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Multa pelo aumento ou excesso de consumo de energia elétrica.

Limites constitucionais

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8. Dos limites constitucionais e os percentuais da multa.

Os limites de aplicação das multas são tratados pela análise da observância do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade e do não confisco.

O princípio da razoabilidade tem sua base de formação nos Estados Unidos, tendo sua acepção ligada à razoabilidade que a lei deve ter e sua relação com a moralidade e a continência do fundamento da edição da norma com a solidariedade, segurança jurídica, ordem e principalmente a justiça. Dessa forma, o fundamento de validade primeiro de uma norma jurídica deve ser o sentido de justiça(25).

Aplicação do princípio da razoabilidade em matéria de penalidades pecuniárias é aceito na doutrina, conforme ensina José Carlos Graça Wagner(26) :

"o ato ilícito pode ser punido até o limite de sua própria substância, de tal modo que não só de nada aproveite a quem o praticar como também perca tudo que envolveu na prática daquele ato. Nesse caso, os acréscimos de multa, juros e correção não podem ultrapassar o limite do que razoavelmente possa se presumir como resultado econômico obtido com as operações tributadas a que se refere a obrigação em atraso."

O aludido princípio diz respeito, segundo o STF, aos balizamentos e parâmetros que o legislador, na sua atividade legislativa, deveria observar, estabelecendo ainda que os limites da lei devem regular a conduta de modo proporcional e adequado(27).

A doutrina constitucional moderna e o Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, determinam que não se deve analisar as leis somente sob a ótica do princípio da reserva legal. O julgamento da questão deve ter como base o princípio da reserva legal proporcional, que tem como pressuposto não somente a legitimidade dos meios e dos fins a serem alcançados, mas também a necessidade de utilizar-se o meio menos gravoso ao indivíduo para alcançar o fim almejado(28).

Com isso, não pode haver distorção entre a medida estabelecida em lei e o fim por ela objetivado, determinando que o modo de combater e punir os ilícitos deve ser disposto com penalidades que guardem adequação dos meios e dos fins, sob pena de violação ao princípio da razoabilidade e a proporcionalidade.

Gilmar Mendes(29) resume a questão:

"Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade."

Na análise deste princípio aplicado a multas pelo excesso ou não-economia de energia elétrica, vislumbramos que a lei deve estabelecer limite razoável e proporcional ao fim da multa, qual seja, redução do consumo. A nosso juízo, a noticiada multa de 45 vezes o valor da conta é inconstitucional. Não é razoável, nem proporcional, que consumidor por descumprir a regra de racionamento se veja obrigado a pagar valor maior que o dobro de seu débito.

Com efeito, não há na jurisprudência um percentual máximo de imposição de multas. Contudo, há balizamento do STF, que considerou confiscatória, multa de 300%.

No julgamento da ADIN ajuizada em face da exigência de multa em percentual de 300% (trezentos por cento), o STF(30) assim decidiu:

"Art. 3 º - Ao contribuinte, pessoa física ou jurídica , que não houver emitido a nota fiscal, recibo ou documento equivalente, na situação de que trata o artigo 002 º , ou não houver comprovado a sua emissão , será aplicada a multa pecuniária de trezentos por cento sobre o valor do bem objeto da operação ou do serviço prestado , não passível de redução , sem prejuízo da incidência do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza e das contribuições sociais. (grifamos) Parágrafo Único - Na hipótese prevista neste artigo, não se aplica o disposto no artigo 004 º da Lei nº 8218 , de 29 de agosto de 1991. O Tribunal , por votação majoritária, conheceu da ação direta quanto ao art. 003º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/94, vencido o Relator ( Ministro Celso de Mello, Presidente), que dela não conhecia. Prosseguindo no julgamento do pedido de medida cautelar, referente a essa norma legal , o Tribunal, por votação unânime, suspendeu, com eficácia ex nunc , até final julgamento da ação direta, a execução e a aplicabilidade do art. 003 º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/97. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence e Maurício Corrêa. - Plenário, 17.06.98." (grifamos)

Com base nesse precedente não há dúvidas de que leis que estabelecem multas podem ser declaradas inconstitucionais por violarem o princípio da razoabilidade e por induzirem a confisco.

A nosso juízo, o percentual máximo de uma multa cominatória é de 100% (cem por cento) do valor que o contribuinte deveria economizar, ou seja, não se pode criar incidência de penalidade sobre a conta normal de luz, quer dizer, sobre o valor que o consumidor paga pelo seu consumo habitual. A multa deve incidir sobre o plus que deveria ser reduzido ou sobre o excesso de consumo.

Dessa forma, se o consumo normal ou o limite é de 10 kWh e o contribuinte consumiu 15 kWh, a multa não poderá incidir sobre os dez previstos como consumo normal, mas somente sobre os cinco quilowatts que extrapolaram o limite. Pelo acréscimo de consumo o contribuinte irá pagar um valor maior, em face de que haverá a incidência de uma penalidade, a título de multa astreintes, na forma de uma sobretaxa.

Com isso, se a norma realmente vier a estabelecer multas abusivas não temos dúvidas que o Poder Judiciário irá acolher teses pela redução ou pela a inconstitucionalidade, muito porque a doutrina(31) assim entende: "No que toca às penalidades pecuniárias, todavia, o mesmo não ocorre, detendo o juiz, por força de lei, poder para imiscuir-se no processo de sua quantificação, poder que vai até o ponto de determinar-lhes a exclusão diante de certas circunstâncias."


9. Conclusões.

Com isso, podemos concluir que a multa por excesso ou aumento do consumo de energia elétrica tem natureza jurídica de multa a título de astreintes.

A aludida multa não tem natureza tributária.

É medida de cautela que, para os efeitos da lei, o excesso ou o aumento de consumo de energia elétrica e os limites sejam correta e claramente tipificados como ilícito.

A multa objeto da presente análise não pode ser criada por decreto, sendo hábil, contudo, a sua instituição por medida provisória, a ser convertida, posteriormente em lei ordinária.

A multa tem como limite máximo o dobro do valor da diferença entre o consumo normal e o excesso ou extrapolação do limite, sendo inconstitucionais percentuais abusivos.

Os consumidores poderão se valer de remédios jurídicos típicos do direito administrativo, principalmente, o manejo de mandado de segurança com vistas a coibir abusos na aplicação da multa, sem excluir as ações do Ministério Público.

Por derradeiro, julgamos que, conquanto seja possível juridicamente a imposição de multa, os questionamentos judiciais serão tantos que podem inviabilizar a sua exigência. Dessa forma, talvez fosse mais conveniente o reajustamento temporário dos valores das tarifas, em face da redução da oferta, que, com menos traumas jurídicos, atingiria o fim almejado, qual seja, a redução do consumo, uma vez que existe princípio que nenhuma norma jurídica pode derrogar: quanto menor a oferta, maior é o preço.


NOTAS

1. A imprensa noticiou a imposição da aludida multa nestes termos: "Não poderia ter sido mais drástico o racionamento adotado pela Agência Nacional de Energia (Aneel) para vigorar a partir de 1o de junho. Um sistema de apuração indicará o limite disponível para uso de cada consumidor. A base de cálculo tomará com referência quilowatts anteriormente gastos seguidos de cota redutora. A ultrapassagem do teto estabelecido ensejará multa que poderá alcançar 45 vezes o valor da conta. É o que ocorrerá no caso de reincidência na utilização acima do fornecimento ajustado. Espera-se com a inciativa reduzir em 20% as pressões consumistas sobre as redes distribuidoras." In Os ônus da imprudência. Correio Braziliense de 05 de maio de 2001, p. 4

2. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2a ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 41.

3. LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. 2a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 32.

4. "Poder", em seu significado mais geral, segundo Norberto Bobbio, designa "a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos." BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Luis Guerreiro Pinto, 12a ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 933.

5. FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sério Leite. Aspectos jurídicos-penais da tortura. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 27.

6. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Trad. Arnaldo Setti, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1991, p. 876.

7. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 875-876.

8. SZNICK, Valdir. Da pena de multa. São Paulo: Ed. Universitária, 1984, p. 20.

9. Idem, ibidem, p. 26.

10. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. T rad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.3., , 1976, p. 73.

11. Ver HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 2ª ed., Imprensa Nacional da Moeda, p. 247 e FONROUGE, Carlos M. Giuliani. Conceitos de direito tributário. Trad. Geraldo Ataliba e Marco Greco, São Paulo: Lael, , 1973, p. 221.

12. PARIZATTO, João Roberto. Multas e juros no direito brasileiro. 3a ed., Ouro Fino: Edipa, 1999, p.1.

13. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5a ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 33.

14. ROLIM, João Dácio; SILVA, Maria Inês Caldeira Pereira de. "A dedutibilidade ou não das multas moratórias perante o imposto de renda", in Revista Dialética de Direito Tributário, no 11, agosto de 1996, pp. 72-79, p. 73.

15. MACHADO, Hugo de Brito. "O ICMS e a prestação gratuita de serviço", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 41-47, p. 41.

16. MACHADO, Hugo de Brito. "As multas e o imposto de renda", in Revista Jurídica, ano XXXI, vol. 105, maio/junho de 1984, pp. 49-55, p. 54.

17. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 3a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 218.

18. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 217.267/SP, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, publicado no DJU de 08/11/99.

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19. ARZUA, Heron; GALDINO, Dirceu. "As multas fiscais e o poder judiciário", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 34-40, p. 36.

20. FRIAS, J. E. S.. "A astreinte, do direito estrangeiro ao brasileiro", in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano IV, 2o trimestre, nº 14, pp. 11-20, pp. 12-15.

21. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 94.966-6, Relator Ministro Moreira Alves, publicado no DJU de 26/03/82.

22. Tributo é toda a prestação pecuniária compulsória....que não constitua sanção por ato ilícito....(art. 3º do CTN)

23. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 891-901.

24. Ver informativo 115 do Supremo Tribunal Federal: "Entendendo que a Súmula 565 do STF foi recepcionada pela CF/88 ("A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência."), a Turma negou provimento a agravo regimental interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul em que se pretendia a não incidência desta Súmula quanto aos créditos tributários de competência estadual, cobrados via executivo fiscal contra a massa falida. Afastou-se a alegada ofensa aos artigos 150, § 6º ("Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g."), e 151, III (" Art. 151. É vedado à União:... III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."), ambos da CF. Precedentes citados: AG (AgRg) 197.625-RS (DJU de 17.10.97); RE (AgRg) 212.839-RS (DJU de 14.11.97). AG (AgRg) 212.963-RS, rel. Min. Octavio Gallotti, 16.6.98. (Grifamos)

25. SPISSO, Rodolfo. Derecho constitucional tributario. Buenos Aires: Ediciones Delpalma, 1993, pp. 281-282.

26. WAGNER, José Carlos Graça. "Penalidades e acréscimos na legislação tributária", in Caderno de Pesquisas Tributárias, vol., 2a tiragem, 1990, pp. 325-336, p. 329.

27. LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. "O depósito administrativo fiscal e a violação ao princípios da razoabilidade e proporcionalidade", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 58, março de 2000, pp. 75-81, p. 75.

28. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 39-40.

29. MENDES, Gilmar Ferreira. " O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", in Repertório IOB de Jurisprudência, nº 14, caderno 2, 2a quinzena de julho de 2000, pp. 361-372, p. 371.

30. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1075–1/DF, Relator Ministro Celso de Mello, data de Julgamento da Liminar no Plenário em 17.06.1998, acórdão pendente de julgamento.

31. Ver COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; DERZI, Misabel Abreu Machado. "Da inexigibilidade das multas fiscais em regime de concordata", in Revista dos Procuradores da Fazenda Nacional, ano 1, nº 1, janeiro de 1997, pp. 63-112

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Sobre o autor
Cláudio Renato do Canto Farág

procurador federal, pós-graduado em Direito Tributário, mestrando em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARÁG, Cláudio Renato Canto. Multa pelo aumento ou excesso de consumo de energia elétrica.: Limites constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2025. Acesso em: 10 mai. 2024.

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