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O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas.

Lógica, retórica e capacitação cognitiva do graduando de Direito

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5.0 O perfil do discente de ensino superior ou quando política e sociedade entram em sala de aula.

Existe, por parte dos estudantes, uma expectativa estritamente ligada a um pragmatismo profissional míope e estéril no que se entende como ensino superior. A graduação não é encarada como uma etapa mais elevada na formação do indivíduo, e sim como um curso para a mera aquisição de técnicas e procedimentos que possibilitaram uma possível ascensão social. Claro, que tal perspectiva faz parte das razões para se cursar uma graduação, mas, de modo algum, se reduzem apenas a isto.

Veja-se o que a LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação prescreve como finalidade do ensino superior:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo;

II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua;

III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive;

IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação;

V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração;

VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;

VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (BRASIL, 1996).

Mesmo sem afirmar abertamente, infere-se do texto acima que, além da formação de um profissional, o ensino superior está focado na formação do indivíduo como um todo, no mesmo sentido apresentado pelo conceito de Bildung. Este vocábulo alemão designaria – assim como seus equivalentes helênico, paidéia, e latino, eruditio – cultura, ou de modo mais preciso, o processo da cultura, da formação, a formação cultural do indivíduo. Para Berman (1984, p. 114):

A palavra alemã Bildung significa, genericamente, "cultura" e pode ser considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete a vários outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riquíssimo campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginação, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cópia, e Urbild, arquétipo. Utilizamos Bildung para falar no grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden).

Existe, então, um abismo entre as expectativas técnico-profissionais e a finalidade do ensino superior. No caso do Direito, é patente como questões relativas a problematização e contextualização dos pressupostos do corpus jurídico são tratados com indiferença, ou mesmo escárnio. Tal situação, que reduz o ensino superior a um tipo de curso profissionalizante de luxo, tem raízes no tipo de expansão do ensino superior encampada nos últimos vinte anos no Brasil.

Alguns dados [10] prévios fornecem pistas da situação. Conforme o censo da educação superior realizado em 2004, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 86,2% dos estudantes universitários estão matriculados em Instituições de Ensino Superior (IES) particulares. Entre 1998 e 2007 o país passou de 1,5 milhão de matrículas no ensino privado para pouco mais de 3,5 milhões de matrículas. Ou seja: em apenas nove anos o setor privado mais que dobrou o número de matrículas. O perfil deste aluno seria o seguinte: 61,7% dos estudantes estão matriculados em turno noturno, com uma considerável concentração de alunos com mais de trinta anos, quase 30% do total. No total, 45% dos alunos brasileiros encontra-se na faixa etária acima dos 25 anos. Os estudantes brasileiros de IES privadas, em sua maioria, trabalham durante seus cursos de graduação: pouco mais de 60% dos estudantes afirmaram trabalhar em tempo parcial ou em tempo integral.

A demanda por um maior acesso ao ensino superior não foi satisfeita por um processo de democratização no acesso ás Instituições de Ensino Superior públicas, vistas como instituições elitistas. A estratégia adotada foi uma ampliação das instituições privadas que possibilitaram o crescimento exponencial das vagas, conforme os dados acima apresentados.

O fato é que as IES públicas estabeleceram, via vestibular, um processo seletivo que limitava o acesso do público interessado em função do nível de exigência das provas, pois a formação do brasileiro egresso do ensino médio público é, pra dizer o mínimo, deficiente. Para aumentar o número de alunos nas graduações, sem diminuir o grau de exigência dos processos seletivos das IES públicas seria necessária uma lenta e profunda mudança na educação nacional como um todo – da alfabetização até o ensino médio. Um esforço político que poucos estariam dispostos a encampar em função de uma série de interesses envolvidos e pelos resultados frutificarem apenas no longo prazo.

A saída encontrada, que alia a manutenção do status quo de uma série de grupos, desde o poder de governos municipais e estaduais sobre o ensino básico e médio até a academia e seus próprios interesses, foi o que se pode denominar de terceirização do ensino superior: o contingente de cidadãos que ansiavam por um diploma foi atendido com a expansão das IES privadas.

É tal contexto político que explica, dentre outros fatores, o perfil do estudante padrão das IES privadas. O ensino superior não é visto como uma possibilidade de adquirir e produzir conhecimentos que serão aplicados não somente nas práticas profissionais, mas sim na formação de um cidadão como um todo. Mesmo do ponto de vista estritamente profissional, está se criando um indivíduo que entende o conhecimento como um conjunto estático de fórmulas e receitas prontas incapaz de aplicar o saber na resolução de problemas cotidianos. Sua formação é rígida, pois não houve a problematização efetiva do que lhe foi apresentado. Ao se deparar com os limites de seu arremedo de formação profissional, a explicação dada fundamentação num truísmo corriqueiro: a faculdade é centrada na teoria e a prática é, na realidade, é outra. Tal apelo ao pragmatismo raso é o ponto de reinício do circulo vicioso de uma formação intelectual deformada: a teoria não é desvinculada da prática, nem sequer existe uma prática isenta de teoria, mas sim o modo como ela é apresentada é que causa esse abismo entre ela é a prática.

Alguns analistas de nossa cultura observam raízes mais profundas nessa postura. Ela estaria entranhada no ethos do brasileiro, não sendo um fenômeno circunscrito apenas as camadas sociais que adentram em massa no ensino superior privado. Para Ghiraldelli, a cultura brasileira é marcada pelo

cultivo da informação falsa ou deturpada [...] fruto de nossa cultura pouco letrada e bastante distante de formas de investigação empírica e do apreço pela lógica. Não gostamos de checar informações antes de passá-las adiante. Temos um espírito crítico pouco aguçado diante de doutrinas inconsistentes logicamente ou factualmente pouco prováveis. Isso poderia parecer um defeito técnico, sanável a partir de maciça escolarização de caráter iluminista. Mas não é um problema só dessa ordem. Há algo em nossa cultura que nos impede de darmos um salto para além desse desejo de passar informação como quem passa folheto de missa. Fomos colonos durante muito tempo e cultivamos o regime escravocrata por mais tempo que qualquer outro país do Novo Mundo. Esse tipo de vida nos fez aderir à informação passada de boca em boca pelo sussurro, pelas técnicas de engana-patrão ou engana-branco que, enfim, também criaram nossa famigerada cultura do jeitinho e nossa conhecidíssima hipocrisia (GHIRALDELLI, 2011).

Uma cultura aristocrática e estamental, fundamentada em séculos de escravismo, não apresentaria apreço pelo ambiente democrático e público necessário a discussão acadêmica. A educação, em função de nosso bacharelismo endêmico, significa busca de status social e não construção de uma formação cidadã e autônoma. Por isso, não se reconhece a formação , mas a apenas a instrução que possibilita mudança na posição social. Uma sociedade fundada na ostentação de títulos e de prestígio não poderia valorizar um espaço mediado por um instrumento tão igualitário como a lógica: o interlocutor, ao solicitar razões e justificativas a seu oponente, desfaz as aparências e os títulos instantaneamente. Emanuel Araújo disseca no erudito e brilhante Teatro dos vícios uma série de elementos presentes na sociedade brasileira colonial que estão na base de nossa mentalidade nacional, e que acabam por conformar nossa fascinação pelas aparências em detrimento do debate aberto. Para Emanuel Araújo, no Brasil colônia

Não bastava ganhar muito dinheiro e com ele comprar casas e terras. Havia que ser reconhecido e, se possível, admirado como pessoa de fino trato, algo próximo a fidalguia, o que não era pouco numa terra onde a nobreza de sangue significava o topo da pirâmide social. Por isso, alardear amizades influentes, vestir-se com esmero, falar bonito, pavonear opulência e, se possível, exibir boa árvore genealógica (mesmo falsa [11]), dava importância maior às pessoas – ou pelo menos elas assim presumiam (ARAÚJO, 2008, p. 107).

Tal cenário torna-se mais inteligível quando recorre-se as categorias opostas e complementares de Casa e Rua propostas pro Roberto DaMatta (1979, p. 70 e segs.) como chaves heurísticas para a compreensão da mentalidade brasileira. Segundo Emanuel Araújo, este seria um traço dos mais arraigados na identidade social brasileira. É em função dela que

Na experiência brasileira o vocábulo ‘público’ quase nunca teve acepção política, mas e exibição, em que ‘sair em público’, ‘ir à rua’, ganha forte acepção teatral, carnavalizando-se os atos coletivos (inclusive religiosos) como forma de afirmação e consolidação de papéis sociais (ARAÚJO, 2008, p. 26).

Compreender o processo histórico e social no qual se insere nossa facticidade (num sentido heideggeriano) em sala de aula fundamenta e orienta nossa ação em busca de mudanças, mas isso é apenas uma etapa do processo. Sem dúvida, parte da responsabilidade desta situação recaí sobre o docente. O perfil necessário para que ele possa ser um agente na reversão do quadro descrito pode ser sintetizado na máxima de Paulo Freire (1996, p.113) sobre a relação com os alunos: "[...] é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições, precise de falar a ele." Freire considerava que alguns o docente deve adentrar ativamente na seara do saber que modo a se assumirem também sujeitos da dinâmica produtiva do saber. O professor deve se convencer que o ensinar não é tão somente reproduzir conhecimentos, mas sim, criar instâncias que possibilitem a construção ou produção do saber. Ele afirmava que:

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Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos – conteúdos – acumulados pelo sujeito que sabe e que a mim são transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto do meu ato formador. É preciso, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 1996, p. 23)

A singularidade do indivíduo que se coloca diante do docente é ignorada em função de concepções rígidas e dogmáticas que embotam a sensibilidade e embotam a escuta ativa – em consonância com Freire (1996) – do professor. Talvez seja principal instrumento cognitivo no que diz respeito a acessar a singularidade de cada aluno e possibilitar ordenar seu trabalho em função dessa singularidade. A idéia de uma escuta no contexto pedagógico é delineado por Ceccim (1997, p.31)

O termo escuta provém da psicanálise e diferencia-se da audição. Enquanto a audição se refere à apreensão/compreensão de vozes e sons audíveis, a escuta se refere à apreensão/compreensão de expectativas e sentidos, ouvindo através das palavras as lacunas do que é dito e os silêncios, ouvindo expressões e gestos, condutas e posturas. A escuta não se limita ao campo da fala ou do falado, [mais do que isso] busca perscrutar os mundos interpessoais que constituem nossa subjetividade para cartografar o movimento das forças de vida que engendram nossa singularidade.


4.0 Conclusão

A proposta aqui apresentada só atinge seu sentido pleno quando enquadrada na situação do ensino superior brasileiro descrita na última parte do artigo. Caso não se abandone a postura reativa e passiva típica da classe docente as mudanças aqui propostas serão esvaziadas de sentido. Efetivar uma aula problematizante e dinamizá-la pressupõe um planejamento prévio e uma atitude dinâmica por parte do professor que exige muito mais do que a tradicional e carcomida aula expositiva. É notável como o ensino é uma das áreas mais resistentes a mudanças: a estrutura padrão de aula – "professor-apresentação oral-quadro negro-aluno em silêncio sentado" – remete a laicização do ensino instaurada pelas reformas napoleônicas do início do século XIX, mas podemos encontrar as raízes de tal padrão na educação medieval. Mesmo que existam quadros negros sensíveis ao toque e carteiras com computadores embutidos, nada disso rompe com a passividade do estudante e o protagonismo do professor durante a aula.

Nada mais anti-filosófico do que uma transmissão de conhecimento baseada em tal modelo. A herança socrática, no qual qualquer filósofo de fato se reconhece, é sufocada quando enquadrada neste cadinho limitante e estagnado que, na maior parte do tempo, é uma sala de aula. Mais do que tentar dirimir um problema ligado ao papel da filosofia no curso de Direito, parte da motivação do trabalho que ora termina, é reinserir a filosofia de modo relevante na sociedade para além do necessário e árduo trabalho acadêmico e das suas emulações ocas praticadas em revistas e cadernos culturais de jornais.

Apesar do contexto não ser dos mais favoráveis, em função de hábitos intelectuais arraigados nos próprios filósofos-docentes, como nos próprios discentes, conforme apontado acima, é possível transformações pontuais que rompam com os vícios do sistema como um todo. Uma aula nos moldes apresentados pode, efetivamente, justificar a presença da filosofia na grade do curso de Direito, pois o conteúdo e as atividades apresentados estão obviamente relacionados com sua vivência e com sua futura prática profissional. Pode-se argumentar, contrariamente ao exposto, que a prévia formação deficiente do estudante impossibilita o estabelecimento por parte dele desta relação. Contudo, o próprio artifício de aproximar o conteúdo de questões cotidianas e de questões relativas ao próprio Direito fornece a um caminho para a superação de parte desta limitação. O estudante, mesmo com dificuldades em acompanhar o conteúdo, perceberá, caso esteja agindo sem má-fé, a importância do estudo dos tópicos abordados para sua carreira e sua formação. Mesmo alguns tópicos mais áridos, como as incursões no terreno da lógica, são facilmente legitimados pela sua função em instrumentalizar o discente em sua abordagem aos textos jurídicos e similares.

Não se pode esperar que as mudanças estruturais, que poderiam melhorar o nível dos estudantes, ocorram para que, só a partir daí, o processo de ensino nas faculdades melhore. O resultado desta postura passiva e irresponsável é que o docente oscila entre dois extremos: entre um cinismo impotente, que se utiliza de uma pretensa superioridade moral e intelectual diante dos alunos para deixar as coisas como estão, ou o desespero puro e simples que atinge a alguns e que tem como conseqüência a crescimento entre os professores da síndrome de burnout. Para estes últimos resta uma vida profissional mergulhada num estado de esgotamento físico e psíquico que faz com que eles deixem de deixa de investir em seu trabalho e nas relações afetivas que dele decorrem.

Não resta dúvida, então, que uma mudança, por setorizada que seja, pode ensejar mudanças no quadro mais amplo do ensino superior, bastando aquilo que Kant considerava o único bem irrestrito: a boa vontade.

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Sobre o autor
Anderson Cleiton Fernandes Leite

Possui bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (2003) e mestrado stricto senso em Filosofia pela mesma instituição (2007). Concluiu, em 2010, curso de especialização lato sensu em Docência Superior: Metodologia e Práticas Aplicadas ao Ensino Superior (Centro Universitário Euro-Americano. Atualmente é professor do curso de Direito do Centro Universitário Unieuro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Anderson Cleiton Fernandes. O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas.: Lógica, retórica e capacitação cognitiva do graduando de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3045, 2 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20346. Acesso em: 25 abr. 2024.

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