CONCLUSÃO
Originalmente pensado com o objetivo de mitigar o formalismo legislativo, atenuando imprecisões do sistema e evitando que as partes viessem a ser prejudicadas pela interposição de recursos considerados impróprios pelos aplicadores do direito, naquelas tantas hipóteses duvidosas, o princípio da fungibilidade recursal encontrou em sua concretização um obstáculo quase intransponível.
Superada a polêmica de sua existência na ordem jurídica, apesar de não positivada, grande parte da doutrina e da jurisprudência acabou por definir contornos excessivamente rígidos, que acabam por inviabilizar a consecução do seu objetivo.
Entendemos que é de central importância a seguinte ponderação, de modo a delimitar o conteúdo do referido princípio: de um lado, princípio da unicidade recursal, bem como o respeito à lógica dos recursos; de outro, os princípios da instrumentalidade das formas e economia processual. Deve prevalecer, pois, uma interpretação sistemática e teleológica dos institutos propostos.
Diante dessa consideração, concordamos que a previsão de dúvida objetiva quando da interposição do recurso é um requisito necessário decorrente da indicada ponderação. Ora, a finalidade de sua previsão, como já dito, é impedir que a parte seja prejudicada em virtude de imprecisões do sistema que ocasionem dúvidas intransponíveis. Não é, pois, um artifício de proteção de erros individuais. Por essa razão, em respeito à minuciosa organização instituída, não pode sua aplicação ser irrestrita e imoderada, como já nos atentou o excelentíssimo Ministro-relator Eros Grau, no já mencionado MS 23605 AgR-ED/MG, 2005.
Como deve ter restado claro, afirmamos que o requisito da inexistência de erro grosseiro é decorrência implícita e lógica da existência de dúvida objetiva, razão que nos leva a crer que seja dispensável.
Resta, por fim, a questão da tempestividade associada à má-fé. Como já discorremos, a ilusória e ilógica associação intentada não pode prosperar, sob pena de se estar aplicando "meia fungibilidade" [23]. A mesma indignação é compartilhada, entre tantos outros, por Flávio Cheim Jorge:
"Esta situação, na verdade, apresenta-se, inclusive, como um contrassenso: o recorrente, por exemplo, está convencido de que o recurso de apelação é o correto e de que o de agravo é o errado, mas, terá que interpor o recurso no prazo desse último, que para ele é o errado" [24].
Ante o exposto, propomos uma abordagem alternativa que, a nosso ver, compatibiliza devidamente os princípios em conflito. A aplicação da fungibilidade recursal deve se dar exclusivamente em função de um único requisito: existência de dúvida objetiva. Uma vez evidenciada divergência atual e consistente entre doutrinadores e aplicadores do direito, o benefício da fungibilidade não pode ser negado, sob pena de tornar-se letra morta.
Dessa forma, privilegia-se a substância em detrimento da forma, concretizando o objetivo para o qual fora instituído, e dá-se verdadeira consideração ao princípio da economia processual. Em consequência, excepciona-se, diante da situação de imperfeição inerente à atividade humana, o rigor formal dos institutos recursais, bem como a unirecorribilidade.
Nessa configuração, temos que o processo efetivamente poderá atingir seu escopo maior, hoje pouco considerado pelos Tribunais: a pacificação social.
Concluímos com uma última e exemplificativa citação de Flávio Cheim Jorge, na qual o autor expressa de maneira irretocável a ponderação finalística necessária para a aplicação da fungibilidade, por nós tão enfatizada:
"Se o princípio da fungibilidade existe justamente para que a parte não seja prejudicada pela dúvida existente e criada pelo próprio sistema, não há razão para mutilá-lo" [25]
BIBLIOGRAFIA
LIVROS UTILIZADOS:
AMENDOEIRA JUNIOR; Sidnei. Fungibilidade de Meios. São Paulo: Atlas, 2008.
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil; vol. VII. São Paulo: Cia dos Livros, 2005.
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
ORIONE NETO, Luiz. Recursos cíveis: teoria geral, princípios fundamentais, dos recursos em espécie, tutela de urgência no âmbito recursal, da ordem dos processos no tribunal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves Comentários À Nova Sistemática Processual Civil, Vol. 3. São Paulo: RT, 2007.
SITES CONSULTADOS:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=m%E1f%E9+fungibilidade&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=137 http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=fungibilidade+recursal&base=baseAcordaos
Notas
- NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 140.
- Nesse sentido: ART. 513, 522, 530, 535 do CPC.
- AMENDOEIRA JUNIOR; Sidnei. Fungibilidade de Meios. São Paulo: Atlas, 2008 - p. 101.
- Por um corte metodológico, optamos pelas decisões dos órgãos de sobreposição: STJ e STF.
- NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 170.
- ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
- Art. 846. Salvo os casos expressos de agravo de instrumento, admitir-se-á agravo de petição, que se processará nos próprios autos, das decisões que impliquem a terminação do processo principal, sem lhe resolverem o mérito.
- Indiquemos, p.ex., na legislação civil de 1916: ART. 513, 515, 517 - todos disciplinando benfeitorias, em que se percebe o tratamento sancionatório dado ao agente de má-fé; ART. 618 - não admite usucapião de bens móveis quando há má-fé).
- JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
- MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil; vol. VII. São Paulo: Cia dos Livros, 2005.
- Teresa Arruda Alvim Wambier; Nelson Nery Junior; Bernardo Pimentel Souza; Luís Eduardo Simardi Fernandes.
- Vide: AMENDOEIRA JUNIOR; Sidnei. Fungibilidade de Meios. São Paulo: Atlas, 2008 - p. 126.
- Nesse sentido: AgRg no AgRg 1364118; rel. Min. Mauro Campbell Marques (2011) - "Não incide o princípio da fungibilidade em caso de ausência de qualquer dos requisitos a que se subordina, quais sejam: dúvida objetiva; inexistência de erro grosseiro; recurso inadequado tenha sido interposto no prazo daquele do que deveria ter sido apresentado"; RCDESP nos Erg 1193220; rel. Min. Mauro Campbell Marques (2010) - "A aplicação do princípio da fungibilidade recursal exige que a petição ajuizada atenda aos requisitos mínimos adequados, seja apresentada tempestivamente e não decorra de erro grosseiro ou má-fé".
- JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
- REsp 898115/PE; rel. Min. Teori Albino Zavascki (2007): "...o próprio juiz de Primeiro Grau o induziu a erro, no que consignou que: a irresignação dos autores traz ínsito o escopo de reforma do decisório, vertendo-se, pois, contra os próprios argumentos de direito abraçados em sua fundamentação, insurgência que não cabe na estreita via declaratório, havendo de conformar-se ao recurso cabível, precisamente o de agravo de instrumento. A indução à interposição de recurso equivocado pelo órgão recorrido afasta a suspeita de má-fé e o erro grosseiro, permitindo a aplicação do princípio da fungibilidade.
- In verbis: "INAPLICAVEL AO CASO O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE DOS RECURSOS, O QUAL, EMBORA SUBSISTENTE EM NOSSO SISTEMA PROCESSUAL (RTJ-120/548), NÃO ATUA E NEM INCIDE NA HIPÓTESE DE ERRO GROSSEIRO, QUE SE CONFIGURA PELA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO IMPERTINENTE EM LUGAR DAQUELE EXPRESSAMENTE PREVISTO EM NORMA JURÍDICA PROPRIA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINA."; AI 133262/SP – rel. Min. Celso de Mello.
- Nesse sentido, ver: AgRg no Ag 41684/SP - rel. Min. Pedro Acioli (1993); AI 133262/SP - rel. Min. Celso de Mello (1990); AI 419175; REsp 1273068/ES - rel. Min. Castro Meira (2011), AI 648344 ED-AgR/RJ - rel. Min. Ricardo Lewandowski (2008), AI 419175 AgR/PI - rel. Min. Cezar Peluso (2004)
- ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
- NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
- É o caso, p.ex., do AgRg no REsp 685322/SP – relª. Minª. Nancy Andrighi, 2004. Nessa ocasião, o Tribunal aplicou multa por litigância de má-fé por reconhecer que a atitude recursal da parte tinha cunho protelatório.
- WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves Comentários À Nova Sistemática Processual Civil, Vol. 3. São Paulo: RT, 2007.
- NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004 – p. 140.
- AMENDOEIRA JUNIOR; Sidnei. Fungibilidade de Meios. São Paulo: Atlas, 2008 - p. 127.
- JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 – p. 264.
- AMENDOEIRA JUNIOR; Sidnei. Fungibilidade de Meios. São Paulo: Atlas, 2008 – p. 130.
Outro caso exemplificativo: REsp 1104451; relª. Minª. Nancy Andrighi - "Induzir a interposição de recurso equivocado pelo próprio órgão recorrido afasta a suspeita de má-fé e erro grosseiro, permitindo a aplicação do princípio da fungibilidade recursal"