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O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas.

Lógica, retórica e capacitação cognitiva do graduando de Direito

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3.0 Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL): um novo paradigma na educação

O modelo de ensino de filosofia anglo-saxão apresenta uma consonância em seus objetivos pedagógicos com uma corrente que tem se expandido nas Escolas de Medicina em vários continentes nos últimos 40 anos, o PBL (do inglês: Problem Based Learning, ou seja, Aprendizagem Baseada em Problemas). Nas palavras de Toledo Júnior et alli ( 2008, p. 124):

O PBL foi desenvolvido a partir do melhor conhecimento do modo de aprendizado do adulto e da compreensão do funcionamento da memória humana. Ele baseia-se na mudança do processo de aprendizado, com o aluno passando a desempenhar papel ativo e preponderante em sua educação. O aluno deixa de ser um elemento passivo, exposto à informação por meio de aulas e passa a buscar o conhecimento para resolução de problemas. O PBL propõe-se a favorecer a aquisição e estruturação adequada do conhecimento em um contexto clínico, facilitando sua ativação e utilização posterior. Adicionalmente, o PBL tende a promover a motivação para o aprendizado e o desenvolvimento de habilidades para a autoaprendizagem.

É interessante que o trecho destacado acaba por ressoar teses de áreas tão distintas da medicina como a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e sua critica incisiva "a educação bancária", como do pragmatismo de John Dewey. Para o filósofo estadunidense, o aprender só é possível quando parte de problemas e/ou situações que são geradores de incertezas, dúvidas, questionamentos, desequilíbrios ou perturbações intelectuais. Ao se problematizar um assunto são valorizadas as vivências concretas, possibilitando a entrada em cena de fatores motivadores de caráter prático e sendo estimuladas a criatividade e a autonomia nas escolhas. O estudante não se torna repositório passivo de saber, mas sim o tecelão de seu próprio saber, o que o instrumentaliza efetivamente na solução de problemas e novos demandas não previstas nas estreitas possibilidades das soluções rígidas e inférteis.

A partir disto, a proposta a ser apresentada pretende, nos limites e especificidades da Filosofia, ser um modelo híbrido entre o modelo anglo-saxão e a PBL. Objetivo é propiciar ao estudante uma formação fundamentada na análise critica e fundamentada de argumentos de problemas filosóficos, em especial aqueles mais próximos do Direito. Tal objetivo é alcançado quando se coloca problemas que partam da experiência e concepções prévias do estudante. Ao contrário do que afirmam alguns de seus detratores, a Filosofia não é desvinculada do cotidiano. Na verdade ela parte dele, pois questões relativas a Deus, ao bem, ao certo e ao errado, a existência de uma alma imortal ou ao direito dos animais surgem espontaneamente em nosso dia-a-dia. Não é monopólio dos filósofos tais questões, mas é da seara da filosofia o modo como essas questões são abordadas com maior propriedade. O herança socrática partilhada por todos filósofos é que se focaliza nas perguntas, na análise e na reavaliação das próprias crenças a partir deste processo, e não na reprodução automatizada, sempre correndo o perigo de se tornar doutrinação dogmática. É, no caso do Direito, fornecer aos estudantes ferramentas de trabalho capazes de operar os conceitos, éticos, políticos e filosóficos que estão na base do discurso jurídico. E tais ferramentas só podem ser forjadas a medida que são utilizadas naquele processo que o helenista português Eudoro de Souza classificou como intrinsecamente doloroso: o pensar [07].

Vale a pena insistir que não se está negando a importância do estudo da história da Filosofia como uma área legitima dos próprios estudos historiográficos, nomeadamente, da história intelectual [08] e nem mesmo como subsídio para o próprio filosofar. Não existe, na verdade uma oposição entre fazer filosofia e estudar a história da filosofia. Paulo Ghiraldelli Jr. comunga desta opinião quando afirma que:

Por um lado, a história da filosofia é filosófica e, em geral, é um dos mais belos caminhos para se filosofar. Por outro lado, a filosofia sem história é uma mentira – se olharmos os papers de Quine, que foi um filósofo analítico tomado como "inimigo da história" da filosofia, veremos que são papers fundados numa boa erudição em história da filosofia. Seu artigo "Sobre o que há" é exemplo disso, a mais linda história da filosofia já feita por um amigo ou inimigo da história da filosofia.

A rejeição aqui defendida do modelo tradicional não é quanto ao conteúdo em si, mas ao modo como é ele é trabalhado do ponto de vista pedagógico. Não se pode negar que, nas palavras de Oswaldo Porchat (2007, p.41)

O legado cultural da espécie põe à minha disposição uma literatura filosófica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexão se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho também de situar-me em relação às filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as soluções que para eles propuseram. [...] Mas não posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, é porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento.

A tradição é um dos locus privilegiado para o debate dos problemas filosóficos, o estímulo inicial para o fazer próprio da filosofia. Entretanto, existe um preconceito difuso na intelectualidade nacional, de que a Filosofia só é acessível a poucos em função do alto grau de capacidade cognitiva e erudição exigida para a apreensão das idéias dos mestres do passado. Realmente, compreender livros como A Fenomenologia do Espírito de Hegel, passagens inteiras da Metafísica de Aristóteles ou os concisos e densos artigos de Donald Davidson exigem uma bagagem prévia para quem resolva dialogar com tais pensadores. Não se pode ignorar o dito de Peter Strawson (2002, p. 09) de que "não há fundos rasos nas águas da filosofia". Apenas deve-se ressalvar que isso não impossibilita o acesso, em nível superior, aos problemas filosóficos e as técnicas argumentativas relativas ao tratamento destes problemas. Apenas nos alerta que, a filosofia, como alertou Ortega e Gasset, é questão de nível, ou seja, o contato com ela deve produzir uma mudança de perspectiva perante situações que eram vistas como isentas de problemas.

O ponto fundamental aqui é que os filósofos da tradição ocidental, em grande medida analisaram teses e crenças que a maioria das pessoas endossa acriticamente. Não existe um abismo entre a inquietação filosófica e o senso comum. A primeira parte da segunda. O senso comum está eivado por opiniões acerca de Deus, a mente, a ciência, a arte, a política, a ética e vários outros assuntos – e na maioria dos casos, a fundamentação delas é frágil e injustificável. A filosofia permite o exame claro de nossos preconceitos e, simultaneamente, desenvolve a capacidade argumentativa e racional coerente. Claro que todo processo de auto-análise incluí o que para muitos é um ônus pesado demais: a insegurança e a sensação de desconforto que a reflexão produz. Mas não seria recompensador a adoção de elementos conceituais e argumentativos que funcionem em diversos campos? Desde as tarefas cotidianas mais corriqueiras, que exigem um cem número de vezes uma tomada de posição publicamente bem fundamentada, ou até os complexos problemas relacionados a existência e a natureza dos números transfinitos de George Cantor, a razão faz-se necessária.


4. Um modelo híbrido para o ensino da filosofia para o direito

4.1 Justificativa e proposta para o modelo híbrido

Partindo-se do que foi arrolado no capítulo anterior, fica evidente que o modo como o ensino da Filosofia é historicamente encarado no Brasil compromete a própria qualidade deste ensino e, conseqüentemente, a formação dos quadros de filósofos no âmbito nacional fica comprometida. Como os cursos de Direito também necessitam destes profissionais, os problemas apresentados, via de regra, também contaminam o ensino de Filosofia para os estudantes das ciências jurídicas.

Visa-se que a disciplina de Filosofia propicie o estudante a avaliar ativamente idéias, textos, argumentos e discursos; e que, além disso, ele possa elaborar argumentos com qualidade e coerência, tanto na produção de textos escritos como no debate verbal. É escusado defender o motivo pelo qual é desejável que um acadêmico de Direito adquira tais habilidades e competências. A própria prática jurídica serve como justificativa. É em função desta prática que se propõe o modelo que se segue.

No mínino, o estudante deve ser conscientizado prioritariamente de erros e falácias que o levassem, e a seu interlocutor, a raciocinar de modo equivocado. Daí, a importância de se adaptarem técnicas doAprendizado Baseado em Problemas (Problem-Based Learning - PBL), pois o debate verbal e escrito de problemas filosóficos tende a ter bons resultados para o estudante que compreende por si mesmo, a partir de seu contexto existencial, a relevância do que está implicado no tema tratado na aula

Parta-se de um exemplo hipotético, que ilustrará o modelo em tela: uma aula de 100 minutos sobre o aborto:

PLANEJAMENTO

ÉTICA: Será que o aborto é eticamente permissível?

  1. Apresentação oral do professor sobre o problema envolvido
    1. Definições prévias: o que é aborto?
    2. O problema ético: o aborto é uma variação do homicídio?
      1. O zigoto/feto é uma pessoa passível de direito?
      2. O que é uma pessoa?
  2. Abertura para debates:
    1. Formação de grupos responsáveis pelas questões levantadas;
    2. Levantamento das idéias preconcebidas prévias;
    3. Análise das idéias preconcebidas: coerencia, fundamento e conseqüências de cada uma das idéias levantadas;
  3. Pesquisa:
    1. Possibilidades: 1) pesquisa prévia, pesquisa no momento da aula ou posterior a aula;
    2. 2) Apresentação e leitura de algum trecho de um autor contemporâneo ou de um clássico da filosofia
  4. Debate final:
    1. Oral entre os grupos e professor;

IV.2 Escrito: individual.

Tal planejamento possibilita:

a)Contato com a tradição filosófica: quando se debate o aborto, as crenças religiosas surgem como um véu que trava a discussão. Neste ponto, pode-se trazer para o debate o problema da piedade religiosa levantada por Platão no Eutifron; a interpretação bíblica segundo Spinoza no Tratado Filosófico-Político; e a tese de Tomás de Aquino acerca do aborto. Se existe algo polêmico no modelo aqui defendido é a tese de que um estudante de um curso que não é o de graduação em Filosofia não deve ser se preocupar com a apreensão completa dos sistemas filosóficos de cada um dos autores tratados. O interesse é na natureza e relevâncias dos argumentos para o tema tratado e não no fato dele ser defendido por Aristóteles ou Tarski. O modelo histórico fracassa duplamente: ele, de fato, não propicia nem uma apreensão completa e responsável dos sistemas filosóficos apresentados, pois não se está propriamente num curso de filosofia, e nem, como já destacamos, fornece instrumentos intelectuais mínimos para que o estudante pense.

b)Contato com o state of art da produção filosófica mundial: o professor pode apresentar, oralmente ou em pequenos textos, os argumentos de filósofos contemporâneos, tais como Peter Singer, James Rachels,Mary Anne Warren, dentre outros. Eles surgem como interlocutores privilegiados e, por isso, suas idéias devem ser avaliadas e não decoradas. E assim como no caso dos clássicos, não existe o interesse em uma apresentação exaustiva e completa das idéias deles. Isto possibilita a utilização de trechos específicos dos textos que estejam, de fato, relacionados com o tema tratado. Mais do que isso: o recorte proposto facilita a utilização de textos breves e concisos que possam ser trabalhados em conjunto com os estudantes em sala de aula.

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c)Contato com termos e conceitos filosóficos. No caso do tema aborto, temos: ética, deontologia, consequencialismo, bioética, pessoa, direitos morais, critérios de senciência. O importante é que o estudante não entenda esses conceitos passivamente, mas sim que trabalhe com eles, seja reconhecendo que admite ou rejeita algum deles, ou apenas entendo como eles funcionam dentro do debate.

d)Estabelecimento de uma relação entre cotidiano e a filosofia: no lugar de uma aula sobre a Ética e suas correntes, traze-se um problema ético cotidiano, da qual os estudantes com certeza já possuem algum tipo de opinião. Não existe um abismo entre a filosofia e o senso comum, conforme afirmado acima. Entretanto, o escopo da aula não é, em primeiro lugar, doutrinar os discentes e, em segundo lugar, nem mesmo fazer com que eles mudem de idéia. Tal proposta pode causar escândalo em muitos, contudo o que interessa não é a imposição de uma idéia previamente tida como a correta que deveria ser incutida nos alunos. O que se espera de uma aula como essa é uma melhor qualificação das opiniões apresentadas: um crítico do aborto vai poder fundamentar melhor sua opinião, articular as razões que sustentam sua crença, compreender e mesmo aceitar críticas contrárias – e até mesmo mudar de concepção. Não existem crenças e doutrinas "escolhidas" que devam ser privilegiadas no ambiente público, mesmo que sejam as defendidas pelo professor.

e)Contato com as lógicas formal e informal: todo argumento apresentado deverá passar pelo crivo implacável da análise lógica. Ele apresenta algum tipo de falácia? A conclusão se segue de fato das premissas? Não se está a fazer apenas um apelo a autoridade? Qual dos pontos de vista apresentados são melhores que outros? Quais são frágeis e quais são bem fundamentados? Um exemplo é o uso recorrente em debates sobre bioética do conhecido "argumento da derrapagem": deplora-se um fato presente em função de especulações sobre o futuro e daquilo que tal fato pode conduzir. Um argumento deste tipo, por mais interessante que seja, é, de fato, um argumento bem estruturado?

A tabela a seguir descreve, ainda que de modo rudimentar, a estrutura de curso de um semestre, com 40 horas/aula de duração, de Introdução a Problemas Filosóficos para o Direito:

Problema

Área/Tema da filosofia

Tema

transversais

Textos

Estado da Arte

Tradição

O que é Filosofia?

- Metafilosofia

Lógicas formal e informal

- Thomas Nagel;

- Simon Blackburn;

-Richard Rorty

- Aristóteles;

-Kant;

- Russell

Será razoável acreditar em Deus?

- Argumentos acerca da existência de Deus;

- O problema do mal;

- Filosofia da Religião;

- Metafísica;

- Swinborne;

- Onfray;

- Plantinga

- Tomás de Aquino;

- Pascal.

Poderá uma máquina pensar?

- Problema mente-copro;

- Filosofia da mente;

- Jerry Fodor;

- D. Dennett;

- Searle;

- Descartes

As pessoas serão responsáveis pelo que fazem?

- Livre-arbítrio;

- Determinismo

- Metafísica;

- Filosofia da ação;

- Inwagen;

- G. Strawson;

- Dummett

-Agostinho;

-Spinoza;

- Hobbes.

Por que razão haveremos de ser morais?

- Relativismo ético;

- Ética e religião;

- Contratualismo;

- Deontologia;

- James Rachels;

- Geertz

- Kant

- Montaigne;

-Platão

A democracia é o melhor regime político?

- Liberdade;

- Direitos;

- Igualdade;

-Justiça Social.

-Rawls;

-Popper;

- Platão;

- Hobbes;

- Mill;

 

Parte-se, como já deve ser óbvio, de uma questão – o problema que serve de eixo da aula. Um único problema possibilita acesso a diversos temas e áreas da filosofia, como pode-se observar no caso do problema "Será razoável acreditar em Deus?" que transita pela metafísica, pela filosofia da religião e pela ética. Para cada aula pode-se disponibilizar trechos de alguns autores atuais que tratam do tema e de algum clássico da filosofia. Cada texto deve ser apresentado pelo professor, mas também lido pelo aluno que deverá ser, de algum modo, questionado quanto a seu entendimento do texto.

Apesar do cerne das aulas serem os problemas, as principais áreas da filosofia são abordadas: Metafísica, Epistemologia, Ética, Filosofia da Mente e Filosofia Política. O aluno tem conhecimento tanto da discussão atual, como também da contribuição dos clássicos. A formação humanística do estudante, deste modo, não é prejudicada e sim enriquecida, pois os textos clássicos são trabalhados como eles devem ser: textos que ainda tem o que nos dizer, independente da época no qual foram produzidos.

4.2 Sobre a transversalidade das lógicas no ensino de Filosofia

Perceba-se a importância dada à lógica: ela perpassa o curso não como um conteúdo específico, mas como um tema transversal. Para se compreender a função da lógica na proposta defendida, faz-se necessário um breve excurso histórico.

Durante a Idade Média, a lógica ocupou uma posição destacada entre as disciplinas do trivium medieval. Atualmente, após a revolução logicista do início do século XX, a lógica acabou se tornado um estudo mais próximo da matemática pura do que uma arte liberal, deixando de lado os moldes na qual ela se adequava quando era praticada no medievo.

Dentre várias definições possíveis desta já milenar ciência, que remonta aos Primeiros Analíticos de Aristóteles, adotamos a de M.S. Lourenço, que limita sua definição de Lógica á Lógica Formal que:

[...] tem se ocupado da análise de relações entre proposições com vista a uma definição exata do conceito de demosntração e, já mais recentemente, de conceitos afins, como refutação, compatibilidade e confirmação, que em principios podem, no entanto ser reduzidos ao conceito de demonstração (LOURENÇO, 2006, p. 444).

A partir de Boole e Frege, no século XIX e Russell e Whitehead na primeira década do século XX, a lógica formal tornou-se a Lógica Simbólica/Matemática, no qual o estudo das inferências válidas é formulado em linguagem artificias e puramente formais. Russell asserava que:

A matemática e a lógica, historicamente falando, tem sido consideradas disciplinas distintas. A matemática achava-se relacionada com as ciências e, a lógica, com o pensamento. Todavia, amabas se desenvolveram na época atual. A lógica tornou-se mais matemática, e a matemática, mais lógica (RUSSELL, 2007, p. 203).

Além da Lógica Formal, outro ramo importante da Lógica é a Lógica Informal, que pode ser definida como o:

Estudo dos aspectos lógicso da argumentação que não dependem exclusivamente da forma lógica, constratando assim com a lógica formal, que estuda apenas os aspectos lógicos da argumentação que dependem exclusivamente da forma lógica [...] À exceção dos argumentos dedutivos formais, todos os argumentos são informais, into é, são argumentos cuja validade ou invalidade não é determinável exclusivamente com base na sua forma lógica (MURCHO, 2006, p. 574-577).

Contudo, apesar do caráter aparentemente bizantino e esotérico de tais definições, nada mais natural do que incluir a lógica num programa de introdução a problemas filosóficos. Sem a capacidade de perceber falácias, sem a possibilidade de articular e analisar argumentos, o que resta do filosofar? Retórica? Mesmo o discuros retórico pressupõe o conhecimento da lógica. A filosofia não se reduz a lógica, é claro, mas ela não se faz sem ela. Mesmo filósofos, que em função de decisões filosóficas extremas, parecem abandonar a lógica tradicional – seja Hegel e a sua busca por uma terminologia e sintaxe filosófica que descrevesse a dinâmica dialética do Espírito, seja Heidegger e sua volta a um filosofar que supere os ditames da metafísica platônica, da epsitemologia pós-cartesiana e do cientificismo positivista do início do século XX – o fazem conscientes da decisão que estão fazendo. E não é isso que se exige, obviamente, de um estudante de graduação num curso introdutório.

No caso do Direito, partilha-se a opinião defendida por Perelman (1996, p. 52). Para ele, existe uma Lógica Jurídica, que caracteriza-se pela essencialidade argumentativa e pela participação de elementos retóricos no seu tecido discursivo. Por isso, não se deve limitar as incursões à lógica desenvolvidas nas aulas apenas à lógica formal. O caráter retórico inerente aos discurso jurídico faz da lógica informal um instrumento tão importante para o jurista na elaboração de seus instrumental intelectual como a lógica formal. Para Kelsen (1986) existiria uma interação profunda entre a Lógica e o Direito, especialmente no que tange aos enunciados jurídicos e sua estrutura proposicional. As proposições jurídicas, para Kelsen, teriam como referencia ou conteúdo [09] as condutas humanas, implicando, desta feita, à juízos de ordem onto-axiológica. A estrutura dos enunciados jurídicos seriam contemplados pela lógica formal, mas a referencia das mesmas traria à baila os recursos fornecidos pela lógica informal.

Em função disto, a estrutura de conteúdos, pode-se dedicar algumas aulas a uma apresentação de certos elementos de lógica proposicional e de lógica informal, especialmente, falácias. Entretanto, não se deve abster de todo o conteúdo ser perpassado pelo uso e apresentação de técnicas oriundas da lógica. As opções de livros e textos é imensa. Desde os clássicos, técnicos e diretos, como Lógica de John Nolt e Dennis Rohatyn (NOLT; ROHATYN, 1991) e Introdução à lógica de Irving Copi (2008) até os lúdicos e divertidos livros de Raymond SmullyanAlice no pais dos enigmas (2000) e O enigma de Scherazade (1998). No campo da lógica informal pode-se optar pelo também clássico de D. Walton (2006), Lógica informal – Manual de argumentação crítica, ou, para uma aproximação menos técnica, mas nem por isso menos precisa e correta, A construção do argumento de Anthony Weston (2009). Em ambos, o estudante poderá aprender a compor argumentos, distinguir tipos de argumentos e identificar falácias. As palavras de Frank Sautter sobre Frege ilustram perfeitamente a tese aqui defendida acerca do papel da lógica no ensino:

Numa certa ocasião Frege, ao justificar o seu projeto de fundamentação da aritmética, observou: "Muitos estimarão decerto que isto não paga a pena. (...) Pois quem julga ter ainda o que aprender sobre algo tão simples?"12 Muitos considerarão o mesmo a respeito do papel da lógica num curso de filosofia, julgando-se suficientemente instruídos na arte da argumentação. A esses só posso responder do mesmo que Frege respondeu socraticamente aos seus críticos: "Falta portanto freqüentemente aquele primeiro pré-requisito da aprendizagem: o saber do não saber"(SAUTTER, 2004).

O "não-saber" reclamado por Frege é, surpreendentemente, algo que deve ser mostrado a uma parte dos estudantes. Algumas pessoas se aferram de maneira tão arraigada a suas opiniões que qualquer tese num sentido contrário acaba por ser imediatamente rechaçada. Tal fenômeno, de apego irracional às próprias e precárias opiniões, pode-se denominar de doxolatria. Aires de Almeida ilustra o ponto com um exemplo:

Um aspecto muito importante numa discussão filosófica é o facto de as pessoas terem opiniões diferentes e discordarem acerca do mesmo assunto. Discordar de alguém é negar uma dada proposição, pelo que saber negar proposições é um aspecto fundamental da discussão filosófica. Ora, por vezes não é fácil saber o que se está a dizer quando se discorda de alguém: parece que estamos a negar uma dada proposição quando isso realmente não ocorre. Eis um pequeno diálogo ocorrido numa aula em que se discutia o problema do sentido da vida:

Aluna: Que sentido faz a nossa vida se depois acabamos por morrer?

Aluno: Vê-se mesmo que não acreditas em Deus. Qualquer crente compreende que a vida tem sentido.

Aluna: Não, não acredito nisso. Para que preciso eu de Deus? As pessoas que acreditam em Deus também morrem como as outras.

Aluno: Mas Deus garante-nos que a nossa vida não foi em vão.

Aluna: Onde queres chegar com isso?

Aluno: Estou a dizer que ou Deus existe ou a vida não tem sentido.

Aluna: Pois, mas não concordo com isso.

Aluno: Não concordas? Estás então a querer dizer que...

Aluna: ... que Deus não existe ou vida tem sentido.

Será a inferência feita pela aluna na sua última intervenção válida? Alguns alunos pensam que sim e outros ficam na dúvida, apesar de se tratar de uma inferência inválida. Se os alunos dominarem algumas noções elementares de lógica, torna-se fácil mostrar qual é o erro: a última intervenção da aluna não é, ao contrário do que ela supõe, a negação da disjunção "Deus existe ou a vida não tem sentido". Se os alunos compreenderem o funcionamento semântico da disjunção e conhecerem as leis de De Morgan, conseguem descobrir isso sem grande esforço. O professor terá, neste caso, vantagem em apelar aos conhecimentos de lógica leccionados anteriormente para mostrar que a aluna não está realmente a negar o que o aluno tinha dito. Erros deste tipo são muito frequentes, mas podem ser antecipadamente explicados e prevenidos quando se apresentam e explicam as tabelas de verdade para a disjunção, a conjunção, a condicional e a bicondicional (ALMEIDA, 2009).

Por mais que o exemplo demonstre cabalmente como uma bagagem lógica permite dirimir problemas e confusões conceituais, um série de problemas extra-classe devem ser levantados. Tais problemas têm impacto para toda e qualquer tentativa em se promover a formação cultural e intelectual do estudante que escape dos ditames pragmáticos que regem parte do ensino superior no Brasil atualmente. Parte do distanciamento e incompreensão acerca do ensino da filosofia e, por tabela, da lógica e outras saberes humanísticos nos cursos de graduação de Direito advém de uma profunda incompreensão da natureza do Ensino Superior.

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Sobre o autor
Anderson Cleiton Fernandes Leite

Possui bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (2003) e mestrado stricto senso em Filosofia pela mesma instituição (2007). Concluiu, em 2010, curso de especialização lato sensu em Docência Superior: Metodologia e Práticas Aplicadas ao Ensino Superior (Centro Universitário Euro-Americano. Atualmente é professor do curso de Direito do Centro Universitário Unieuro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Anderson Cleiton Fernandes. O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas.: Lógica, retórica e capacitação cognitiva do graduando de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3045, 2 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20346. Acesso em: 28 mar. 2024.

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