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Duplo grau de jurisdição: uma pseudogarantia que deve funcionar como exceção

16/12/2011 às 08:46
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O duplo grau de jurisdição é prejudicial ao processo, pois se põe como verdadeiro entrave ao alcance da efetivação do devido processo legal e à prestação da tutela jurisdicional adequada.

A natureza jurídica do duplo grau de jurisdição ainda é controvertida. Alguns juristas defendem que é uma garantia constitucional, apesar de não estar positivado na nossa Constituição Federal, pois seria um princípio implícito; outros entendem que não se trata de garantia nem de princípio constitucional.

Daquele primeiro entendimento, de viés constitucional, comungam renomados juristas como Tereza Arruda Alvim e Luis Rodrigues Wambier, segundo os quais, a garantia do duplo grau de jurisdição estaria umbilicalmente ligada ao Estado de Direito. Nessa mesma linha também se posiciona Calmon de Passos, segundo o qual o duplo grau de jurisdição é uma cláusula que está inserida no devido processo constitucional, o qual é um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que tem o poder de decidir. Também integrando esta corrente encontramos Cândido Rangel Dinamarco, segundo o qual o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional que não precisa vir expresso na Constituição Federal e nem no sistema normativo, pois a Constituição ao disciplinar o Poder Judiciário, como uma instituição hierarquizada, prevendo a existência de Tribunais, tem nela já inserido o referido princípio.

Já para uma segunda corrente de entendimento, capitaneada pelo ilustre Guilherme Marinoni, o duplo grau de jurisdição não tem viés constitucional, e, segundo ele, na verdade, o duplo grau é uma boa desculpa para o réu, que não tem razão, retardar o processo. Já para o nosso respeitado Nelson Nery Jr., o duplo grau não chega a ser uma garantia constitucional, pois, no Brasil, a única Constituição que o tratou como garantia foi a de 1824.

Com a devida vênia merecida pelos nossos consagrados juristas que se coadunam em relação à opinião de que o duplo grau de jurisdição tem viés constitucional, e, portanto, é indispensável em nosso ordenamento jurídico, assim não entendemos.

Partindo da premissa de que os objetivos precípuos do moderno processo buscam cada vez mais assegurar a sua celeridade e a efetividade das decisões judiciais, visando alcançar a prestação jurisdicional adequada, irrefutavelmente, este cenário atual não se harmoniza de forma alguma com a ideia de se manter no ordenamento jurídico pátrio esse leque de recursos à disposição dos jurisdicionados, da forma como está, pois o vital é garantir que as decisões proferidas pelo Judiciário sejam satisfatórias de verdade, sejam respeitadas efetivamente, providas de confiança, que possam garantir, sem mais delongas, segurança jurídica ao jurisdicionado com a imediata solução das suas controvérsias.

Na sistemática atual, o que se revela notório na verdade, é o exercício de um "quádruplo" grau de jurisdição, porque não é um só recurso que se possibilita para cada demanda, são vários os recursos que podem ser utilizados em uma só demanda, e o pior, o maior "usuário" deste "produto" é o próprio Poder Público, não obstante as prerrogativas e garantias que lhes são asseguradas. Ainda age procrastinando os feitos judiciais indiscriminadamente, com a interposição descontrolada de recursos, simplesmente para não cumprir as decisões judiciais que lhe são impostas. Não nos deixa mentir a pesquisa realizada pela Escola de Direito da FGV, segundo a qual o poder público é, de longe, o maior usuário dos tribunais, figurando como parte em 90% de todos os processos.

Agora, sendo assim, indagamos: como podemos concordar com a manutenção dessa sistemática recursal, da forma como está? Onde a tutela jurisdicional adequada e justa é de responsabilidade exatamente do Estado-juiz, entretanto o mesmo não consegue sequer ter autoridade suficiente em relação ao próprio Estado! Isso é no mínimo vergonhoso, pois, é o mesmo que um pai ou uma mãe, que põe um filho no mundo e constitui uma instituição familiar, ensinando-lhe o certo e o errado, delimitando seus deveres, pondo em suas mãos "armas" para exercitar seus direitos e fazer valer os ensinamentos que lhes foram garantidos, e, no final das contas, o próprio pai ou a própria mãe, qualquer um dos dois, ser a primeira pessoa a agir de má-fé para com aquele filho, decepcionando-lhe as expectativas, recusando-se veementemente a cumprir as ordens, tal qual foram por eles devidamente delineadas e tão valorizadas, mas que, na verdade, em relação a ele próprio, pai ou mãe, não tem qualquer eficácia, qualquer efetividade no mundo dos fatos, são, portanto nada mais que regras simbólicas, totalmente despidas de conteúdo prático-normativo. É exatamente assim que funciona o duplo grau de jurisdição quando manipulado pelo Poder Público.

É exatamente estabelecendo este parâmetro comparativo bem didático que podemos perceber o quão é prejudicial para o processo manter-se o duplo grau de jurisdição como regra em nosso ordenamento jurídico, como um princípio fundamental ou uma garantia constitucional, quando na verdade ele se põe como verdadeiro entrave ao alcance da efetivação do devido processo legal, em ambos os sentidos, substancial e formal, e, consequentemente, à prestação da tutela jurisdicional adequada.

Os princípios e garantias que consideramos verdadeiramente como sendo fundamentais são: o contraditório e a ampla defesa, os quais devem sempre estar diametralmente vinculados aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Então, analisando o duplo grau de jurisdição sob o prisma da razoabilidade e da proporcionalidade, podemos perceber que, na verdade, ele viola muitos direitos fundamentais, sobretudo o protoprincípio da dignidade da pessoa humana, e, para perceber isso, basta ver as tantas e quantas injustiças são diuturnamente praticadas pela própria Justiça, nos incontáveis casos onde o Poder Público, em seus diversos seguimentos, é condenado ao pagamento de indenizações, ressarcimentos, reparações, inclusive e principalmente em questões envolvendo o direito à segurança, à saúde e à vida. São casos incomensuráveis que ocorrem todos os dias, onde sempre, no final das contas, depois que o Estado esgota todos os recursos ordinários e extraordinários possíveis e imaginários, procrastinando por demais a prestação jurisdicional, ainda tem ele a garantia de "pagar" seus débitos por meio dos famigerados precatórios, os quais, na verdade, todos já sabem, significa, na esmagadora maioria dos casos, a mesma coisa de "simplesmente" não pagar. Então, diante disso pergunto-lhes: será que alguém consegue vislumbrar aqui algum respeito, acatamento ou obediência do Poder Público aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito?

Indago-lhes isso porque é cediço que o maior princípio defendido pelo Estado Democrático de Direito é exatamente o cumprimento e obediência à Constituição Federal e às demais leis vigentes no ordenamento jurídico pelo próprio Estado, pelo próprio ente público, ou seja, é uma exigência do Estado Democrático de Direito que, não só o povo, como também e principalmente o Poder Público, esteja totalmente submisso às normas e aos princípios constitucionais, bem como aos demais preceitos legais positivados no ordenamento jurídico.

Portanto, vislumbra-se claramente que, se elevarmos o duplo grau de jurisdição, conforme os moldes atuais, à categoria de garantia fundamental ou de princípio constitucional, como poderemos também, a contrário senso, efetivar os demais princípios implícitos, ou efetivamente positivados na nossa Constituição? Como por exemplo "a razoável duração do processo"? E o princípio da celeridade processual? E onde fica a prestação da tutela jurisdicional justa e adequada? E a efetividade das decisões judiciais? Eis é o cerne da questão!

Não podemos aceitar a supremacia de um "princípio" ou "garantia" que alfim neutraliza os efeitos dos principais princípios constitucionais assegurados, tornando-os descartáveis, dispensáveis e imprestáveis no mundo dos fatos...

Inclusive, vale lembrar que a doutrina nos traz como pontos negativos do "princípio do duplo grau de jurisdição": a dificuldade de acesso à justiça, a quebra de unidade do poder jurisdicional, isto é, insegurança jurídica, bem como o desprestígio da primeira instância.

Isto posto, já nos permite concluir facilmente que, de fato, enquanto a sistemática recursal continuar como está, "nunca" alcançaremos a efetividade das decisões judiciais de logo, em um primeiro momento, com a celeridade processual que se espera e se almeja. Por quê? Simplesmente em virtude da recorribilidade das decisões judiciais nos moldes atuais, pois estas já nascem inaptas a produzir quaisquer efeitos práticos no mundo dos fatos, já nascem, pasmem, "capengas," e essa realidade se eterniza no tempo em virtude exatamente da quantidade de recursos à disposição, e também pela sistemática adotada com base nesse duplo grau de jurisdição, pois quem não é da área jurídica normalmente não sabe, mas o chamado efeito suspensivo é quase que infinitamente assegurado pela quantidade de recursos postos à disposição das partes, e pior, quando um recurso não o tem congenitamente, esse efeito pode ser concedido pelo juízo ad quem, perante o qual se interpôs o recurso, bastando para tanto preencher os requisitos exigidos, e pronto, ali está assegurada a ineficácia praticamente, ad infinitum, da prestação jurisdicional. Digo ad infinitum porque não podemos olvidar que ainda temos a morosidade da máquina judiciária também para "ajudar" nessa procrastinação, juntamente com esse "quádruplo grau de jurisdição" que é assegurado pelo nosso ordenamento.

Esse excesso de recursos pautado na pseudogarantia ou pseudoprincípio do duplo grau de jurisdição nos legitima a traçar paralelos, a nosso ver por demais pertinentes e relevantes, os quais nos revelam irrefutavelmente que o duplo grau de jurisdição nada mais é do que uma garantia, ou um princípio, meramente simbólico, ou álibi, cuja principal função é servir de estorvo à concretização dos demais princípios processuais, sobretudo os de cunho constitucional.

A referida parametrização será feita tomando por base um estudo excepcional realizado pelo mestre Marcelo Neves, professor titular de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, no qual discute a função simbólica de textos constitucionais carentes de concretização normativo-jurídica, conforme cita em seu livro Direito Constitucional Esquematizado (13ª, Ed. Saraiva, 2009, p. 30-35), o renomado jurista, professor, Me e Dr. Pedro Lenza.

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Na verdade, o referido estudo teve como finalidade tratar sobre a chamada constitucionalização simbólica, abordando também a legislação simbólica e a legislação álibi, expressões usadas pelo referenciado mestre. Só que, no presente trabalho, vamos usar estes estudos e conceitos como parâmetro comparativo aplicado ao duplo grau de jurisdição, traçando um paralelo entre os efeitos daqueles e deste, senão vejamos:

1.Percebemos que o estudo realizado pelo professor Marcelo Neves tem perfeita aplicação também ao duplo grau de jurisdição, pois este, assim como ocorre com a constituição e a legislação simbólica, também não está sendo suficientemente concretizado em nossa ordem jurídica vigente, uma vez que a função desempenhada por ele hodiernamente só se presta a encobrir problemas sociais e a obstruir progressos efetivos da sociedade no âmbito jurisdicional, da mesma forma como acontece com a legislação e constitucionalização simbólica.

2.Da mesma forma que a legislação álibi, conforme comparativo com o referenciado estudo, o duplo grau de jurisdição surgiu como uma resposta rápida do governo, no caso do Legislativo, à sociedade, mas que na verdade o maior favorecido nessa história é o próprio Estado, visto que o ente público é quem mais se utiliza do duplo grau de jurisdição, e, normalmente, com finalidade desvirtuada, procrastinatória, apenas para abster-se, ou protelar ao máximo o cumprimento de decisões judiciais que tão somente buscam reafirmar, assegurar e garantir a concretização de direitos pelos quais o próprio Estado se responsabilizou perante a sociedade, tomando-os para si como deveres em relação aos jurisdicionados.

3.Esse pseudoprincípio ou pseudogarantia na realidade busca dar uma aparente solução aos problemas sociais ligados à Justiça, pois, mostra-se falsamente como um instituto necessário e indispensável à efetividade de verdadeiros princípios e garantias constitucionais, principalmente o do contraditório e da ampla defesa, mas, na realidade, apenas desempenha uma função meramente ideológica, por introduzir um sentimento de bem-estar na sociedade, haja vista que essas garantias constitucionais referentes aos princípios do contraditório e da ampla defesa devem ser assegurados, em seu mais alto grau, no bojo de toda a instrução processual, e não para servirem de fundamento à desmoralização do próprio Poder Judiciário, como via de regra vem acontecendo, porque, além do efeito obstativo da sentença recorrível, o jurisdicionado ainda tem que tolerar a possibilidade de se impugnar diversas vezes essa mesma decisão judicial, a qual deveria ter um mínimo de efetividade, mas que, como já foi dito e explicado, já nasce fadada à ineficácia, depois de tanto tempo em trâmite no juízo de primeira instância, frustrando, por conseguinte as expectativas dos jurisdicionados.

4.Ainda prosseguindo ao estudo comparativo, pode-se dizer que essa figura jurídica, encontra perfeita simetria com a legislação simbólica, do Marcelo Neves, porque também gera efeitos sociais similares, pois é uma figura que a priori, "parece ser" um princípio ou uma garantia constitucional eficaz, mas que, na verdade, traz consigo efeitos negativos indiretos ou latentes, porque futuramente, e aqui vale alertar que esse futuro já se iniciou, ocasionará a falência do Poder Judiciário, em virtude da concreta impotência paulatinamente instalada, observada na quantidade de demandas judiciais sem solução, no desserviço da prestação jurisdicional totalmente inadequada, muito longe de ser justa, e com um mínimo de efetividade. E, tudo isso, demonstra muito bem os efeitos colaterais de um princípio ou garantia meramente simbólico: o duplo grau de jurisdição.

Sabe-se que, atualmente, com a inovada sistemática adotada pelo nosso Código de Processo Civil (CPC), proferida a sentença, o juiz não mais encerra a sua atividade jurisdicional, pois deverá continuar atuando no chamado processo sincrético que se compõe da fase de cognição e da fase de execução ou cumprimento de sentença. E, de acordo com a nossa proposta de fazer com que o duplo grau de jurisdição passe a configurar em nosso sistema como uma exceção, e não como uma regra, como é atualmente, o juiz continuaria atuando neste processo, agora na fase recursal.

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Sobre a autora
Monica Rodrigues

Advogada em Recife (PE). Especialista em Direito Processual Civil, com pós-graduação e habilitação p/ o Magistério Superior pela UNISUL - Universidade do Sul de Santa Catarina. Consultoria jurídica, solução pacífica de conflitos, mediação e arbitragem.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Monica. Duplo grau de jurisdição: uma pseudogarantia que deve funcionar como exceção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3089, 16 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20674. Acesso em: 17 abr. 2024.

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