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Transformações no sistema de ilicitudes no Código Civil de 2002

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22/11/2011 às 18:36
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O Código Civil trouxe dispositivos que oportunizam um sistema de norma geral da responsabilidade civil objetiva, ao passo que a tradição do Direito Brasileiro era de ter a aplicação da responsabilidade objetiva somente em casos específicos definidos previamente na legislação.

Sumário: INTRODUÇÃO; I – REGIMES TRADICIONAIS DA ILICITUDE; A) A ilicitude pela violação de um direito; B) O abuso do direto ou o exercício ilegítimo das posições jurídicas; II – NOVOS REGIMES DA ILICITUDE: DA TRANSFORMAÇÃO DE UM REGIME ESPECIAL EM UM REGIME GERAL; A) A ilicitude pelo risco na atividade; B) A ilicitude pelo “risco do empreendimento”; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA

Resumo Este artigo trata do sistema das ilicitudes no Código Civil de 2002, fazendo uma análise comparativa com o sistema adotado no Código Civil de 1916. O texto aborda as espécies de ilicitude consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, na vigência do Código Civil revogado, e que agora foram positivadas no Código Civil. Também é feita uma abordagem dos casos de ilicitude inaugurados pela nova legislação e do tratamento que tem sido dado pela doutrina e jurisprudência a esses casos.

Palavras-chave: Responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva, culpa, risco, abuso do direito, ato ilícito, dano, risco do empreendimento, atividade perigosa, ilicitude.


INTRODUÇÃO

O Código vigente suplantou o regime da ilicitude do Código de 1916 pela substituição de um modelo jurídico baseado em um paradigma central (culpa) com regimes excepcionais, mediante a instituição de quatro novos paradigmas, que são equivalentes, mas com âmbito de incidência distinto.

Este artigo tem por objetivo analisar o sistema das ilicitudes no Código Civil de 2002, especificamente as cláusulas gerais da ilicitude e a distinção entre o regime tradicional e o regime das ilicitudes fundadas no risco que deixaram de ser uma regra especial e ganharam o status de regime geral.

Sem ingressar na análise das excludentes da ilicitude, e nem dos demais requisitos da responsabilidade civil, que constituem tema apartado, será demonstrado o abandono pelo Código Civil de 2002 do sistema de ilicitude consagrado no Código Civil de 1916 que prestigiava a culpa como principal nexo de imputação da responsabilidade civil, o que é essencial para compreender as regras gerais que autorizam a responsabilidade objetiva imputada pelo risco da atividade ou pelo risco do empreendimento.

As dúvidas que atualmente são apresentadas na doutrina e na jurisprudência passam pela delimitação terminológica e distinção entre ilicitude e culpa, a distinção entre abuso do direito no Código Civil de 2002 e os atos de emulação consagrados no Direito Romano, bem como a autonomia do regime de responsabilidade objetiva adotado no Código Civil de 2002 em relação a outros sistemas legislativos.

Parte-se do pressuposto de que não há mais utilidade em considerar a distinção entre a responsabilidade negocial ou extranegocial como a summa divisio da responsabilidade civil, já que esta, segundo as idéias de Genevièv Vieney, está na divisão entre regimes gerais e regimes especiais de responsabilidade civil[2].

Trata-se das espécies de responsabilidade e não dos regimes de responsabilidade, pois está no centro deste estudo a ruptura do Código com o modelo de “tipos de responsabilidade” e adoção dos “regimes de responsabilidade”, mediante a instituição de um sistema de ilicitudes ancorado em cláusulas gerais, tanto da responsabilidade subjetiva quanto da responsabilidade objetiva.[3]

A técnica legislativa das cláusulas gerais permite atualização e reforma da responsabilidade civil como menciona Viney, sem que haja alteração da lei. A multiplicidade de danos decorrentes de atividades diversificadas e uma grande gama de legitimados, típicos de uma vida social e econômica complexa como a nossa, exige que as reformas se inspirem em princípios genéricos suficientemente concluídos e coerentes para permitir a construção de um direito comum suscetível de fornecer as soluções satisfatórias e harmonizadas às questões que não precisam de um estatuto particular.[4]

Essa opção adotada pelo Código Civil de 2002, de estruturar a responsabilidade civil a partir de um conjunto de cláusulas gerais, cria um novo modelo que exige do intérprete novas lentes para exame da lei, pois mesmo que alguns artigos pareçam ser repetição de dispositivos do Código Civil de 1916[5], o sistema das ilicitudes estabelecido no Código Civil de 2002 é completamente novo, precisando ser lido e interpretado com esse espírito (a redação do Código Civil de 2002 está à frente da doutrina[6]) sob pena de que se reproduza a interpretação que era usada no Código Civil de 1916 a uma legislação nova.

Para tanto, dividiu-se o tema em duas partes: a primeira trata dos regimes tradicionais da ilicitude, e a segunda, dos novos regimes da Ilicitude abordando a transformação de um regime especial em um regime geral. Os capítulos correspondentes a essas partes (dois em cada parte) são divididos segundo as espécies de ilicitudes que vigoram no sistema brasileiro hoje, compreendido pelos regimes tradicionais e novos regimes.


I – REGIMES TRADICIONAIS DA ILICITUDE

O sistema das ilicitudes dos arts. 186 e 187 do Código Civil será considerado como regime tradicional, porque o art. 186 repete boa parte do que havia na redação do art. 159 do Código Civil de 1916 e no art. 187 consolida a teoria do abuso do direito (ou como alguns preferem chamar de exercício ilegítimo de posições jurídicas subjetivas[7]).

Embora a figura do abuso do direito não foi tratada de forma expressa no Código Civil de 1916, optou-se por classificá-lo como regime tradicional, tendo em vista o que a jurisprudência e a doutrina aplicavam mesmo antes da vigência do Código Civil de 2002.

Por isso, ainda que a matéria do art. 187 possa parecer inovação, é a consolidação do que já era aplicado na vigência do Código Civil de 1916.[8]

Porém, tais dispositivos foram incluídos no Código Civil de 2002 com outra roupagem, e isso não pode ser ignorado.

Assim, é necessário entender que os artigos 186 e 187, embora tragam modalidades de ilicitudes que já existiam na vigência do Código Civil anterior, na verdade, oferecem um novo sistema de ilicitudes, e isso pode ser visto em primeiro lugar pela desvinculação entre a idéia de culpa e ilicitude.

Essa desvinculação pode ser percebida com a inclusão do abuso do direito como um caso de ilicitude, tendo em vista que o artigo 187 não exige atos de emulação ou sequer culpa, como se verá a seguir.

Em segundo lugar, é necessário perceber que a orientação de que pode ocorrer o ato ilícito narrado no art. 187 sem a necessidade de dano, deixando a responsabilidade civil de ser encarada como única conseqüência do ato ilícito[9].

Exemplo disso são as decisões proferidas em nossos Tribunais que consagraram a necessidade da prova de dano em alguns casos de cancelamento de inscrições negativas antigas ou de ações inibitórias, para que o pedido de indenização pecuniária seja procedente. Caso não se vislumbre tal prova, a reparação se dá in natura, pela ordem de cancelamento do ato abusivo ou pela emissão de ordem sob pena da incidência de astreintes, sem que haja condenação a uma indenização com caráter pecuniário[10].

Estabelecidas essas premissas iniciais, passa-se ao exame do regime tradicional da ilicitude.

Ao se tratar da ilicitude, parte da doutrina[11] descreve como requisito da responsabilidade civil a expressão antijuridicidade e não ilicitude, pois, a ilicitude pode não gerar responsabilização civil e podem ocorrer situações em que a licitude impõe o dever de indenizar.

Poucos doutrinadores fazem isso, e em decorrência da associação estabelecida entre ilicitude e culpa acabam por não entender que o problema seria melhor resolvido se fosse usada a expressão antijuridicidade.

Para Noronha, a ilicitude deve ser entendida na acepção ampla (ilicitude objetiva) e restrita (ilicitude subjetiva). A acepção subjetiva que está no art. 186 do Código Civil depende da apreciação da culpa, tomando-se como exemplo o homicídio praticado por inimputável, que é apenas objetivamente ilícito, enquanto o homicídio praticado por imputável é subjetivamente ilícito[12].

Noronha defende que a responsabilidade civil pode ser objetiva ou subjetiva. Quando exige a prática de um ato ilícito (art. 186 e 927 caput), será subjetiva; quando baste um ato antijurídico (art. 927, parágrafo único) será objetiva. Para o autor, seria contraditório falar de ato ilícito gerador de responsabilidade objetiva[13].

Por isso deve se preferir o conceito de antijuridicidade por ser mais amplo que o de ilicitude.

A antijuridicidade ocorre quando um ato ou um fato ofende direitos alheios de modo contrário ao direito, independentemente de qualquer juízo de censura que porventura também possa estar presente e ser referido a alguém[14].

Mário Julio Almeida Costa defende que a antijuridicidade existe sempre que ocorre a infração de um dever jurídico[15]. Porém, é necessário perceber que nem todos os atos ofensivos a direito alheio são antijurídicos e nem todos os atos antijurídicos são ilícitos[16].

E isso pode ser explicado pelo fato de que existem causas de exclusão da ilicitude ou causas justificativas do ato danoso.

Como exemplos podem ser citados os atos praticados em legítima defesa ou em estado de necessidade. Se tais atos somente causarem danos ao próprio agressor do criador do estado de perigo, não haverá antijuridicidade. Mas, se causarem danos a outras pessoas, esses atos serão considerados antijurídicos.

Outro aspecto a ser ponderado na fixação da definição de antijuridicidade é que o ato pode ser antijurídico, mas não chegar a ser considerado ilícito, pois para ser antijurídico não precisa receber a caracterização de ilícito. Assim, ilicitude, antijuridicidade e ofensa de direitos alheios são realidades distintas[17].

Como exemplo de ato antijurídico, mas que não chega a ser ilícito pode ser citado o ato praticado por inimputáveis ou por pessoas em situação de inimputabilidade acidental. Se tomarmos novamente o homicídio como exemplo, fato sempre ofensivo ao direito alheio, se praticado por pessoa imputável, é passível de juízo de censura, será antijurídico e ilícito. Se for por pessoa inimputável, será antijurídico, reprovado pelo direito, mas não ilícito porque falta a culpa. Se a morte resulta de guerra, de execução da pena de morte ou de legítima defesa, não há sequer antijuridicidade[18].

O ato antijurídico pode ser um ato humano, culposo ou não, mas também pode ser um fato natural, que ofenda direitos de outrem de forma reprovada pelo ordenamento jurídico, dependendo do tipo de responsabilidade que se está enfrentando.

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Na responsabilidade subjetiva é necessário um ato humano culposo; na responsabilidade objetiva pode ser um ato humano ou fato da natureza independentemente de culpa.

Assim, verifica-se que a melhor terminologia, e também a que será adotada neste plano, é a de antijuridicidade que engloba tanto o ato ilícito ou não, isso se deve ao fato de que, por vezes, parte da doutrina associa a idéia de ilicitude à culpa e tal idéia tem que ser abandonada até mesmo pela redação do Código Civil de 2002, que contempla os casos de responsabilidade e considera ato ilícito tanto o decorrente de conduta culposa ou não.

Isso fica claro nas idéias de Judith Martins-Costa, que faz a distinção entre a ilicitude e culpa. Para ela, ilicitude significa contrariedade ao Direito e não apenas à lei que seria ilegalidade. Com a finalidade de corroborar seu pensamento, a autora cita Pontes de Miranda que fazia a distinção entre ilicitude e culpa. Sendo esta última um plus em relação ao suporte fático. Assim, haveria a expressão ilicitude em sentido lato (compreendendo fatos jurídicos, atos-fatos jurídicos e atos jurídicos que atentam contra o Direito) e em sentido estrito (restrita aos delitos dotados do elemento subjetivo culpa).[19]

Raciocínio diferente é usado por Cavalieri, que para não confundir a ilicitude com culpa prefere a distinção do ato ilícito em ato ilícito em sentido estrito (ilícito é o conjunto de pressupostos da responsabilidade, ou da obrigação de indenizar, responsabilidade subjetiva art. 186 – baseada na culpa) e amplo (ato ilícito indica a ilicitude do ato, conduta humana antijurídica contrária ao Direito, sem qualquer referência ao elemento subjetivo ou psicológico, responsabilidade objetiva – independente de culpa)[20].

O conceito estrito de ato ilícito, tendo a culpa como um de seus elementos, tornou-se insatisfatório, mesmo nos casos de responsabilidade subjetiva, e mais ainda nas de responsabilidade objetiva.

Hoje somente tem guarida o conceito de ato ilícito em sentido amplo (contrariedade entre a conduta e a ordem jurídica) tendo em vista a ampliação do campo da responsabilidade civil para a responsabilidade objetiva.

Também contribui para a distinção entre ilicitude e culpa Paulo de Tarso Sanseverino que refere que são conceitos autônomos e distintos, e para resolver o problema refere as idéias de Antunes Varela que distingue as duas figuras dizendo que mesmo que ambas se condicionem à sanção civil, a ilicitude deve ser considerada no aspecto geral e abstrato considerado pela norma legal e a culpa no momento subjetivo em que o julgado ainda apoiado na lei aprecia a reprovabilidade da conduta do agente (ou omitente) em face das circunstâncias concretas ao caso. Enquanto a ilicitude considera objetivamente a conduta do autor do fato em confronto com os valores tutelados pela ordem jurídica, a culpa atém-se ao elemento subjetivo, verificando-se maior ou menor censurabilidade da conduta[21].

O Código Civil vigente disciplina a responsabilidade subjetiva (art. 186) e objetiva também (art. 927, parágrafo único e 931) através de cláusulas gerais. Além disso, disciplinou outra modalidade de ato ilícito, o abuso de direito, que está no art. 187, que não tem a culpa como seu elemento integrante, mas os limites impostos pela boa-fé e finalidade econômica e social, valores ético-sociais consagrados pela norma em defesa da ordem pública e que não estão relacionados com culpa, mas com a funcionalização dos modelos jurídicos em relação aos fins determinados pelos valores que estruturam o sistema do Código.

Estabelecida esta distinção entre ilicitude e culpa, é necessário fazer-se a análise do ato ilícito subjetivo, ou culposo previsto no art. 186 do Código Civil de 2002.


A) A ilicitude pela violação de um direito

Embora o legislador de 2002 tenha repetido boa parte do art. 159 do Código Civil de 1916 no art. 186 do novo diploma, estabeleceu algumas distinções sutis que uma leitura mais atenta dos dispositivos conduz à percepção de que se está diante de outro modelo de ilicitude se comparado com o Código Civil revogado.

A primeira distinção diz respeito ao fato de que o Código Civil de 1916 dizia que seria obrigado a reparar o dano causado àquele que por ação ou omissão dolosa ou culposa violar direito OU causar prejuízo a outrem, o Código Civil de 2002 fala naquele que violar direito E causar dano a outrem.

Assim, no Código Civil vigente, para que haja ação humana ilícita, é necessário que haja violação de um direito. Assim, o ilícito passou a comportar dois elementos, a violação de um direito em contradição com o ordenamento (antijuridicidade) e a sua imputação ao agente a título de dolo ou culpa (culpabilidade)[22].

Eugênio Facchini Neto defende que o art. 186 do Código Civil além de ter repetido o art. 159 do Código Civil deixou claro através da substituição da conjunção ou por e, que a responsabilidade subjetiva é fundada na culpa, mas somente será incidente se causar dano a outrem. E isso deixa claro que a função da responsabilidade civil é de natureza reparatória, compensatória, não tendo efeito primordial a punição[23].

A redação dada pelo Código Civil brasileiro é parecida com o Código Civil italiano que prevê a cláusula geral da responsabilidade civil subjetiva como uma regra geral que está disciplinada no art. 2043 que dispõe que é fato ilícito todo fato doloso ou culposo que ocasiona a outro um dano injusto[24].

Mesmo que o Código Civil de 2002 tenha apresentado uma nova redação ao art. 186 ainda assim prestigiou a culpa como uma das suas cláusulas gerais e isso no sentido de que existe um vasto campo de aplicabilidade da responsabilidade subjetiva fundada na culpa.

Porém, não se pode esquecer que a tendência é de que ao lado dela se passe a acolher a responsabilidade independentemente de culpa, que se denomina objetiva sob a forma de responsabilidade pelo risco, como refere Mário Júlio Almeida Costa[25].

Em certa medida, isso é o que ocorre no sistema brasileiro que contém cláusulas gerais de responsabilidade objetiva também. Aliás, é o que se vê também na Itália com a redação do art. 2050, uma cláusula geral da responsabilidade objetiva.

Galgano adverte que, embora a responsabilidade tenha por princípio geral a ilicitude situada em um elemento subjetivo, esse princípio geral admite exceções, e as exceções são tantas que na prática a relação entre regra e exceções aparece de salto: é muito maior a área dos casos de responsabilidade objetiva que a da responsabilidade subjetiva. O princípio geral termina assim como um princípio residual destinado a regular somente as situações nas quais não vige uma das tantas regras de responsabilidade objetiva[26].

É interessante referir que na Itália existe norma parecida com a do art. 927, parágrafo único, que é o art. 2050 com será visto na segunda parte deste trabalho[27].

Embora muitos doutrinadores sejam defensores das cláusulas gerais, isso não é uma unanimidade, e a esse respeito Dieter Medicus apontou inconvenientes da cláusula geral que oferecer uma mera regulação para cada classe de danos causados ilícita e culposamente, que são: 1) com a cláusula geral a característica da antijuridicidade requer uma precisão. Não se pode partir da suposição de que todo dano seja antijurídico. 2) A cláusula geral delitiva leva também a dificuldades na determinação dos titulares da ação[28].

Os inconvenientes da cláusula geral são percebidos principalmente quando ela é mal aplicada, como se pode perceber através de uma pesquisa jurisprudencial a respeito das decisões proferidas depois da entrada em vigor do Código Civil de 2002.

Percebe-se que o artigo 931 ainda é pouco utilizado, e que em muitos casos nos quais caberia a aplicação do artigo insiste-se em aplicar o Código de Defesa do Consumidor, mesmo para relações civis e não de consumo.[29]

Outro equívoco comum é a aplicação do art. 927 em vez do art. 931 e também a utilização equivocada do art. 187 quando a disposição legal incidente é o art. 186 do Código Civil.


B) O abuso do direto ou o exercício ilegítimo das posições jurídicas

O artigo 187 do Código Civil regulamenta o ato ilícito com base na figura do abuso do direito. Existe divergência na doutrina a respeito da abrangência e aplicação do instituto sobre o qual trata o dispositivo: é caso de ato ilícito? A responsabilidade civil decorrente desse ato ilícito é objetiva ou subjetiva? O artigo trata de abuso de direito ou exercício ilegítimo de posições jurídicas?

Para responder a essas questões é necessário estudar a origem do instituto, sua aplicação no direito comparado e também qual foi o interesse do legislador de inserir no Código Civil o dispositivo correspondente ao abuso do direito.

A fonte mediata do art. 187 do Código Civil está nos anteprojetos do Código de Obrigações de 1941 (Hahnemann Guimarães) e de 1965 (Caio Mário). Esses anteprojetos possuíam dispositivos que tratavam da obrigação de reparar o dano proveniente de ato que excedesse, no exercício do direito, os limites do interesse protegido ou os decorrentes da boa-fé independentemente de qualquer intenção emulativa[30] - (talvez esses dispositivos inspiraram não só o legislador do Código Civil de 2002 mas também a jurisprudência na vigência do Código Civil revogado, que mesmo vacilante, considerava a existência de uso abusivo do direito, e em algumas decisões dispensava a caracterização de um requisito subjetivo, como se verá a seguir).

A fonte imediata do dispositivo está no art. 334 do Código Civil português[31].

A parte geral do Código Civil de 2002 foi escrita por José Carlos Moreira Alves que ao redigir o texto do projeto recebeu a influência do Código Civil português (isso se verifica não só pelo conteúdo de alguns dispositivos, mas também pela distribuição da matéria[32]) e dos anteprojetos anteriores principalmente o de Orlando Gomes no que diz respeito ao uso de cláusulas gerais e dispositivos que atendem à função social[33].

Embora o art. 334 do Código Civil português tenha inspirado a redação do Código Civil de 2002, Moreira Alves sempre preferiu tratar o abuso do direito como um ato ilícito, posição essa que não foi questionada por Clóvis do Couto e Silva que foi o revisor do projeto na parte geral[34].

No direito português existe um dispositivo que trata da matéria de forma muito parecida com o Código Civil brasileiro[35]. A redação do artigo é parecida, mas enquanto no Direito pátrio é tratado como um ato ilícito no Código Civil português aparece como exercício ilegítimo das posições jurídicas.

Para Mário Júlio de Almeida Costa, ocorre o abuso do direito quando um determinado direito, em si válido, for exercido ofendendo o sentimento de justiça dominante na comunidade social. Quando isso ocorre, impõem-se as sanções: tratar o titular do direito cujo exercício se mostra abusivo como se esse direito não existisse, ou condená-lo à indenização dos danos sofridos pelo prejudicado, mas mantendo-se o ato abusivo que os produziu. Esta última solução é mais coerente, porque na primeira os efeitos do abuso do direito equiparam-se aos de pura falta do direito[36].

O abuso do direito pode ser encarado tendo em vista as teorias objetiva e subjetiva.

Na teoria subjetiva é decisiva a atitude psicológica do titular do direito, de ter ele agido com o único propósito de prejudicar o lesado (ato emulativo). Centra-se no problema da intenção do agente. Para a teoria objetiva o que interessa não é a intenção do agente, mas os dados de fato, o alcance objetivo do seu comportamento, de acordo com o critério da consciência pública.

É considerado como abusivo o uso antifuncional do direito. Isso se verifica quando existe um contraste nítido entre a finalidade própria do direito em causa e a sua atuação na hipótese concreta[37].

A posição objetiva é defendida por Judith Martins-Costa para quem a expressão abuso do direito representa o exercício jurídico inadmissível ou disfuncional, sendo no Direito brasileiro uma forma de ilicitude civil, objetiva[38].

Essa marca de objetividade nem sempre foi unânime no direito brasileiro. Os casos enfrentados pela jurisprudência nos quais se utilizava o abuso do direito como uma configuração de ato ilícito apareciam, em sua maioria, fundados no abuso subjetivo. Foi somente no final do século XX que o Direito brasileiro passou a consolidar uma forma de objetivação de abuso do direito e isso se deve em parte pelo sistema de “descodificação civil anterior” ao Código Civil de 2002 (criação de microssistemas como o Código de Defesa do Consumidor que repelia a abusividade contratual ou o desequilíbrio, etc.) e pela atribuição de competência jurisdicional ao Superior Tribunal de Justiça para o controle das decisões dos Tribunais da Federação e aplicação da Lei Civil. Tal mostra de objetivação pode ser percebida pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no caso de abuso da personalidade[39].

E existem ainda as fórmulas intermediárias – combinação do critério subjetivo com o objetivo (posição sustentada por Manuel de Andrade – se deve considerar abusivo o exercício de um direito sempre que a conduta do titular se revele gravemente chocante e reprovável para o sentimento ético-jurídico prevalecente na coletividade. Esta reação da consciência pública tanto pode ter na sua base fatores subjetivos como objetivos ou fatores de uma e outra ordem) [40].

Noronha sintetiza essas noções referindo que existem duas concepções a respeito do abuso do direito, a subjetiva (abuso do direito se verifica quando uma pessoa age com propósito de prejudicar outrem) e a objetiva – finalista, teleológica ou social – (basta que o ato seja considerado abusivo, que a pessoa se proponha a realizar objetivos diversos daqueles para os quais o direito subjetivo foi preordenado e por isso sem correspondência com a função ou finalidade do direito). É nessa orientação que se pode falar em abuso das posições jurídicas[41].

O legislador português aceitou a concepção objetiva do abuso do direito, assim não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu ato à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social ou econômico do direito exercido, basta que o ato se mostre contrário ao direito. Mas esse abuso deve ser nítido, o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício[42].

Para Mário Júlio Almeida Costa, o legislador português não indica quais são as conseqüências do abuso do direito, por isso o autor entende que cabe ao juiz não somente a tarefa de considerar o ato como abusivo, mas também a de definir quais vão ser as conseqüências do ato[43].

Vislumbra-se, assim, que, além de a norma ser genérica, o legislador português cuidou também de não estabelecer uma sanção específica para o caso de reconhecimento de abuso. Essa sanção vai depender de como o abuso se expressa, pode ser a decretação da nulidade de um ato, imputação da responsabilidade civil, ou da desconsideração de um fato[44].

Além de a matéria ser tratada no Direito Português, o abuso do direito é admitido de forma expressa no BGB, §§ 226, 242 e 826; no Código Civil Suíço art. 2º, alínea 2; no Código das Obrigações Polaco, art. 135; no projeto Franco-Italliano de Código das Obrigações e dos Contratos, art. 74, alínea 2; no anteprojeto da comissão de reforma do Código Civil francês, 1ª parte, art. 147 e no Código Civil grego art. 281[45. ]

No direito alemão o abuso do direito foi acolhido no § 226 que refere que o exercício do direito é inadmissível se tiver como único escopo provocar danos a outrem. O artigo estava associado à idéia de responsabilidade subjetiva no sentido do ânimo do dano – emulatio. Porém a jurisprudência alemã ultrapassou essa concepção recorrendo ao § 826que equipara o abuso de direito aos atos ilícitos ao determinar que quem cause a outrem dano de forma que atente contra os bons costumes fica obrigado a indenizar, e o § 242 que traz o dever de agir de acordo com a boa-fé também foi importante para a evolução da teoria do abuso do direito que foi incluído com uma concepção subjetiva, mas foi ultrapassada pela jurisprudência com o apoio da doutrina principalmente com o uso do § 242 que é o limite mais importante do exercício lícito de um direito[46].

No Direito brasileiro a figura do abuso do direito era aplicada na vigência do Código Civil de 1916 de forma indireta com apoio no art. 160, I, 2ª parte, que dizia “não constituem ato ilícito os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”.

Segundo Noronha o abuso do direito é instituto que se consolidou contra um entendimento tradicional sintetizado no brocardo de quem faz uso de seu direito não lesa ninguém[47].

Porém, é necessário salientar que o art. 187 disciplinou a figura do exercício inadmissível de posições jurídicas que não é reprodução do art. 160, I, do Código Civil de 1916, pois na legislação revogada o dispositivo limitava-se a operar com a noção de direito subjetivo[48].

Ao intérprete é preciso perceber que o Código Civil vigente inova, pois rompe com o modelo vinculado de ilicitude e culpa, que vigorava no Código Civil de 1916. Além disso, estabelece uma nova estrutura ao ato ilícito demonstrando que ilicitude e obrigação de indenizar são situações autônomas, ou seja: o legislador de 2002 não confunde ou condiciona ilicitude à responsabilidade civil[49].

O art. 187 do Código Civil de 2002 está desvinculado da existência de dano. Assim, além da reparação civil, pode ser objeto de tutela pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Civil[50] podendo determinar entre outras sanções a cominação de nulidade, ineficácia ou outras sanções que se aplicam de modo concomitante à sanção civil, de caráter penal ou administrativo[51].

Além disso, ainda que o abuso do direito tratado no art. 187 prescinda de culpa, é possível considerar a sua apreciação na definição do valor da indenização no caso de responsabilidade civil[52].

A legislação atual (art. 944 e parágrafo único) considera relevante a apreciação do comportamento do ofensor no processo de fixação de indenização. A regra é a de que a indenização mede-se pela extensão do dano, mas é possível reduzir o valor da indenização nos casos em que o indivíduo agiu com culpa leve ou levíssima, e o dano é excessivo. Levando em conta que o legislador se importa com o comportamento do ofensor, a lógica conduz ao raciocínio de que, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, que independem de culpa, a avaliação do comportamento do ofensor deverá preceder a fixação da indenização.

Segundo Noronha, o abuso do direito está ligado ao princípio da boa-fé (dever de agir de acordo com determinados padrões mínimos, socialmente reconhecidos de lisura e lealdade), à idéia de que é uma ação que deve exceder manifestamente os poderes contidos em determinado direito. E para explicar isso o autor entende que o abuso do direito deve ser encarado de acordo com as posições objetivas, embora o ato abusivo não seja necessariamente ilícito subjetivamente, é uma atuação antijurídica; abusa de seu direito quem faz dele uso desconforme, seja com a finalidade de causar inutilmente dano a outrem, ou seja, para alcançar outros objetivos não tutelados pela norma atributiva ou reguladora do Direito. Assim não precisa o lesado provar que o lesante agiu com o propósito de prejudicá-lo, basta que faça prova do uso desconforme[53].

Essa posição também é enfatizada por Judith Martins-Costa que dentre as funções da boa-fé objetiva a que mais se encaixa no exame do abuso do direito é de que serve de “baliza para a averiguação da ilicitude no modo de exercício de direitos, vedando, por exemplo, o comportamento contraditório ou desleal”.[54]

A boa-fé passa a garantir as legítimas expectativas de uma ação orientada pela probidade e correção no tráfego jurídico. Assim, a eficácia ligada à boa-fé poderá ser indenizatória, invalidante, paralisante, ou dissuasória[55].

O critério para caracterizar o abuso do direito é o da manifesta desproporção entre o interesse a que o agente visa realizar e aquele da pessoa afetada, entre as vantagens do titular do direito e os sacrifícios suportados pela outra parte. Se todos os direitos têm finalidade social, não é possível tutelar pretensão que represente sacrifício manifestamente desproporcional dos interesses de outrem.

Esse critério da desproporção tem sido utilizado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nas decisões que reconhecem o abuso do direito como um ato ilícito[56].

Por fim, é necessário cautela com a interpretação de Humberto Theodoro Júnior a respeito da matéria para quem a responsabilidade decorrente do art. 187 é subjetiva fundada na culpa e a responsabilidade do art. 1228, § 2º, é subjetiva fundada no dolo,[57] a qual estaria adequada ao modelo de responsabilidade que era vigente no sistema do Código de 1916, mas completamente contraditório com os princípios e com as diretrizes do ordenamento vigente.

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Sobre a autora
Tula Wesendonck

Advogada em Porto Alegre (RS). Professora Universitária no UNIRITTER e na ULBRA. Mestre em Direitos Fundamentais e Doutoranda em Direito na PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WESENDONCK, Tula. Transformações no sistema de ilicitudes no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3065, 22 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20476. Acesso em: 25 dez. 2024.

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