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Práticas comerciais abusivas e sociedade de consumo

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10/11/2011 às 16:42
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4. Cobrança de dívidas

4.1. Introdução

O regramento consumerista da cobrança de dívidas parte dos princípios da preservação dos direitos de dignidade do consumidor, da sua integridade moral e patrimonial e da sua honra objetiva e subjetiva, princípios estes que encarnam valores superiores ao mero interesse econômico do fornecedor na cobrança, o que se admite a partir da posição de vulnerabilidade em que aquele se encontra diante deste.

O fornecedor tem o dever de cuidado com a pessoa do consumidor quando da cobrança, e o abuso ou desrespeito na sua efetivação ensejam a integral reparação dos danos materiais e morais inerentes. A "cobrança é risco profissional do fornecedor, que deve realizá-la de forma adequada, clara e correta (art. 42 c/c arts. 30, 31, 52) e suportar seus gastos (art. 51, XII)". [19] Isso porque o crédito é figura corriqueira e mesmo indispensável ao funcionamento do sistema de produção e consumo no modelo de livre iniciativa capitalista consagrado pela Constituição [20], e as regras sobre a sua recuperação – a cobrança de dívidas – estão entre as mais incisivas para a proteção do consumidor, que se encontra em especial estado de submissão diante daqueles que desejam abusivamente recobrar seus créditos.

Vivemos em um ambiente negocial-consumerista em que surge como numeroso o problema do superendividamento, a que se refere Efing [21], o qual atinge de forma especialmente dolorosa as classes mais pobres e/ou os idosos, os quais devem merecer uma atenção especial. Infelizmente, a política de estímulo a diversos mecanismos de incentivo à concessão de crédito, como é o crédito consignado, com cobrança através de desconto direto em folha de pagamento, a juros verdadeiramente estorsivos, diante do baixíssimo grau de risco, estão fazendo e irão fazer surgir uma grande camada de população superendividada.

A análise do aspecto evolutivo da proteção normativa do devedor na recuperação de créditos reflete o caráter de civilidade e de proteção à dignidade que o instituto adquiriu recentemente, sendo que, em nossas terras, a Constituição de 1988 e o CDC foram os marcos mais significativos do atual estágio da matéria.

Desde logo, avulta-se os deveres de informar e de cooperar com o consumidor para que este possa corretamente adimplir sua obrigação. Em uma sociedade tecnológica e multiconsumerista, em que o consumidor é ao mesmo tempo trabalhador inserido no ambiente competitivo de livre mercado, ao passo que consome todos os dias através de diferentes papéis por ele exercidos (no trabalho, na administração doméstica, no lazer, etc.), pagar deve ser algo facilitado para o consumidor, não especificamente no sentido do quantum debeatur, mas sim no sentido de que o consumidor deve ter direito à informação completa, verídica e tempestiva, de fácil entendimento, e deve ter os instrumentos para efetuar o pagamento facilitados, devendo o fornecedor com ele cooperar neste sentido.

4.2. Cobrança de forma abusiva ou vexatória

Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça, conforme determina o art. 42, caput, do CDC, o qual, com estas três expressões, procurou abranger o conjunto de situações que, hipoteticamente, possam atentar contra a dignidade do consumidor. Parte-se do importante pressuposto que o consumidor inadimplente não é diminuído em sua dignidade em razão da inadimplência, não podendo ser considerado imoral nem suscetível de ataques contra sua honra ou integridade moral, física ou patrimonial.

O fornecedor deve se utilizar de cuidado e zelo na cobrança, que, evidentemente, o CDC não visa dificultar. As regras de proteção do consumidor não são, em si, qualquer dificultação da recuperação de créditos, apenas exigem que esta seja procedida civilizadamente.

Não pode o fornecedor utilizar-se de qualquer tipo de ameaça, conceito que não se restringe ao conteúdo tipificado penalmente no art. 147 do Código Penal – ameaçar alguém, por palavras, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave –, mas sim, como afirma Efing, abrange "qualquer atitude que incute medo ao consumidor com o objetivo de cobrar o débito". Insere no contexto da ameaça, juntamente com o do constrangimento, a utilização de informações falsas para ludibriar o consumidor.

O constrangimento se refere a qualquer expediente que tenda a coagir o consumidor, física ou moralmente, ao adimplemento do crédito. Não pode, p.ex., o consumidor ser exposto a terceiros como estando em estado de inadimplência, como seria o caso de cobrança ostensiva no ambiente de trabalho do consumidor, em sua residência, perante sua família ou amigos, diante de seus clientes ou fornecedores, etc. Estes tipos de constrangimento, além de atentar diretamente contra a forma digna de se cobrar dívidas, ofendem a privacidade do consumidor, no duplo sentido da publicidade de sua inadimplência e do conhecimento da realização do negócio jurídico que deu origem ao débito.

Tamanha foi a preocupação do ordenamento com esse problema que o legislador utilizou-se da ultima ratio, o Direito Penal, para criminalizar as condutas que são consideradas mais graves entre aquelas que são cobranças abusivas ou vexatórias, nos termos do art. 71 do CDC, in verbis:

Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaças, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, ao ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:

Pena – Detenção de três meses a um ano e multa.

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4.3. Cobrança de valor indevido

Conforme determina o parágrafo único do art. 42, "o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável". [grifei]

A grande discussão jurisprudencial que se trava na interpretação deste dispositivo pode ser resumida na determinação do alcance da expressão "engano justificável". Para a maior parte da doutrina, engano justificável seria aquele que não decorre nem de dolo nem de culpa do fornecedor, como aponta Antônio Herman V. Benjamin, autor que acrescenta que engano justificável "É aquele que, não obstante todas as cautelas razoáveis exercidas pelo fornecedor-credor, manifesta-se" [22].

Efing considera que "O engano justificável tem alcance de boa-fé, ou seja, sendo erro escusável, não deverá ser aplicável a pena da restituição em dobro, mas sim, a restituição da importância cobrada em excesso, devidamente corrigida", e logo mais acresce que "Por tais razões temos afirmado que as casas bancárias na realização de suas atividades profissionais – pela própria vocação contábil e financeira – não podem como regra geral, prestarem serviços de cobrança de valores indevidos e alegarem engano justificável". [23]

No mesmo sentido caminha a opinão de Cláudia Lima Marques, do próprio Antônio Herman V. Benjamin e de Bruno Miragem, que se revoltam contra a posição majoritária da jurisprudência, a qual "Quase que somente em caso de má-fé subjetiva do fornecedor, há devolução em dobro, quando o CDC, ao contrário, menciona a expressão ‘engano justificável’ como única exceção. Mister rever esta posição jurisprudencial. A devolução simples do cobrado indevidamente é para casos de erros escusáveis dos contratos entre iguais, dois civis ou dois empresários, e está prevista no CC/2002. No sistema do CDC, todo o engano na cobrança de consumo é, em princípio, injustificável, mesmo o baseado em cláusulas abusivas inseridas no contrato de adesão, ex vi o disposto no parágrafo único do art. 42. Cabe ao fornecedor provar que seu engano na cobrança, no caso concreto, foi justificado". [24] [grifei]

Pode-se considerar que a cláusula de restituição em dobro possui o efeito pedagógico e preventivo, para "evitar que o fornecedor se ‘descuidasse’ e cobrasse a mais dos consumidores por ‘engano’" [25], havendo uma presunção relativa de que o engano é injustificável, apenas podendo ser afasta se cabalmente comprovado pelo fornecedor que o erro foi escusável. Outrossim, se, além de injustificável, a cobrança do valor indevido tiver advindo de cláusula ou prática abusiva, como o envio do nome do consumidor para cadastros de consumidores, caberá cumulativamente à restituição em dobro a indenização pelos danos causados, inclusive os morais.


Bibliografia:

EFING, Antônio Carlos, Bancos de dados e cadastro de consumidores – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba: Juruá, 2004

MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais – 5ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


Notas

  1. Como referido por EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 53.
  2. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 451. Os autores não expressam exatamente as idéias aqui expostas, porém, inserem irrefutavelmente os "agentes econômicos" como sendo consumidores protegidos em sua exposição às práticas abusivas.
  3. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 452.
  4. STJ – 3ª T. – REsp. 476428/SC – rel. Min. Nancy Andrighi – j. 19.04.2005; STJ – 3ª T. – REsp. 245660/SE – rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – j. 23.11.2000.
  5. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto – 5ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1998, apud EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 183-184.
  6. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e, O direito do consumidor comentado – Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 218-219, apud EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 197.
  7. EFING, Antônio Carlos, Idem.
  8. Parte-se do pressuposto de que a Administração Pública stricto sensu não pode legislar com hierarquia primária.
  9. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 561.
  10. EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 202.
  11. TJRS – Ap. Cív. 7005954235 – rel. Des. Ana Maria Nedel Scalzilli – j. 16.10.2003.
  12. TJRS – 10ª Câm. – Ap. Cív. 70004903480/RS – rel. Des. Paulo Antônio Kretzmann – j. 02.10.2003.
  13. EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 198.
  14. Problema tratado como questão de imputabilidade no direito penal, e que é tratado no direito privado tradicional como questão de capacidade para a realização do negócio jurídico.
  15. EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 199.
  16. Na famosíssima expressão arendtiana.
  17. EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 200.
  18. Art. 174, §4º.
  19. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 606.
  20. Sempre lembrando que nosso modelo não é o do capitalismo liberal, mas sim uma economia de mercado onde a livre iniciativa convive com o valor social do trabalho humano, e com o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
  21. EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 204.
  22. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto – 5ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1998, apud EFING, Antônio Carlos, Fundamentos do direito das relações de consumo – 2ª ed. – Curitiba : Juruá, 2004, p. 208.
  23. EFING, Antônio Carlos, Idem p. 209.
  24. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 593.
  25. MARQUES, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 593.
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Sobre o autor
Sérgio Valladão Ferraz

Auditor-Fiscal da Receita Federal.Mestre em Direito pela PUCPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRAZ, Sérgio Valladão. Práticas comerciais abusivas e sociedade de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3053, 10 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20409. Acesso em: 19 dez. 2024.

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