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Princípio da fungibilidade recursal

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09/12/2011 às 15:53
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Ainda há espaço para dúvida objetiva que justifique a sobrevivência da fungibilidade recursal, diante de um sistema recursal baseado na correlação e unicidade? Se sim, em que termos?

"De qualquer sorte, é preciso que se estabeleçam mecanismos capazes de contornar esse grave problema (dúvidas a respeito da adequação recursal), de modo que a parte não fique prejudicada em virtude da interposição de um recurso por isso não lhe couber. Este é o escopo primeiro do princípio da fungibilidade" [01].

INTRODUÇÃO

O denominado "recurso" no direito pátrio é gênero de diversas espécies de atos de inconformismo da parte para com as decisões judiciais. Objetivam, como um todo, uma nova apreciação da demanda, dentro da mesma relação jurídica processual originalmente instaurada, possibilitando modificar uma decisão divergente do entendimento expresso pela (s) parte (s) recorrente (s).

No intuito de proporcionar uma estrutura jurídico-formal apta a lidar com a finalidade ora indicada, pressupõe o Código de Processo Civil alguns princípios inerentes aos recursos (gênero). Dentre eles, um em especial será objeto do presente artigo: a fungibilidade recursal. A relevância do tema se dá pelo fato de o novo CPC não ter repetido o art. 810 do diploma anterior, o qual consagrava o referido princípio. Daí divergirem a doutrina e a jurisprudência acerca de sua aplicabilidade no sistema atual.

Dado o caráter sistemático da interpretação normativa, temos que uma análise pontual do tema não poderia dispensar menção a outros dois princípios recursais: princípio da unirecorribilidade e correlação. Em linhas gerais, a conjugação de ambos leva ao entendimento de que para cada provimento existe um, e exclusivamente um, recurso cabível por vez, o qual será indicado pela legislação em vigor (em especial, CPC/73e CF/88).

Essa breve menção se faz importante no seguinte sentido: considerando que o CPC em vigor avançou em estabelecer um único recurso cabível para cada situação [02], qual a razão de se aplicar um princípio que admite o recebimento de um recurso por outro? [03] Em outras palavras, ainda há espaço para dúvida objetiva que justifique a sobrevivência da fungibilidade recursal, diante de um sistema recursal baseado na correlação e unicidade? Se sim, em que termos?

Este será nosso trabalho daqui em diante, a ser tratado em TRÊS blocos. Na primeira parte, ilustraremos brevemente como o CPC/39 abordava o tema - isto é, por que se instituiu este dispositivo e em que condições ele era aplicado. Na segunda, passamos à disciplina atual (CPC/73), ocasião em que discutiremos efetivamente sua admissibilidade, bem como seus requisitos geralmente exigidos de aplicação. Nessa ocasião, traremos o posicionamento da jurisprudência [04] atual acerca de temas polêmicos envolvendo a aplicação do princípio - especialmente quanto aos requisitos de admissibilidade. Por fim, uma conclusão se seguirá indicando nosso posicionamento a respeito da utilização do princípio.


DISCIPLINA NO CPC/39

1.Conceito e finalidade

Fungibilidade recursal como bem expressa Nelson Nery Jr [05], significa troca/substituição de um recurso (aquele entendido como cabível pela parte em face do caso concreto) por aquele considerado adequado pelo órgão julgador. Trata-se de uma salvaguarda para a parte, no sentido que esta não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, salvo na hipótese de má-fé ou erro grosseiro (art. 810, CPC/39). Isso porque, no então vigente Código, havia uma verdadeira promiscuidade em matéria de recursos [06], fato este que levou o legislador à compreensão de que as partes não poderiam ser prejudicadas pelas imprecisões normativas ou divergências doutrinárias/jurisprudenciais a respeito do recurso cabível.

Exemplificamos: no sistema anterior, a interposição de recurso dependia essencialmente do teor da decisão proferida, isto é, se de mérito, terminativa, definitiva, interlocutória. Não havia, como no sistema atual, correlação precisa de que em face de determinada decisão caberia um específico recurso (como há no sistema atual, p.ex.: art. 522: "Das decisões interlocutórias caberá agravo..."). Nesse sentido, para ilustrar hipótese duvidosa então presente, indagamos: pela interpretação do art. 836 (CPC/1939), qual a natureza da sentença fundada em prescrição? [07] Dependendo da resposta, poder-se-ia concluir pela interposição de agravo de petição ou de apelação.

Elogiável foi a postura do legislador em face do eminente problema, dando prevalência à substância em detrimento da forma ao exigir que ambos os recursos sejam devidamente apreciados pelo juízo competente. Trata-se, em princípio, de importante concretização do princípio da economia processual e da instrumentalidade das formas.

A adoção dessa regra ilustra a influência histórica portuguesa e alemã nas codificações brasileiras. Isso porque a preocupação agora enfrentada já havia sido ponderada nesses países, onde surgiu o que se denominou "teoria do recurso indiferente" ou "princípio do maior favor".

Como veremos a seguir, no entanto, sua aplicação fora restringida em duas situações.

2.Requisitos

Ao ter expressamente reconhecido a fungibilidade recursal, o legislador excepcionou sua aplicação em duas hipóteses. São elas: i) erro grosseiro; ii) má-fé.

In verbis:

Art. 810. Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento.

Justificam-se as exceções por duas razões.

Quanto ao erro grosseiro, em primeiro lugar, temia o legislador que, em razão da previsão legal de fungibilidade, fosse desvirtuada toda a lógica dos institutos processuais, fato este que ocasionaria verdadeiro caos no sistema judiciário brasileiro. A almejada proteção conferida à parte não poderia se dar a qualquer custo: a coerência e funcionalidade do sistema exigiam que sua aplicação fosse moderada, restrita àqueles casos objetivamente duvidosos.

Uma segunda razão diz respeito ao intuito de não se premiar aquele que, por despreparo intelectual, utilizou-se indevidamente do sistema recursal. Ora, não deve o direito aceitar sua má-utilização pelos operadores, sob pena de tornar-se mera faculdade aos litigantes.

Reiteramos: trata-se de uma exceção, não de uma regra, decorrente daqueles casos em que o direito deixou a desejar quando disciplinou o tipo recursal. Como exceção que é, pois, não pode abarcar inseguranças subjetivas dos profissionais e equívocos na interposição de recursos expressamente previstos na legislação ou com entendimento consolidado pelos tribunais.

A má-fé, por sua vez, justifica-se pelo sentido ordinário de justiça: não é justo que a parte que manejasse intencionalmente o recurso equivocado tivesse seus interesses protegidos, sob pena de beneficiar quem conscientemente desobedece a lei. É de longa data a rejeição do direito em face de condutas de má-fé pelos seus agentes, premissa esta que pode ser observada em fartos momentos no decorrer das legislações em vigor [08]. É intuitivo compreender que o direito não deve beneficiar aquele que o ignora.

3.REQUISITOS:

Expostas as razões, passemos brevemente à análise dos requisitos:

a)Erro grosseiro

Configura erro grosseiro a interposição de um recurso diverso daquele expressamente previsto em lei. Dessa forma, se a lei indica inequivocamente que de sentença caberá apelação, considera-se erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento, p.ex.

É um critério razoavelmente objetivo, embora casuístico. Tratou a jurisprudência e a doutrina de darem os contornos necessários ao tema. Indicaremos, na seção seguinte, como ambas elaboraram sua concepção.

b)Má-fé

A má-fé diz respeito ao estado de íntima convicção da parte de estar agindo de maneira contrária ao direito: ou seja, interpor recurso impróprio tendo plena ciência de seu feito, com intenção de prejudicar o andamento do processo.

Trata-se de elemento absolutamente subjetivo e de difícil averiguação. Em razão dessa complexidade inerente ao conceito, buscou-se estabelecer algumas circunstâncias indicadoras de má-fé. A hipótese que mais logrou êxito foi a do prazo recursal: havia presunção de má-fé por parte do recorrente que, uma vez em dúvida sobre o recurso adequado, lançasse mão daquele de maior prazo.

Sem analisar por hora o mérito dessa escolha, indicaremos, na seção seguinte, a abordagem jurisprudencial quanto ao prazo de interposição recursal.


DISCIPLINA NO CPC/73

O sistema processual atual, por sua vez, não trouxe dispositivo expresso admitindo a aplicação da fungibilidade recursal. Isso porque, conforme afirmou Buzaid na Exposição de Motivos do Código, sua existência era absolutamente dispensável em face da correlação minuciosamente estabelecida para a escolha do recurso cabível, eliminando a possibilidade de dúvidas.

Nesse sentido, esclarece Nelson Nery Jr a lógica então instituída:

"Se da sentença cabe apelação, se da decisão interlocutória cabe agravo, se os despachos são irrecorríveis, não haveria motivo suficiente para prever a existência desse princípio, pois, o recorrente não teria qualquer dúvida quanto ao cabimento do recurso correto para aquela decisão impugnada" [09].

De fato, o notório avanço em simplicidade levou, principalmente no início da vigência do Novo Código, boa parte da doutrina a admitir que o princípio fora revogado. Assim entendeu Pontes de Miranda e Arruda Alvim, p.ex.

"O CPC/73 eliminou a regra jurídica que se concebera em 1939. dela não precisava mais porque a redução do número de recursos simplificou o problema. Não há mais dúvida quanto ao cabimento de recurso, como poderia ocorrer sob o Código de 1939 e o direito anterior". [10]

Destarte essa aparente e teórica perfeição em operar os recursos, a prática forense mostrou que ainda assim havia casos em que doutrina e jurisprudência debatiam arduamente sobre qual recurso seria adequado.

Exemplos são pródigos: atos que rejeitam liminarmente a reconvenção (art. 325: cabe agravo de instrumento ou apelação?); provimento que exclui remove inventariante (art. 997: cabe agravo de instrumento ou apelação?); decisão que exclui herdeiro do processo de inventário (agravo de instrumento ou apelação?); ato que decide o pedido de remição de bens na execução (art. 790 utiliza indevidamente "sentença" para caracterizá-lo, embora seja decisão interlocutória); ato que julga o incidente de falsidade documental (art. 395 afirma, erroneamente, tratar-se de sentença). Todas essas hipóteses não são respondidas pela simples correlação característica do CPC, gerando divergência entre os profissionais do direito.

A polêmica quanto à aplicabilidade do instituto durou até o início dos anos 80, quando o STF firmou o entendimento de que o princípio subsistia no sistema processual de maneira implícita (decorrente da natureza instrumental das leis processuais), a despeito de não haver sido reproduzido. No entanto, sua aplicação só poderia ser aceita em casos de fundada dúvida. Esta ideia está consolidada em dois recursos extraordinários: RE 92.314; rel. Min. Thompson Flores (1980) e RE 99.334; rel. Min. Francisco Rezek (1893).

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Resolvido o primeiro problema (a saber, o princípio ainda existe?), a polêmica deslocou-se para a seguinte questão: em quais situações se admitia a troca? Permanecem os requisitos do CPC/39? A tarefa de responder essas questões foi incumbida à doutrina e jurisprudência, que passaram a se dedicar para teorizar o tema.

Longe estão a doutrina e a jurisprudência de chegarem a um consenso. Parte notória [11] da doutrina entende que o único pressuposto de sua aplicação é a dúvida objetivo, dispensada investigação de outros critérios (em especial, a tão polêmica "má-fé"). Outra parte respeitável defende sua aplicação ampla, objetivando a mitigação do formalismo em nome da instrumentalidade das formas e economia processual [12]. A jurisprudência majoritária do STJ, por sua vez, entende como pressupostos a existência de dúvida objetiva, a ausência de erro grosseiro e a interposição tempestiva [13].

1.Requisitos:

Por uma escolha didática (expor o mais restritivo) e hierárquica, optamos por ilustrar os requisitos reconhecidos pelo STJ atualmente, embora discordemos de seu conteúdo:

a)Existência de dúvida objetiva

Defendem que, diante de uma sistemática simples em que a dúvida é excepcional, faz-se míster que exista dúvida suficientemente generalizada na doutrina ou na jurisprudência a respeito do recurso próprio, não bastando a insegurança pessoal do profissional do direito. Isso quer dizer que a dúvida deve ser oriunda do próprio sistema recursal, não do despreparo intelectual dos operadores.

Ainda, exigem que a problemática seja atual, não podendo aproveitar questões já pacificadas que no passado eram controvertidas - nesse sentido, cabe o exemplo do ato que exclui litisconsorte do processo: no passado, o recurso próprio foi amplamente debatido, sem haver consenso entre os aplicadores. Recentemente, no entanto, pacificou o STJ (órgão incumbido de uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil) o entendimento de que o recurso cabível é nitidamente o agravo de instrumento, constituindo erro grosseiro interpor apelação (REsp 184.829; rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (1998)). Outro exemplo de polêmica ultrapassada diz respeito ao recurso próprio contra decisão que homologa conta no processo de execução - STJ já editou até Súmula sobre o tema, n. 118, afirmando que somente é cabível agravo de instrumento.

Como se pode observar nos exemplos polêmicos ilustrados no tópico anterior, a referida "dúvida" se deu em duas ordens diversas: nas primeiras três hipóteses, tratamos de divergência de classificação de determinados atos judiciais pelos aplicadores e profissionais do direito; nas duas últimas, abordamos a problemática de designação incorreta por parte do CPC.

Na primeira acepção do termo, destacamos o seguinte julgado reconhecendo a objetividade da polêmica quanto ao recurso próprio e, consequentemente, a aplicação da fungibilidade: AgRg no REsp 1027139 - PA; rel. Min. Sidnei Benetti (2008): dúvida objetiva quanto ao recurso a ser interposto em caso de decisão que julgar procedente os embargos à execução reconhecendo o excesso de execução (art. 475-M, CPC).

Quanto à segunda hipótese, de fato incorreu o Código de Processo Civil em algumas impropriedades técnicas. Nelson Nery [14] nos indica exemplos pontuais: a) ato que julga o incidente de falsidade documental, referido no art. 395 (CPC) como "sentença", destarte a nítida natureza de decisão interlocutória; b) ato que aprecia o pedido de liminar em ação possessória referido impropriamente como "despacho", nos termos do art. 930, parágrafo único, apesar de tratar-se inequivocamente de decisão interlocutória. Nesses casos, resta claro que a parte não pode ser prejudicada pela má confusão conceitual instituída na legislação processual, razão que justifica o reconhecimento da fungibilidade.

Há ainda uma terceira ordem de dúvida que merece atenção: aquelas oriundas de pronunciamentos incorretos por parte do magistrado (ou seja, quando um ato falho do aplicador induz a parte a interpor recurso impróprio). Embora raras, existem ocasiões nesse sentido - paradigmático para exemplificar essa questão é o REsp 898115/PE; rel. Min. Teori Albino Zavascki (2007), reconhecendo o Tribunal a aplicação da fungibilidade quando o erro fora induzido pelo magistrado [15].

Em nosso entender, o sentido da palavra "dúvida objetiva" deve ser o mais amplo possível, abrangendo as três situações descritas e quaisquer outras que possam surgir, desde que presente o óbvio requisito da objetividade.

B)Ausência de erro grosseiro

Conceitualmente, o requisito pouco se modificou da disciplina exposta na legislação anterior. Naquela oportunidade, o art. 810 exigiu a ausência de erro grosseiro para aplicação da fungibilidade, entendimento que perdura nos Tribunais e em boa parte da doutrina.

A preocupação da doutrina e da jurisprudência permaneceu intacta: a possibilidade de a exceção (fungibilidade) tornar-se regra, subvertendo-se a ordem do sistema processual. Nesse sentido, indicamos um trecho paradigmático do MS 23605 AgR-ED/MG - rel. Min. Eros Grau (2005) que se coaduna com o argumento ora em exposição: "O princípio da fungibilidade recursal deve ser aplicado com parcimônia, sob pena de comprometer-se o sistema recursal previsto no Código de Processo Civil, principalmente quando há erro grosseiro na escolha do recurso cabível."

Como considerar "ausente erro grosseiro" requer análise eminentemente casuística, algumas referências da jurisprudência podem auxiliar na compreensão desse conceito.

O AI 133262/SP – rel. Min. Celso de Mello (1990) é patente em afirmar que o princípio não incide na hipótese de interposição de recurso impertinente em lugar daquele expressamente previsto em norma jurídica própria [16], na acepção mais ampla da palavra (isto é: CF/88; CPC; Regimentos Internos dos Tribunais). No mesmo sentido, o AI 134518 AgR/SP - rel. Min. Ilmar Galvão (1993).

Exemplificamos. São considerados erros grosseiros, nessa abordagem: a) de agravar-se por instrumento da sentença que indeferir a petição inicial - art. 292 expressa textualmente que o recurso cabível é a apelação; b) interpor apelação contra decisão interlocutória que julgar a exceção de incompetência - art. 522 indica inequivocamente que o recurso adequado é o agravo.

Uma segunda situação, recorrente nos tribunais de sobreposição, indica que qualquer utilização imprópria de recursos extraordinários em sentido amplo (isto é, REsp e RE) é entendida como erro grosseiro, uma vez que os dispositivos constitucionais (art. 103, III e 105, III) indicam taxativamente suas hipóteses de cabimento [17].

Uma terceira forma de identificar erro grosseiro é a consolidação interpretativa da jurisprudência a cerca do recurso próprio para determinados atos.

A hipótese mais recorrente de equívoco, no STJ, é a interposição de agravo regimental, em detrimento de embargos de declaração, contra decisão colegiada - AgRg no RMS 22473 - rel. Min. Felix Fischer, 2007; AgRg 1107991/RS - rel. Min. Adilson Vieira Macabu; AgRg no REsp 685322/SP – relª. Minª. Nancy Andrighi. Em todas as oportunidades, o tribunal consolidou seu entendimento de que o deslize configura erro grosseiro, inadmitindo aplicação da fungibilidade recursal. No último julgado, inclusive, o Egrégio Tribunal aplicou multa por litigância de má-fé à parte que manuseou indevidamente do recurso, com fundamento de intenção protelatória (art. 17, VII, CPC). Outras hipóteses podem ser indicadas no âmbito do STJ. Interpor: i) apelação em lugar de recurso ordinário (vide RMS 8038-ES - rel. Min. Felix Fischer, 2007); ii) recurso ordinário em lugar de recurso especial (vide: AgR no AI 93132/SP - rel. Min. Ari Pargendler, 1996); iii) recurso especial em lugar de ordinário (vide: AgR no Ag 184024/SP - rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 1999); iv) embargos infringentes em lugar de embargos de divergência (vide: AgR no REsp 1444/RJ - rel. Min. Barros Monteiro, 1990). [18] 

Por fim, indicamos uma quarta situação, a saber, a de que constitui erro grosseiro interpor recurso que não encontra amparo legal (em respeito ao princípio da taxatividade). Alguns acórdãos paradigmáticos do STF a corroborar esse argumento: i) RE 430084 AgR-ED-AgR-AgR/RS – relª. Minª. Ellen Gracie, 2006: agravo regimental interposto de acórdão de turma não encontra amparo legal, sendo evidente erro grosseiro; ii) AI 335512 AgR-ED/SP – relª. Minª. Ellen Gracie, 2002: não encontra amparo legal o pedido de consideração em face de acórdão proferido pela Turma do STF, sendo, portanto, erro grosseiro.

No intuito de uniformizar e dar publicidade ao seu entendimento quanto ao recurso correto em reiterados casos semelhantes, os referidos Tribunais vêm editando súmulas. STF e STJ sumularam, até então, três considerações que importam em erro grosseiro: no STF, Súmula 272 (fixou que não se admite como ordinário recurso extraordinário de decisão denegatória de MS) e Súmula 281 (inadmissibilidade de recurso extraordinário quando couber recurso ordinário da decisão impugnada); e no STJ, Súmula 118 (agravo de instrumento como recurso adequado da decisão que examina a admissibilidade dos recursos constitucionais). As três ocasiões corroboram o argumento já indicado de que os tribunais de sobreposição não admitem fungibilidade na utilização indevida dos recursos extraordinários (em sentido amplo).

Antes de finalizar esse tópico, uma última ressalva. Como já expusemos anteriormente, entendemos que esse requisito está diretamente relacionado à dúvida objetiva. Inexistindo erro grosseiro, certamente estamos diante de dúvida objetiva, e consequentemente, escusável. Dessa forma, embora seu reconhecimento na doutrina e jurisprudência seja praticamente unânime, julgamos ser dispensável em face da já presente exigência de dúvida objetiva.

c)Tempestividade

Como indicamos, o CPC/39 positivou a má-fé como excludente para aplicação da fungibilidade recursal. Dado o caráter intrinsicamente impreciso e subjetivo desse requisito, os aplicadores do direito, na busca de maior objetividade, acordaram que presumir-se-ia a má-fé do recorrente quando, na dúvida, lançasse mão do recurso de maior prazo. Dessa forma, entendiam a doutrina e a jurisprudência que a interposição no menor prazo era um indício razoável de que o recorrente estava de boa-fé, sempre que ausente o erro grosseiro. O argumento fundamental era o de que, tendo o juízo competente considerado como adequado o recurso de menor prazo, e não aquele efetivamente interposto, ter-se-ia operado a preclusão, circunstância que inviabilizaria a aplicação do instituto da fungibilidade recursal.

Observa-se que essa discussão só ganha relevo quando o prazo do recurso considerado próprio pelo órgão julgador é menor do que o prazo daquele efetivamente interposto. Em qualquer outra hipótese, a argumento da preclusão e da coisa julgada perde sentido.

Após o advento do CPC/73, a esmagadora maioria da jurisprudência e da doutrina manteve o entendimento de que esse requisito seria fundamental para a aplicação da fungibilidade.

Indicamos a seguir alguns dos inúmeros acórdãos, consolidando o posicionamento do STJ: i) AgRg no REsp 1178060/MG - rel. Min. Luiz Fux (2010): "a tempestividade do recurso incorreto é pré-requisito inafastável para receber o benefício da fungibilidade"; ii) RCDESP nos EAg 1193220/SP - rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2010: "A aplicação do princípio da fungibilidade recursal exige que a petição ajuizada atenda aos requisitos mínimos do recurso adequado, seja apresentada tempestivamente e não decorra de erro grosseiro ou má-fé. Caso contrário, não será possível admitir um pelo outro".; iii) AgRg no AgRg no Ag 1364118/MT - rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2011: "Não incide o princípio da fungibilidade em caso de ausência de qualquer dos requisitos a que se subordina, quais sejam: a) dúvida objetiva sobre o recurso cabível; b) inexistência de erro grosseiro; c) que o recurso inadequado tenha sido interposto no prazo do que deveria ter sido apresentado"; iv) REsp 91203 - rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira: "Posteriormente, no entanto, essa turma firmou o entendimento que exigir o requisito da interposição no prazo do recurso próprio, em observância ao princípio da preclusão e sob o fundamento de que, havendo dúvida objetiva, o correto seria o recorrente acautelar-se" ; v) AGA 126734/SP - rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 1997.

Nosso entendimento, no entanto, se dá no sentido oposto. Havendo dúvida objetiva, temos que exigir que a parte interponha um recurso dentro do prazo indicado para aquele que considerou impróprio é negar a própria existência do princípio da fungibilidade. Ora, a "troca" característica da fungibilidade deve ser operada em sua plenitude, inclusive com relação ao prazo. Dessa forma, o único dever da parte quanto ao prazo é observar aquele do efetivamente interposto.

"A má-fé não é elemento a ser considerado para a admissibilidade do recurso: ou há dúvida ou, alternativamente, inexiste o erro grosseiro, e se aplica a fungibilidade, ou não há um desses pressupostos e o princípio não incide. A questão do prazo é totalmente indiferente para fins de aplicação do princípio da fungibilidade" [19].

Fato é que essa circunstância não pode ser considerada indicativa de má-fé. Em primeiro lugar, pois a presunção do sistema é sempre a de boa-fé, nunca o contrário: exigir que o recorrente demonstre sua boa-fé é subverter a lógica do direito. Em segundo lugar, dispõe a legislação processual de outros meios mais objetivos e eficientes de sancionar atos de má-fé que não o não conhecimento da demanda em virtude do prazo – p.ex. aplicação de multas e sanções, dispostas nos arts. 17 e 18 do CPC/73. Vale lembrar que esses instrumentos vêm sendo, e devem ser cada vez mais, utilizados pelos Tribunais [20].

Por fim, o prazo maior mostra-se ineficiente para lidar com a questão da má-fé que tanto preocupou o legislador. Isso porque a parte pode utilizar-se do menor prazo e estar convicta de que o faz impropriamente, objetivando retardar o julgamento da demanda. Temos que não há correspondência objetiva entre boa-fé e interposição do menor prazo, sendo esse binômio apenas uma das hipóteses de conjugação dos temas. Logo, a referida presunção não é capaz de lidar com o problema identificado pelo legislador.

Em sentido convergente, leciona a Profª: Teresa Arruda Alvim Wambier:

"Não nos parece coerente essa afirmação, pois o recorrente de boa-fé, que está sincera e intimamente convencida de que o recurso cabível é o de prazo maior, neste prazo maior, evidentemente, há de interpô-lo. De fato, interpor o recurso, ainda que não o mais correto, no prazo que a lei prevê, na verdade poderia até ser indício de boa-fé. O tema deve ser examinado em face da própria amplitude e significação do princípio da fungibilidade. A fungibilidade não admitiria que se trocasse integralmente um recurso por outro e, pois, também, o próprio prazo? Se assim não for, estar-se-ia negando a própria existência do princípio da fungibilidade" [21].

2.Perspectivas sobre o instituto

Doutrinadores vêm se convencendo, gradualmente, da impropriedade dessa exigência, afirmando a necessidade de que os Tribunais revejam o tradicionalmente aceito requisito. (indicar opiniões nesse sentido). 

Uma evidência empírica curiosa: apesar da esmagadora maioria dos acórdãos no STJ amparar o requisito da tempestividade, duas notórias exceções merecem menção: o REsp 16978/SP - rel. Min. Athos Carneiro, 1992; e o REsp 12610/MT - rel. Min. Athos Carneiro, 1991.

Nessas oportunidades, o eminente Ministro afirmou que, uma vez presentes os crivos da dúvida objetiva e da ausência de erro grosseiro, aplicar-se-ia a antiga teoria de recurso indiferente - isto é, admitir-se-ia o recurso incorreto independente do prazo estar em conformidade com aquele julgado próprio para o caso, homenageando o princípio do devido processo legal.

"SE A JURISPRUDENCIA AINDA NÃO SE TORNOU PERFEITAMENTE UNIFORME, O ERRO DA PARTE PODE APRESENTAR-SE ESCUSAVEL E ASSIM SER RELEVADO, AINDA QUE O RECURSO IMPROPRIO HAJA SIDO INTERPOSTO APOS FINDO O PRAZO ASSINADO PARA O RECURSO PROPRIO. PREVALENCIA DA REGRA MAIOR DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, E APLICAÇÃO DA ANTIGA TEORIA DO 'RECURSO INDIFERENTE', CONSAGRADA NO CPC DE 1939, ARTIGO 810, NOS CASOS DE AUSENCIA DE MA-FE E DE ERRO GROSSEIRO" (REsp 16978/SP - rel. Min. Athos Carneiro - 1991).

A evidência exposta comprova a involução do pensamento do STJ, tendendo com cada vez mais intensidade a beneficiar aspectos formais em detrimento do aspecto material/substancial. Sem discutir causas e consequências desse grave problema institucional, nos atemos a apresentar nossa indignação. Apenas para ilustrar a que ponto chegamos em termos de aplicação de requisitos absolutamente formais e dispensáveis, apresentamos a ementa do ED no REsp 995688/SP - rel. Min. João Otávio de Noronha, 2010.

1.Admitem-se como agravo regimental embargos de declaração opostos a decisão monocrática proferida pelo relator do feito no Tribunal, em nome dos princípios da economia processual e da fungibilidade.

2. "Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos" (Súmula n. 115/STJ).

3. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento.

É dramático ver que, mesmo quando o Tribunal se inclina a reconhecer a instrumentalidade das formas, o aspecto material acaba encontrando obste em exigência do plano formal (ausência de procuração nos autos, p.ex.) facilmente remendável. Em outras palavras, nos dizeres sempre precisos de Nelson Nery Júnior: "Não se deve sacrificar o fundo pela forma" [22].

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Sobre o autor
Victor Hugo Marcão Crespo

Advogado no BMA - Barbosa Mussnich Aragão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRESPO, Victor Hugo Marcão. Princípio da fungibilidade recursal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3082, 9 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20601. Acesso em: 18 abr. 2024.

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