participar do processo quando o exercício de sua função de policiamento sobre a observância das normas referentes à propriedade industrial (art. 2º da Lei 5.648/70) se mostrar necessária, e a entidade também poderá fornecer dados técnicos e informações relevantes ao julgamento da demanda. [40]
Observando-se estas últimas três hipóteses de intervenção do amicus curiae aqui conjuntamente abordadas, é possível concluir que as mesmas possuem claro caráter fiscalizador sobre determinadas atividades, consideradas de extrema importância pelo ordenamento jurídico, cuja prática indiscriminada possui enorme potencial lesivo à sociedade. Ainda, tais entidades possuem vasto conhecimento técnico acerca de tais matérias, o que torna indispensável a sua participação processual na contribuição para um julgamento que mais se aproxime dos ideais de justiça, exercendo assim o papel de colaborador do juízo que é inerente ao amicus curiae.
O rol das hipóteses de intervenção do "amigo da corte" no direito brasileiro aqui descrito não é exaustivo. Existem várias outras previsões normativas no ordenamento jurídico pátrio que possuem características semelhantes, mas que são objeto que grande discussão na doutrina e, portanto, procurou-se aqui trazer as hipóteses pacificamente reconhecidas como intervenção do amicus curiae, já que aprofundar-se em tal celeuma não é o objetivo do presente trabalho. O que é possível afirmar, diante de todas as modalidades de intervenção da figura acima apresentadas, é que, apesar das particularidades facilmente identificáveis, todas possuem certos aspectos comuns, sendo o principal deles a questão do interesse do amicus curiae.
Nas hipóteses de intervenção da CVM, do CADE e do IPNI, o legislador claramente considerou a existência de um interesse no objeto da controvérsia que ultrapassa os limites subjetivos da lide, e atribuiu o exercício da função de controle a tais entidades, diante do interesse público (consubstanciado na defesa dos interesses da sociedade) ali presente. Ainda, nos processos voltados ao controle concentrado de constitucionalidade, também está presente o chamado interesse público de controle, já que, conforme aqui já exposto,o controle da conformidade do ordenamento jurídico pátrio para com a Constituição Federal não é mais de exclusividade do Poder Judiciário, mas sim inerente a toda a sociedade (item 2.1 supra). Também, no que diz respeito aos incidentes de uniformização de interpretação de lei federal no âmbito dos Juizados Especiais Federais, o legislador constituiu, e atribuiu a todos os cidadãos, claro interesse público de controle, aqui não de controle de constitucionalidade, mas sim relativo à correta aplicação da legislação federal. Assim sendo, em todas as hipóteses em que a lei permite a atuação do amicus curiae no ordenamento jurídico pátrio, sempre está presente um interesse público subjacente. [41]
Diante deste caráter geral, claramente voltado ao interesse público, que permeia a participação do "amigo da corte" no direito brasileiro, e da falta de sistematização de sua atuação processual, faz-se necessário um esforço no sentido de considerar que os diplomas legislativos vigentes que admitem a intervenção do amicus curiae compõem um "microssistema" delimitador de sua atuação, buscando-se elementos norteadores em determinados diplomas legais que a disciplinam, do ponto de vista procedimental, para suprir lacunas em outras normas que apenas permitem a participação da figura sem dispor sobre a forma com que esta se dará. Exemplo disto é que existe posicionamento doutrinário no sentido de aplicar as disposições referentes ao amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade de forma reflexa no âmbito estadual. [42] Parte da doutrina também considera, por exemplo, que a intervenção da CVM a título de amicus curiae é a cuja participação processual foi mais pormenorizada do ponto de vista procedimental no ordenamento jurídico brasileiro, considerando que tais disposições deveriam ser aplicadas analogicamente a casos semelhantes, como na atuação do CADE, diante da omissão do legislador. [43]
Obviamente, tal esforço se mostra insuficiente, pois, ainda que demonstre clara preocupação em disciplinar a matéria, não confere segurança jurídica à atuação do amicus curiae no caso concreto, ficando sua participação processual sujeita e restrita ao entendimento jurisprudencial que, como consequência das lacunas legais e do vasto campo de aplicabilidade do instituto, dificilmente será uniforme.
No tocante ao Processo Coletivo brasileiro, há a imperativa necessidade de sistematização da atuação do "amigo da corte". Em face da clara possibilidade de intervenção da figura nas demandas de natureza coletiva, motivadas pelo interesse público a elas inerente conforme demonstrado no item 2.3.1 supra, deve ser observado que o amicus curiae é um mecanismo concreto, diretamente vinculado à realização da efetiva tutela jurisdicional dos interesses coletivos lato sensu, motivo pelo qual não poderá este terceiro especial limitar-se apenas ao entendimento do magistrado quando se fizer necessário determinar, por exemplo, de quais faculdades e mecanismos processuais poderá dispor o interveniente colaborador, em que momento (e de que forma) o mesmo exporá as suas convicções no processo e, finalmente, qual seria o prazo processual limite para admitir-se o seu ingresso como interveniente na lide. Trata-se de um conjunto de questões claramente pragmáticas, que só poderão ser solucionadas da melhor maneira se receberem a devida atenção por parte do legislador pátrio. Não é esta a tendência identificada atualmente, posto que em projeto recente, elaborado por renomados juristas, voltado à edição da nova Lei de Ação Civil Pública (projeto este, vale ressaltar, que demonstra grande preocupação com o futuro do processo coletivo brasileiro), não há lugar para a participação de terceiros em demandas desta natureza.
Conforme aqui foi examinado anteriormente, considera-se inexistente a incompatibilidade entre Códigos e microssistemas jurídicos. Por este motivo, a sistematização da atuação processual do amicus curiae no âmbito da tutela jurisdicional coletiva brasileira poderia tanto ser realizada por meio de sua devida inclusão na matéria disciplinada por um Código de Processos Coletivos, como também por sua regulamentação na nova Lei de Ação Civil Pública, simultaneamente ou não. No último caso, se a previsão normativa do instituto se limitasse a ocorrer na LACP, suas diretrizes procedimentais, obviamente, poderiam ser combinadas, salvo melhor juízo, com os demais diplomas legais que compõem o atual microssistema processual coletivo brasileiro, uniformizando assim a maneira com que a colaboração de terceiros ocorreria em tais processos. Inequívoco é o fato de que este mecanismo processual, de tamanha importância na defesa do interesse público nas demandas coletivas, não pode ter a sua atuação limitada e prejudicada pela omissão do legislador brasileiro em regulamentar a matéria.
2.3.3. A harmonização do instituto do amicus curiae para com as tendências reformadoras no processo civil brasileiro.
Cabe ainda, em face do pragmatismo que permeia o tema abordado pelo presente trabalho, realizar-se um confronto entre o instituto e o constante interesse na realização de reformas processuais, demonstrado pelo legislador brasileiro contemporâneo. Isto se faz necessário porque toda vez que se mostrar cabível a edição de uma norma voltada a regulamentar e disciplinar determinada matéria de direito processual, também é indispensável definir-se como será possível vencer o problema estrutural existente no Poder Judiciário para colocá-la em prática. Diante do inchaço que assola a atividade jurisdicional, motivada principalmente pelo fato de que esta passou a ser a verdadeira realizadora e concretizadora dos interesses, direitos e ideais sociais, sempre será necessário buscar-se uma maneira de promover o desafogamento das vias judiciais, buscando-se tanto medidas alternativas para a resolução de conflitos, como também conferindo celeridade às demandas que necessariamente passarem pelo crivo do Judiciário.
No tocante à participação de terceiros no processo, a tendência verificada é a que considera necessário evitar-se ao máximo o seu cabimento, partindo-se da premissa de que, quanto maior o número de participantes ingressando na demanda, maior será o tempo necessário à sua conclusão, em face da demora natural provocada pelas diversas manifestações que certamente ocorrerão no decorrer da mesma, bem como por força dos problemas práticos relacionados aos prazos e às intimações direcionados a cada um dos intervenientes.
Cabe salientar, porém, que ao contrário do que possa parecer, não se trata aqui da criação de um novo mecanismo ou instituto jurídico voltado à intervenção de terceiros no processo civil, que seria então implantado no âmbito das ações coletivas. Trata-se, apenas, da regulamentação de uma figura que já existe no direito processual brasileiro, e que já atua em diversas situações em que é flagrante a presença de um interesse público, cuja participação procedimental, porém, é disciplinada de forma insatisfatória, e deixada à margem da vacilante jurisprudência que tenta enfrentar o tema. Obviamente, a sistematização da atuação do amicus curiae em tais demandas certamente fará com que a mesma não seja caracterizada pela desordem procedimental, fazendo com que as ações coletivas, diante das recentes propostas legislativas voltada à elaboração de uma nova LACP, ou de um Código de Processos Coletivos, não perdurem no tempo mais do que o necessário.
Desta forma, a admissão do amicus curiae nas demandas de natureza coletiva não representará óbice à busca de celeridade processual, se a sua atuação se mostrar efetivamente disciplinada. Não existirá confronto direto entre a admissão do "amigo da corte" e a tendência a limitar-se cada vez mais a intervenção de terceiros no processo - a exemplo do que ocorre no procedimento sumário, nos processos trabalhistas, dentre outros casos - em prol da celeridade processual e da efetiva prestação jurisdicional, se a forma com que o colaborador do magistrado atuará no processo mostrar-se definida, sistematizada, e, por conseguinte, limitada.