Uma parte do hodierno cenário político do Brasil assombra e indigna a população, dadas as denúncias e constatações de malversação da máquina pública. No entanto, existe uma linha bem tênue que passa quase sempre despercebida aos olhos do grande público: a diferença da ética do particular e da ética do gestor público, algumas vezes incompreendida. E é justamente o motivo desta incompreensão que passaremos a explanar.
Antes de adentrar no mérito do que seja ética da convicção e ética da responsabilidade, cumpre explicar o gênero, ou seja, a Ética, do qual aquelas são espécies.
De acordo com Miguel Reale:
"... não é a Doutrina da Ação em geral, mas propriamente a Doutrina da Conduta, da ação inseparável de sua razão ou critério de medida, de sua norma, mediante a qual se expressa teleologicamente um valor. A Ética é, em suma, a teoria da conduta, o que equivale a dizer: teoria normativa da ação." (Miguel REALE, Filosofia do Direito, Vol. I, Tomo II, p. 346)
Para responder ao questionamento de por qual motivo o ordenamento jurídico por vezes parece destoar do fim para o qual ele foi preponderantemente criado, mister se faz informar o que seja ética da convicção e ética da responsabilidade, e ainda as teorias do Mínimo Ético e dos Círculos Secantes.
Chama-se ética da convicção as ações morais individuais, praticadas independentemente dos resultados a serem alcançados. Ou seja, é o "dever pelo dever", no dizer de Immanuel Kant. Ética da responsabilidade, por sua vez, é a moral de grupo, muito diferente da individual, pois aquela se refere às decisões tomadas pelo governante para o bem-estar geral, embora muitas das vezes possam parecer erradas aos olhos da moral individual.
Na ética da responsabilidade, o que valida um ato é o resultado, e não a intenção. Destarte, podemos afirmar que a ética da responsabilidade corresponde às decisões tomadas por aqueles que, investidos no poder, tudo fazem para manter a harmonia social.
A Teoria do Mínimo Ético, desenvolvida por diversos doutrinadores, teve por maior aperfeiçoador e expositor o alemão Georg Jellinek, no final do século XIX e começo do seguinte, preceitua que o Direito seria apenas o mínimo de Moral exigido para que a sociedade não se dilacerasse.
Para esclarecer ainda mais o tema, valhamo-nos da lição do saudoso Miguel Reale, luminescência jurídica universal, que ao lado de Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda, representa o que de melhor já produziu este país em matéria jurídica:
"A Teoria do Mínimo Ético consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são inevitáveis, é indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a sociedade considerar indispensável à paz social. Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas." (Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 42)
A Teoria do Mínimo Ético pode ser representada através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito.
Referida teoria revela-se insustentável, uma vez que acaba por defender que tudo que pertence à esfera do Direito é moral, o que constitui verdadeira aberração, uma vez que a experiência, de sobejo, nos demonstra o contrário.
Mais afeita à realidade e à teoria é a "Teoria dos Círculos Secantes", segundo a qual Moral é Moral e Direito é Direito, com alguns pontos de contato, e jamais um contendo o outro. Esta teoria pode ser representada através da imagem de dois círculos secantes, onde um faz as vezes do Direito e o outro as da Moral, sendo a intersecção os pontos de contato entre as duas Ciências.
Isso posto, temos agora subsídios suficientes para responder com precisão ao questionamento "por qual motivo o ordenamento jurídico parece por vezes contrariar o fim para o qual ele foi criado, a saber, atender às aspirações sociais?"
Este sentimento de insatisfação com o ordenamento jurídico, na esmagadora parte das vezes repousa no fato de que foge aos espíritos mais despreparados a noção das éticas individual e de grupo. Desta maneira, as prescrições do ordenamento que em um primeiro momento possam parecer desconforme ao querer social individual, está conforme ao querer social coletivo e vice-versa. Logo, o que parece em desacordo com as aspirações sociais, em sua quase totalidade provém da diferenciação entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, que como já visto são bem diferentes; a primeira informa a moral individual, o dever pelo dever, ao passo que a segunda informa a moral de grupo, onde o que importa é o resultado, e não a intenção. Contudo, ambas são tuteladas pelo ordenamento jurídico, e imprescindíveis para o bom funcionamento, pacificação e segurança das relações jurídicas.