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O confisco chamado de sobretarifa de energia

01/04/2001 às 00:00
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A relação jurídica entre o consumidor de energia e a empresa concessionária é de direito privado, contratual. Como qualquer contrato, o de fornecimento de energia, é sinalagmático, prescrevendo direitos e deveres recíprocos entre as partes. Por outro lado, a relação entre a concessionária e o poder concedente é de direito público. A concessionária obriga-se a fornecer a energia e o poder concedente a fixar-Ihe tarifas que resguardam a equação financeira da concessão (manutenção, remuneração e investimentos da empresa). O Governo malversou as duas relações jurídicas. A fixação autoritária e unilateral da sobretarifa pelo Governo Federal é absolutamente inconstitucional, como já antecipado pelo Ministro Marco Aurélio, em que pese o conservadorismo de alguns de seus pares, agora sob vigilância da sociedade. É inconstitucional por quê? O contrato é lei entre as partes e não pode ser unilateralmente alterado, ainda mais por um terceiro: o Governo Federal. As partes não previram sobretarifa alguma com incidência de 30% de ICMS para consumo médio ou grande, até porque convém às distribuidoras vender mais. O Governo é que se intrometeu (50% para consumo acima de 200 Kilowatts, 200% acima de 500).


Que natureza jurídica tem essa sobretarifa? Será uma multa civil? Mas como se não foi fixada pelas partes "ex-contractu"? É pena pecuniária a punir uma conduta injurídica? Ora, não há pena restritiva de direitos ou pecuniária sem prévia definição da conduta delituosa. Consumir energia não é conduta punível. A Constituição prevê tanto a liberdade contratual como a tipicidade prévia, por lei do Congresso, das condutas puníveis. Será tributo sobre consumo excessivo de energia elétrica? Todo imposto novo exige lei complementar para instituí-Io com quorum de metade mais um dos membros do Congresso Nacional! Se não é multa, se não é adicional contratual de tarifa com incidência de 30% de ICMS e se não é tributo, só pode ser CONFISCO, fato expressamente proibido pela Constituição, em defesa dos cidadãos republicanos.

O Governo Federal, além de ser tecnicamente inepto e politicamente a-ético, é injusto e autoritário, age contra a lei maior, desvestido de assessoria jurídica responsável. Ao cabo, quem é o autor do descalabro energético? As empresas distribuidoras? Claro que não, gostariam de comprar e vender mais energia. Deveriam, é certo, investir em redes de retransmissão. mas o Governo foi frouxo. A ANEEL é ficção. Os consumidores? Decerto não, precisam de energia. O responsável é só o Governo e sua "moderninha" agencia reguladora, que na relação de direito público com as empresas concessionárias produtoras de energia, não as obrigou, as privatizadas, a aumentar a produção, e as públicas a cumprir metas de oferta para atender a demanda posta pela comunidade consumidora. Ao invés de reconhecer o erro (déficits de produção, retransmissão e utilização de gás boliviano) e pedir a colaboração da população, a ela oferecendo incentivos para uma "economia de guerra", vira-se contra ela, altera contratos e a pune exigindo esforços dolorosos de contenção e de sobrecarga financeira, sem falar nos cortes individuais, verdadeiro terror. Um kilowatt a mais apaga três dias? Violência maior só vimos nos idos de Collor, com o confisco das economias privadas. Os absurdos sempre são cometidos ao argumento do interesse nacional.

Caso vertente, há que observar ainda três fatos de suma relevância. Por primeiro, as sobretarifas que destino terão? As burras ou fundos governamentais? Para tanto inexiste previsão orçamentária (Lei de responsabilidade fiscal). Em que rubrica entrará a receita? Tenho que se trata de enriquecimento ilícito do Estado. É caso de crime de responsabilidade. Se forem para as concessionárias o enriquecimento será destas (aumento injurídico, "contra legem", da remuneração tarifária). Caberia ação de restituição. De todo modo, os ESTADOS NÃO PODEM COBRAR 30% DE ICMS, sob pena de terem de devolve-lo, por ilegal. Em segundo lugar, nota-se que o Governo, demagogicamente, sacrifica a indústria, o comércio e as classes médias para não perder a popularidade entre o populacho, com os bônus de migalhas. Não vai adiantar. Os apagões virão e, nesta hora, o povo apagará FHC e o PSDB, pelo desconforto sofrido, pelas mentiras reiteradas, pelo desemprego e pela carestia decorrentes da escuridão provocada pelo Governo. Finalmente, vamos nos lembrar que o comissário da concordata nacional (o FMI) proibiu o Governo de investir nas empresas públicas produtoras .de energia elétrica e FHC obedeceu. Todo títere é assim. Dobra a cerviz aos poderosos e bate de chicote na sociedade, sem dó nem piedade.

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Sobre o autor
Sacha Calmon Navarro Coêlho

Advogado tributarista, autor da Editora Forense, integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O confisco chamado de sobretarifa de energia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2022. Acesso em: 19 abr. 2024.

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