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Dano imaterial: a compreensão dos interesses jurídicos e de sua lesão segundo volume tridimensional da dignidade humana

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Busca-se demonstrar a impropriedade da classificação dos danos em patrimoniais e morais, estes considerados extrapatrimoniais, tendo em vista o aperfeiçoamento da moderna teoria da responsabilidade civil no sentido dos valores hegemônicos da sociedade contemporânea.

Resumo

O presente artigo cuida do dano imaterial como uma categoria de lesões a interesses jurídicos e bens insuscetíveis de avaliação pecuniária, porém integrantes de um patrimônio cuja tutela já se encontra estabelecida no ordenamento pátrio. Com amparo na teoria do interesse, são examinadas as três dimensões de interesses fundamentais, que consubstanciam hoje o volume tridimensional do princípio da dignidade humana, bem como o instituto do dano moral coletivo, resultado cultural da massificação da sociedade e da globalização, colimando-se estabelecer a compreensão adequada do dano imaterial, que seja, a um só tempo, objetiva, ou seja, dissociada de sua repercussão sobre os entes prejudicados, e completa, posto considerar o patrimônio individual, de grupo ou social. Por fim, busca-se demonstrar a impropriedade da classificação dos danos em patrimoniais e morais, estes considerados extrapatrimoniais, tendo em vista o aperfeiçoamento da moderna teoria da responsabilidade civil no sentido dos valores hegemônicos da sociedade contemporânea.

Palavras chave: Dano imaterial; responsabilidade civil; dano moral individual; dano moral coletivo; interesses transindividuais; patrimônio; volume tridimensional da dignidade humana.


Introdução

Entre as diversas formas de compreensão do Direito, a sociedade contemporânea tratou de incluir o seu sentido tecnológico, concebendo o direito como uma técnica social de proteção dos valores humanos, operada mediante a limitação da liberdade dos indivíduos pelo Estado.

O Direito, então, aproxima-se das tecnologias na medida em que se caracteriza pela mutabilidade de seu dever ser, visando sempre ao bem-estar e à coexistência pacífica. Neste contexto, seu maior desafio é corresponder às mudanças no tecido social e, ao mesmo passo, alavancar as inovações que o titular do poder soberano deseja implementar.

No que concerne ao direito brasileiro, é possível dizer, no decorrer das últimas décadas, importantes inovações surgiram no intuito de colocar à disposição dos juristas ferramentas avançadas para a solução dos conflitos da sociedade atual, matizada pela massificação das relações entre os sujeitos de direitos e deveres e pela vulnerabilidade de um contingente cada vez maior desses sujeitos.

Desta conjuntura decorre o aperfeiçoamento do instituto do dano, colimando-se o reequilíbrio das posições desiguais entre tais sujeitos, satisfazendo-se o princípio da dignidade humana. E tal princípio também é alvo de inovações, de modo que o seu núcleo normativo não mais se restringe aos direitos subjetivos da pessoa natural, contemplando os interesses característicos das três dimensões da existência humana, a saber: o homem enquanto indivíduo, enquanto membro de coletividades determinadas e como partícula dispersa do cosmo social.

Isso se deve à positivação dos interesses transindividuais, coletivos e difusos, que a um só tempo reorganiza a categoria dos danos indenizáveis segundo a natureza dos interesses (danos materiais e danos imateriais) e conforme o titular dos interesses lesionados (dano individual e dano coletivo). De outro lado, o reconhecimento dos interesses coletivos torna antiquada a partição dos danos entre patrimoniais e extrapatrimoniais, este significando o dano moral, uma vez que o patrimônio humano passa a ser considerado como dotado de bens pecuniariamente estimáveis e de bens que não o são.

Amparado nesse raciocínio, o presente artigo busca destacar as bases conceituais que legitimam a concepção do dano imaterial como a outra face das lesões a interesses, a par dos danos materiais, resultando de uma situação adequada do instituto do dano no volume tridimensional da dignidade humana.


2. Os interesses jurídicos

A abordagem do dano imaterial, para resultar de um processo cognitivo rigoroso, exige que os elementos de sua definição sejam devidamente observados, com vistas a testar a propriedade desta categoria de lesão. Portanto, imprescindível se faz o exame dos interesses jurídicos, da lesão a tais interesses e da noção de patrimônio, este último sendo visualizado nas três dimensões da existência humana sobre as quais incide o princípio da dignidade.

A começar pelo estudo dos interesses jurídicos, alguns esclarecimentos devem ser feitos neste tópico. Primeiramente, o vocábulo interesse, em sua origem latina, refere-se àquilo que está entre ou no meio. Denota a "relação de reciprocidade entre um indivíduo e um objeto que corresponde a uma determinada necessidade daquele" (FERREIRA, 2010, p. 1173).

Em sentido filosófico, o interesse se aproxima da necessidade que um sujeito tem da posse ou do gozo efetivo de determinado bem da vida (objeto), assumindo a forma do desejo ou, como enunciou Baruch de Spinoza, de um "apetite com consciência de si mesmo". (SPINOZA, 2005, p. 260).

Conquanto compreendido como desejo de fruição de um objeto ou situação valorizados pelo sujeito, o interesse pressupõe não a atração das coisas em si, mas a importância que as coisas auferem a partir da intervenção valorativa do homem, que lhes transforma em bens, em pólos de relevância produzidos pela consciência humana. Assim o interesse representa o vínculo que, segundo Rodolfo Mancuso, "interliga uma pessoa a um bem da vida, em virtude de um determinado valor que esse bem possa representar para aquela pessoa". Por trás dele, há sempre uma "situação de vantagem, que faz exsugir um interesse na posse ou fruição daquela situação" (MANCUSO, 1997, p. 18).

Quando a consciência humana atribui sentido (importância) a determinado objeto (ente ou estado circunstancial), torna tal objeto em valor, pouco importando sua tangibilidade ou intangibilidade. Entre o objeto valorizado e o sujeito que o valoriza surge o liame do interesse. Ao Direito, porém, interessa o valor compartilhado socialmente, ou seja, aquele que não se restringe à mente do indivíduo isolado.

Neste prisma, Raymond Bourdon e François Bourricaud (2004, p. 599) destacam a concepção dos sociólogos clássicos dos valores como "estados valorizados do sistema social", segundo a qual o valor é o preferível expresso de forma relativa e comparativa, atrelado à concepção do desejável e do seu reverso, o indesejável.

O interesse jurídico propriamente dito resulta da filtragem dos valores a serem protegidos, implementada por um preceito primário patrocinador (direito, conteúdo do interesse jurídico) e outro, secundário sancionador (cominação, responsabilização pela ofensa ao interesse jurídico). Sua existência pressupõe a liberdade humana de atribuição e de fruição dos bens ou objetos valorados e, igualmente, o desejo da segurança que a liberdade não pode satisfazer.

José Martins Catharino (1972, p. 47), neste sentido, pronunciou: "liberdade e segurança são fôrças produtoras da energia jurídica. A primeira é criadora; a segunda, necessária à sua preservação nas relações sociais. O Direito organiza liberdades". Por isso é tão importante perceber a relação entre liberdade e segurança, como fonte produtora do direito: forças que inspiram o poder legiferante a cingir de obrigatoriedade os interesses simples.

O interesse jurídico distingue-se do interesse simples na medida em que aqueles têm seu conteúdo axiológico (valores) preestabelecidos em lei enquanto os interesses lato sensu possuem carga valorativa ampla, variável à mercê do arbítrio das pessoas (MANCUSO, 1997, p. 18). Entretanto, não é a lei de per si o fator de caracterização de um interesse jurídico, este considerado em sua respeitabilidade. É o Estado e o seu poder de polícia que imprime a marca distintiva dos bens jurídicos em relação aos bens morais.

Segundo Max Weber (2004, p. 34), é o Estado que, organizado como "empresa com caráter de instituição política", através de seu quadro administrativo, "reivindica com êxito o monopólio legítimo da coação física para realizar as ordens vigentes." Em última instância, a segurança, ou garantia do respeito aos interesses jurídicos, só é eficaz em virtude da coação exercida pelo referido ente, mediante a imposição das sanções positivadas no preceito secundário da norma.

O interesse jurídico, portanto, surge do reconhecimento da importância que determinadas coisas e situações têm para o homem, assumindo o Estado o ônus de garantir a fruição destes valores pelas pessoas, quer individualizadas, quer organizadas em grupos.


3. A tutela dos interesses individuais e transindividuais e o volume tridimensional do princípio da dignidade

Anteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988, e mais especificamente, sob a vigência do Código Civil de 1916, a tutela jurídica se voltava quase exclusivamente aos interesses subjetivos, de ordem patrimonial. A este respeito, Orlando Gomes expressou:

Os direitos subjetivos, assim disciplinados, pertencem à categoria geral dos direitos pessoais, que se opõe à dos direitos reais. Conquanto não a esgotem, constituem a mais importante de suas subdivisões, distinguindo-se das outras pela patrimonialiade.(GOMES, O., 2007, p. 5).

O direito subjetivo, consoante o pensamento de Tércio Sampaio, constitui uma classe de interesses jurídicos, sendo integrado pelos direitos pessoais e reais. Seus elementos constitutivos resumem-se a basicamente três: o primeiro é o sujeito; o segundo, o conteúdo do direito, compreendido como a "faculdade específica de constranger o outro, no caso dos direitos pessoais, ou de dispor (gozar ou usar a coisa) sem turbação de terceiros, no caso dos direitos reais"; e o terceiro, o objeto do direito, que no caso dos direitos reais é a coisa, e, em se tratando dos direitos pessoais, é o interesse jurídico (FERRAZ JR., 2003, p. 153).

Já para Rodolfo Mancuso, os direitos subjetivos aglutinam posições de vantagem ou prerrogativas, passíveis de integração no patrimônio do indivíduo, visto que "esses direitos subjetivos soem vir acompanhados por uma sanção previamente estabelecida para o caso de eventual afronta ou desconhecimento por parte de terceiros ou do próprio Estado" (MANCUSO, 1997, p. 64).

O ordenamento jurídico pátrio, contudo, não tutela apenas o patrimônio das pessoas naturais ou jurídicas isoladamente consideradas. Desde a edição da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, os interesses de dimensão coletiva foram alvo de proteção legal, embora sua definição somente veio a ser realizada pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

No entanto, as Constituições precedentes à de 1988 não lograram superar o modelo individualista-patrimonial, negligenciando o caráter fundamental dos direitos coletivos em sentido amplo. A nova Constituição Federal é que operou o "giro copernicano" no enfoque sobre as relações jurídicas, concedendo tratamento específico aos interesses de grupo e ao patrimônio social ou da humanidade.

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Nesse sentido, Carlos Henrique Bezerra Leite (2008, p. 44), afirma que a Constituição Federal de 1988 instituiu cinco espécies de "direitos e garantias fundamentais", a saber, os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade os direitos políticos e os direitos relacionados aos partidos políticos e à filiação a estes.

Para fins didáticos, a Doutrina constitucionalista costuma dividir os direitos fundamentais em três momentos genéticos distintos: os direitos de primeira geração (liberdades públicas), os direitos de segunda geração (direitos sociais) e os direitos de terceira geração (direitos transindividuais). Conquanto se prefira denominar direitos de três "dimensões" em lugar de "gerações", prefere-se aqui utilizar o termo gerações, deixando a expressão dimensão para tratar das dimensões individual, coletiva e difusa dos interesses jurídicos, como se explicará adiante.

Os direitos de primeira geração foram reconhecidos como direitos de liberdade e igualdade dos indivíduos perante a lei, caracterizando-se pela oponibilidade em face do Estado, cuja atuação passa a ser estabelecida através de limites claros. Sua positivação foi acompanhada pelo constitucionalismo moderno, movimento que visou ao estabelecimento de uma "técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos", e que questionou "nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma forma de ordenação e fundamentação do poder político" (CANOTILHO, 2003, p. 51-52).

Os direitos de segunda geração, direitos sociais, embora corram o risco de serem confundidos com direitos coletivos, não transcendem a esfera individual, consistindo em prestações devidas pelo Estado ao indivíduo, colimando a satisfação da igualdade substancial. Sua gênese foi alavancada pela questão social, ou seja, pelos anseios não atendidos pela igualdade formal, nem pelo Estado mínimo. Por este motivo, não devem ser chamados de segunda dimensão: têm a natureza de direito subjetivo, integrando o patrimônio individual.

Gilmar Ferreira Mendes (2008, p. 234), corroborando o que se acaba de expor, sublinha que

os direitos de segunda geração são chamados direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividades, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos tem por titulares indivíduos singularizados.

Os direitos de terceira geração, enfim, integram duas novas dimensões da existência do homem na sociedade. Seu conteúdo é representado por interesses pertencentes a classes, grupos ou categorias (interesses coletivos) e aqueles pertencentes a toda a sociedade (interesses difusos).

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, parágrafo único, incisos I e II, define os interesses ou direitos difusos como "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato"; e os direitos coletivos como "os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base".

Para Gilmar Ferreira Mendes, "os direitos chamados de terceira geração peculiarizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos" (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 234). A sua tutela pelo Estado significa a garantia da dignidade do homem ao estender sua personalidade à formação de coletividades determinadas, sendo esta a dimensão coletiva da existência humana, bem como a garantia da dignidade do homem como integrante de toda a sociedade ou do gênero humano, dimensão difusa da existência.

Os interesses difusos concernem, pois, aos valores cujo titular é indeterminado, integrando o patrimônio social ou humano. Dizem respeito aos interesses de pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato, mas também ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, entre outros. O patrimônio constituído por tais bens e valores, por vezes, é insuscetível de avaliação pecuniária, constituindo um patrimônio imaterial.

Conclui-se, portanto, o tratamento constitucional do homem como um valor em si não implica a linearidade do princípio referido no art. 1º, inciso III, da CF/1988, não se resumindo à orientação do patrimônio material da pessoa, nem à orientação imediata dos direitos da personalidade. Ao contrário, uma mesma situação fática pode colocar em jogo interesses individuais e coletivos, cuja tutela efetiva em última instância a proteção da dignidade humana.

Por tal razão, é correto afirmar que o princípio em tela irradia de seu núcleo, a um só tempo, três vetores. Por exemplo, de um mesmo ato ilícito pode resultar um dano à sociedade, a grupos determinados e a indivíduos diretamente envolvidos na situação. Neste caso, o princípio informa a proteção de três dimensões de interesses, incorporando o volume tridimensional. [01]


4. O dano segundo a teoria do interesse

A segurança jurídica, no ordenamento brasileiro, tem o status de um valor situado entre os princípios norteadores de todo o direito, objetivando a garantia da liberdade através de sua própria limitação. Esta limitação responde pela conformação dos interesses socialmente relevantes, direcionando as condutas dos sujeitos de direito ao respeito dos interesses alheios.

Como apresentado no tópico anterior, o princípio da alteridade conduz a concepção de dignidade da pessoa humana à superação do viés individualista, de maneira a assumir o volume das três dimensões de interesses ou direitos estudados no capítulo precedente, quais sejam, os individuais, os coletivos stricto sensu e os difusos. Neste aspecto, o respeito ao interesse alheio passa a ser o respeito ao interesse externo, uma vez que o seu titular nem sempre será identificado como indivíduo.

Com o desrespeito a um interesse externo surge o dano. Tradicionalmente, o vocábulo dano, derivado do latim damno, denota o "mal ou ofensa que tenha uma pessoa causado a outrem, da qual possa resultar uma deterioração ou destruição à coisa dele ou um prejuízo a seu patrimônio" (SILVA, D. P., 2007, 408).

Ocorre que o conceito que associa o dano à redução do patrimônio material, a uma perda financeiramente aferível, é insuficiente, não conseguindo abarcar sequer as perdas de lucros futuros e certos (situação dos lucros cessantes) (PAROSKI, 2010, p. 35).

Por isso, no intuito de superar a teoria da diferença entre os estados patrimoniais, ocasionada pelo dano, erigiu-se a teoria do interesse. Esta foi a teoria que forneceu as bases científicas para que a reparação do dano moral viesse a ser reconhecida pelas legislações do século XX.

O processo de construção da teoria do interesse foi descrito por Wilson Melo da Silva (1999, p. 311-329), ao analisar o pensamento de juristas como Rudolf Von Ihering, Giorgio Del Vecchio, Clóvis Beviláquia, Edmond Picard e Icilio Vanni. Em seu estudo, Wilson Melo concluiu que a limitação do "conceito jurídico de dano" aos bens materiais estaria intimamente ligada à precariedade do "conceito jurídico de bem". Assim, em se ampliando conceito jurídico de bem e sendo identificado o seu lugar na anatomia do direito subjetivo, a noção de dano se avolumaria, de modo a açambarcar a ofensa ao patrimônio ideal.

Nesta senda, observando o magistério de Edmond Picard (1942, p. 47, § 42º apud SILVA, W., 1999, p. 313-314), o autor ressaltou que cada uma das camadas da existência humana – a existência psíquica e a física do indivíduo – pode ser objeto do direito, sendo o individuo seu titular. Os bens imateriais, como integrantes de uma das camadas existenciais do eu seriam, sem dúvida, objeto dos direitos que este sujeito dispõe ao lado de seus bens materiais ou econômicos.

Não obstante a grande contribuição que os citados juristas legaram à contemporaneidade, o evento determinante para a tutela dos interesses imateriais, através da reparação dos danos morais, foi o embate teórico entre Rudolf Von Ihering e Friedrich Carl von Savigny no século XIX.

Mauro Vasni Paroski (2010, p. 67-69) acentua os marcos principais deste embate. De um lado, Savigny mantinha-se contrário à reparação do dano moral puro, por entender que os bens imateriais se encontravam fora do comércio. Deste modo, prendendo-se à inalienabilidade destes bens, sustentava a impossibilidade de tais bens tornarem-se objeto de relações obrigacionais. Em último lugar, Savigny aduzia a dificuldade de prova do dano moral em face da ausência de critérios que permitissem a mensuração da dor sofrida pela vítima, qualificando-se a fixação da indenização pelo juiz como arbitrária.

De outro lado, Rudolf Von Ihering trouxe à discussão a tese de que o dano moral deveria ser indenizado, tendo em vista afetar um interesse lícito albergado pelo direito. Nesse passo, o patrimônio individual protegido pela lei seria integrado não só por bens materiais, mas aquilo que a pessoa é e, ao mesmo tempo, pelo que ela tem; ou seja, pelo conjunto de bens imateriais - a integridade física e psíquica e a honra – e pelas relações com as coisas e com os outros.

A alegação de não equivalência entre a dor e a reparação do dano moral também foi refutada por Ihering. Para ele a reparação do dano não se realizaria somente com o retorno ao estado anterior do patrimônio material, mas pela compensação da dor através da promoção de prazeres que a pudessem reduzir ou conduzir a vítima a esquecê-la.

A preponderância do pensamento de Ihering se fez presente no Brasil, inicialmente na Doutrina, até que a Constituição Federal de 1988 veio a consagrá-la. Com a nova ordem constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana foi posto como fundamento da República Federativa do Brasil, consubstanciando uma cláusula aberta da reparação integral de todos os interesses integrantes do núcleo normativo deste princípio.

Em razão disto, inútil se tornou qualquer discussão acerca da natureza do interesse ou do dano (se material ou moral) para a responsabilidade do ofensor, porquanto os direitos fundamentais previstos em seu art. 5º, inclusive os concernentes a bens insuscetíveis de avaliação pecuniária, foram tratados, pelo § 1º deste artigo, como normas de aplicabilidade imediata, oponíveis erga omnes. Ademais, a Carta Magna consagrou a reparação dos danos morais expressamente, ao se referir à indenização pelo dano à imagem (art. 5º, inciso V) e pelo dano moral decorrente do desrespeito à privacidade, à intimidade e à honra (art. 5º, inciso X).

A responsabilidade pelos danos morais foi ratificada expressamente pelo novo Código Civil brasileiro, editado em 10 de janeiro de 2002. Este código se referiu aos danos imateriais em seu artigo 186, ao determinar que "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

Acolhido o dano moral contra a pessoa, valendo salientar que a reparabilidade de tais danos também foi estendida nas situações envolvendo pessoa jurídica ofendida, os bens imateriais foram inequivocamente aceitos como integrantes do patrimônio, e por isso alcançaram a posição de objeto de compensação, em caso de lesão. Todavia, alguns entraves persistiram em relação à amplitude do que poderia ser considerado uma "categoria de danos imateriais".

É importante notar que dano moral individual (seja contra a pessoa natural, seja contra a pessoa jurídica) é apenas uma espécie de lesão a interesses fora do comércio, ou seja, um tipo de agressão a bens cuja avaliação econômica é impossível. De fato, somente com a construção do conceito de dano moral coletivo é que se cogita do instituto do dano imaterial como gênero do qual os danos imateriais individuais e coletivos fazem parte.

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Sobre o autor
Antônio Carlos Barros de Andrade Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE FILHO, Antônio Carlos Barros. Dano imaterial: a compreensão dos interesses jurídicos e de sua lesão segundo volume tridimensional da dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3115, 11 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20826. Acesso em: 29 mar. 2024.

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