III- PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE
Partindo da origem da palavra co-culpabilidade, temos o prefixo "co" como sendo estar junto, dividir algo. Já culpabilidade nos remete a uma espécie de juízo de reprovabilidade. Logo, mediante a atuação indireta do Estado no cometimento do crime, haja vista faltar para com o seu dever de inclusão social, o direito penal punitivo exercido pelo mesmo (jus puniendi) deverá ser minorado, de modo que as conseqüências da aplicação da pena sejam sopesadas diante da ausência de oportunidades sociais.
Como afirma SILVA (2008, s/p.):
[...] Diante disso coloca-se que nos casos em que o infrator for levado à praticar o crime devido à injustiça que impera na sociedade atual o Estado e a sociedade devem assumir uma "mea culpa", gerando efeitos práticos não apenas na aplicação e execução da pena, mas também no processo penal.
Em virtude da responsabilidade que a sociedade e o Estado têm na formação de uma identidade criminosa, urge trazer à tona a discussão sobre a minoração ou não dos efeitos da pena.
Encartado implicitamente no art.66 do Código Penal, tal princípio tem ganhado prevalência no momento da aplicação da penalidade. Ora, se a formação-cidadã fora realizada de forma deturpada, faz se necessário amenizar as conseqüências da pena de forma a proporcionar uma melhor eficácia do princípio da isonomia, já que, como afirma CARNEIRO (2008, s/p), em sua obra O principio da co-culpabilidade como atenuante genérica: "Assim, o juízo de reprovabilidade individual pelo ato delitivo não pode ser igual entre os desiguais, nem desigual entre os iguais".
Deste modo, a sociedade e o Estado não devem permitir a existência de desigualdades, sejam essas econômicas, sociais, políticas e culturais, uma vez que ao permitirem a prevalência destas estarão cessadas as oportunidades isonômicas a todos os indivíduos, o que vem a ocasionar a não exigência de um comportamento adequado à lei e ao exercício dos interesses advindos do direito.
Ora, como consigna CARNEIRO (2008, s/p.):
Há, inegavelmente, apenas a título de exemplo, uma notável diferença, quanto ao conhecimento da ilicitude do fato, entre um sujeito com 21 anos de idade, que não possui nem o 1o grau completo, e outro indivíduo pertencente à classe média, com a mesma idade daquele, que esteja concluindo o ensino superior.
Assim, vale os dizeres de CARNEIRO (2008 s/p.), reportando-se à Eugênio Raúl Zaffaroni:
Reprovar com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se encontram em situações de extrema pobreza é uma clara violação do princípio da igualdade corretamente entendido, que não significa tratar todos igualmente, mas tratar com isonomia quem se encontra em igual situação.
Em ritmo de conseqüência, os aplicadores do direito que mantinham apenas uma posição espectadores, com a inclusão do princípio da co-culpabilidade passam a gozar de uma situação de protagonistas, pois atuam de modo a concretizar o princípio da igualdade, por meio da diminuição das freqüentes desigualdades sociais, contrapondo-se à aplicação da teoria do direito penal do inimigo
Portanto, a aplicação de tal princípio se baseia no tratamento desigual dos hipossuficientes em confronto com os mais privilegiados, de modo a prevalecer a proteção e respeito às classes sociais menos favorecidas, marginalizadas e excluídas do exercício do poder, uma vez que este encontra-se sob o jugo das classes mais favorecidas, o que possibilita que o Direito seja utilizado para o cometimento de barbáries sociais,se tornando uma verdadeira afronta ao princípio do Estado Democrático de Direito.
IV – VAMOS MATAR O CRIMINOSO?
O fato é que a imposição de pena a quem venha cometer algum ato lesivo a bem socialmente protegido possui em si mais um caráter de contrapartida à sociedade diante da barbárie cometida do que a procura por meios suficientes para a reintegração do homem-deliquente ao meio social de modo a não mais lesionar os interesses da coletividade.
O intuito da pena, ou seja, seu fim, seria uma mistura de retribuição pelo mal cometido com um misto de educação e correção. Este ideário ganhou força com os trabalhos de Fillipo Grammatica, Adolfo Prins e Marc Ancel, instituidores da Escola do Neodefensismo Social ou Nova Defesa Social. Segundo tal escola os fins da pena seriam ressocializar, recuperar, reeducar ou educar o condenado, haja vista que a sociedade se encontrará protegida caso proporcione a adaptação do delinqüente ao seio social.
Entretanto, urge consignar que, embora a teoria dominante propugne a ressocialização, o Direito, na figura do direito material e do direito processual, não passa de um meio para a reintegração social, sendo necessária, nesse passo, uma política social estatal e ajuda pessoal dos mais diversos setores da sociedade.
Modernamente a pena ganha contornos humanizadores, de modo que além da sanção correspondente garanta-se ao tutelado (deliquente) meios eficientes para que possa escolher a melhor alternativa de retorno ao convívio social. Escolha porque o poder estatal não pode oprimir a consciência do presidiário, impondo-lhe modos de vida e de comportamento que porventura não almeje agregar ao seu ideário cultural. Como bem diz MIRABETE (2006, p.25):
Embora a esperança de alcançar a "recuperação", "ressocialização", "readaptação", "reinserção" ou "reeducação social" tenha penetrado formalmente nos sistemas normativos, questiona-se muito a intervenção estatal na esfera da consciência do presidiário, para se apurar se tem o Estado o direito de oprimir a liberdade interna do condenado, impondo-lhe concepções de vida e estilos de comportamento.
Hodiernamente tem emergido com absoluta presteza a Escola da Criminologia Crítica, para quem a criminalidade é um fenômeno social natural de toda sociedade, e não um estado de deficiência individual ou mesmo social. Além disso, consigna esta corrente do pensamento que a função de prevenção e de ressocialização do deliquente converte a execução penal num ramo da atividade jurídica em que se produz e reproduz etiquetas diante das quais vigora o establishment de personalidades e comportamentos humanos.
Mas, apesar das contribuições de tal doutrina, só no futuro poderemos vislumbrar uma execução penal em conformidade com os padrões dos direitos fundamentais, restando, por hora, a mantença das prisões e o oferecimento de um esforço ressocializador como um meio posto à disposição do penitente para que ajude a si próprio.
Obviamente que a permanência no atual sistema prisional exige uma mudança de filosofia de comportamento dos atores responsáveis pela execução penal, a fim de que se efetivem concretamente os direitos dos "encarcerados", ainda mais quando já se encontram consumados 26 anos da Lei de Execução Penal e sua utopia. Utopia porque atualmente as prisões despontam mais como instrumentos para a faculdade do crime, do que "casas" de apoio e recuperação do condenado.
Os Estados da Federação ainda não possuem uma política de segurança pública que se preocupe com a condição do preso. O Rio Grande do Norte, tomado apenas como exemplo para retratar o todo, possui inúmeras delegacias que "amontoam" homens em celas um tanto quando precárias sem a menor condição de sobrevivência.
Ora, essa realidade tornou-se tão banal que chegamos ao ponto das autoridades e da própria população não se sensibilizarem com os noticiários diários da TV, Rádio e Jornais sobre os casos de violência, sejam nas modalidades de assalto a bancos, a ônibus, mortes de inocentes e envolvidos com o tráfico de drogas, o que torna paradoxal a existência de uma lei amplamente comprometida com a garantia de estruturas mínimas de sobrevivência para os condenados e a realidade posta. Basta que analisemos a vida dos detentos para comprovarmos veemente essa situação. Noticia matéria do Jornal Tribuna do Norte, Natal RN, domingo, 07 de março de 2010, o cotidiano de um dos detentos do Presídio Provisório Raimundo Nonato: "Colocar colchão em cima de uma pedra é um luxo:J.M.M.S,33 anos, detido desde 2008. "Temos na cela apenas uma pedra para dormir. Geralmente, a pedra fica com o preso mais antigo. Os outros dormem no chão".
Destarte, a crise no sistema da execução penal encontra-se instalada, uma vez que o cumprimento da pena, destinado teleologicamente a promover a aptidão do condenado a uma convivência social, viola os dispositivos legais e as regras morais. Como bem afirmou MIRABETE (2004, p.27):
Assim, o chamado processo penal de execução, e especialmente o das medidas privativas de liberdade, é, na verdade, um procedimento não só afastado essencialmente de muitos princípios e regras de individualização, personalidade, proporcionalidade da pena etc., como também um sistema em que a prisionização modela valores e interesses opostos àqueles cuja ofensa determinou a condenação.
Essa somatória de fatores contribuintes para a crise do sistema de execução penal demonstra a necessidade de uma política de governo e a intervenção efetiva da comunidade para reduzir os índices preocupantes da criminalidade violenta, o que poderia ser alcançado com a implantação de um método cuja finalidade precípua fosse preparar o condenado para ser reintegrado ao corpo social mediante a valorização de sua pessoa. Valem as palavras de OTTOBONI (2006, p.30), para ilustrar tal realidade:
Normalmente, os infratores condenados são discriminados no mais amplo sentido da palavra. A maioria é vista apenas como criminosos irrecuperáveis, lixo da sociedade, não como pessoas resgatáveis em sua dignidade [...]. Quando você valoriza o outro, o beneficiado já percebe, em quem o beneficia, que o amor não estabelece discriminações [...].
Se assim não for, a sociedade permanecerá num círculo vicioso, círculo este qualificado por OTTOBONI (2006, p.34) como sendo:
[...] de ferro e fogo, em que as preocupações do Estado se exaurem na trilogia:I – Repressão + Prisão; II – Construções de presídios; III – Novas leis que evitem prisões ou que concedam benefícios penitenciários.
E tudo isso é bastante prejudicial à sociedade, uma vez que esta se encontra numa posição de distorção diante a realidade, o que será capaz de mantê-la satisfeita com as constantes notícias de medidas de mero efeito ilusório de técnica suficiente para a consecução dos seus fins, pois os aplicadores do direito cochilam ante a periferia da questão.
Portanto, em virtude da omissão social e estatal, como afirma OTTOBONI, (2006, p.37): "a sociedade vai pagar alto tributo por seu erro de pensar que aquele bandido que a afrontou ficaria eternamente na prisão, e justificado fica o surrado jargão popular". ‘Cada povo tem o criminoso que merece’.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção da identidade criminosa, obviamente ato letal ao convívio social harmonioso, configura-se como sendo um misto de responsabilidade do trabalho da família desestruturada, da omissão da sociedade ante a realidade criminosa, a qual prefere acreditar no confinamento do homem em cárceres subumanos como meio ideal para a solução da controvérsia social, e da ineficácia das políticas governamentais adotadas, e não uma obra divina, na qual o homem nasce propenso ao cometimento de crime.
Em decorrência desta situação, as pessoas que porventura venham a delinqüir e se mostrem desprovidas da proteção da família, da sociedade e do Estado, deverão ter suas condutas penalizadas de forma proporcional, o que acabará proporcionando-lhes maior igualdade e razoabilidade no cumprimento da pena.
Entretanto, para que tal ideário seja buscado faz-se necessário repensar o modo de executar a política criminal de cumprimento da pena, sendo indispensável a adoção de novos métodos de valorização do homem delinqüente e da participação da comunidade no processo de ressocialização, para só então matar o criminoso, salvar o homem e, consequentemente, proteger a sociedade de eventual prática lesiva aos bens mais importantes da comunidade, uma vez que o antigo homem-delinquente despontará de uma nova estrutura de convívio familiar e social.
REFERÊNCIAS
ATHAYDE, Celso; BILL, Mv; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. Editora objetiva. Rio de Janeiro, 2005.
BRASIL, ministério da justiça. Departamento penitenciário nacional: Sistema penitenciário no Brasil dados consolidados. 2008.
CARNEIRO, Bruno Carrijo. O princípio da co-culpabilidade como atenuante genérica. Publicado em 2009. Disponível em: http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/artigo_default.asp?ID=343. Acesso em 12 de novembro de 2010.
CAVALCANTI, Eduardo Medeiros. Crime e sociedade complexa: Uma abordagem interdisciplinar sobre o processo de criminalização. Editora Lzn, Campinas SP, 2005.
GOMES, Geder Luiz Rocha. A substituição da prisão Alternativas penais: Legitimidade e adequação. Editora Jus podivm, Bahia, 2008.
MIRABETE, Julio Fabrini. Execução penal. 11° edição, Atlas, São Paulo, 2004.
OTTOBONI, Mário. Vamos matar o criminoso? Método APAC. Editora Paulinas, 3ª edição. São Paulo, 2006.
SILVA, Tamara da. O princípio da co-culpabilidade e a legilação penal brasileira. Publicado no recanto das letras em 18/08/2008. Disponível em: http://66.228.120.252/textosjuridicos/1133681, acesso em 12 de novembro de 2010.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Editora livraria do advogado. Porto Alegre, 2004.