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O observatório judiciário de Ronald Dworkin.

O império do Direito e o conceito de integridade

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13/01/2012 às 17:52
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7 O que não aconteceu no Poder Judiciário

Outro brilhante estudo sobre o conceito de integridade foi publicado por Amanda Pinto Neves (2011), intitulado "Caso Richarlyson: análise da atuação do juiz na decisão judicial segundo a perspectiva da teoria do direito de Ronald Dworkin". Nesse estudo a autora descreveu a ausência empírica do conceito de integridade e os motivos alegados pelo juiz para resolver o episódio que envolveu a denúncia contra o dirigente do time Palmeiras (José Cyrillo Junior) de que ele teria cometido crime de injúria contra a honra do jogador Richarlyson que, por sua vez, sentiu-se ofendido publicamente com as insinuações feitas pelo "cartola" contra a sua pessoa, no sentido de que seria supostamente um jogador homossexual. O caso foi parar na 9ª Vara Criminal de São Paulo, no ano de 2007.

De acordo com a análise da autora Amanda Neves, o juiz diante desse caso tomou uma "atitude paupérrima e transbordante de preconceito", fundamentando sua sentença em argumentos moralistas, acompanhados de provérbios populares, ironias, estereótipos e outros recursos ilustrativos extraídos do senso comum que mostram que não houve objetividade jurídica. Na avaliação dessa mesma autora, a sentença carregou, "um inconfundível caráter pragmático, já que não se prende a qualquer argumento baseado em decisões anteriores ou normas legalmente estabelecidas, mas nas concepções pessoais do magistrado, que se limita a afirmar que a queixa-crime não reúne condições para ser deferida, iniciando uma série de argumentos claramente homofóbicos". Na decisão proferida para o caso em análise, o juiz evidenciou a sua concepção pragmática apresentando, por exemplo, os seguintes comentários:

- Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.

- Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.

- Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

A - Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final.

B - Se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados... Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num "TÈTE-À TÈTE". Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro. Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se aquilatar se o querelante é, ou não...

Nesse ponto, observou a autora Amanda Neves que o magistrado eximiu-se de qualquer análise sobre a existência ou não de crime por parte do réu, assim como não se ateve a qualquer estudo ou interpretação jurídica do caso, preferindo expor opiniões pessoais sobre o assunto. Ficou nítido, segundo Amanda Neves, que o juiz não respeitou a objetividade jurídica. Nesse sentido, a autora ressaltou oportunamente que é de suma importância esclarecer que não cabe ao juiz avaliar a suposta significância do caso em relação a elementos como o "futebol brasileiro", sobretudo se neste âmbito esportivo o magistrado considere existir um espaço moral à parte, que não deve - nem pode - admitir a presença de pessoa de orientação diferente a de uma "suposta" inegável maioria. Amanda Neves observou também "que o magistrado utilizou vários e infundados artifícios, como a afirmação, através da letra de um hino de futebol, da virilidade e masculinidade - e não homossexualidade - do futebol".

- Quem se recorda da "COPA DO MUNDO DE 1970", quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.

De acordo com avaliação de Amanda Neves, o magistrado ainda tentou sustentar seus argumentos opinando que, tendo em vista a existência de atletas de grande destaque no futebol, seria "impossível que qualquer torcedor pudesse ter como ídolo um homossexual", sendo por isso "mais aconselhável" aos jogadores que possuem tal orientação sexual afastar-se deste esporte, evitando desconforto aos colegas e aos torcedores.

O juiz ainda tentou amenizar a colocação afirmando que não seria de todo aos dirigentes impossível que um homossexual jogasse futebol, desde que o fizesse apenas em times inteiramente compostos por colegas "em sua mesma condição", e somente enfrentasse times que concordassem em fazê-lo.

Nesse ponto, Amanda Neves avaliou em seu estudo que o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho afastou-se ainda mais da concepção de direito como integridade na medida em que desconsiderou os princípios morais presentes na comunidade e no próprio direito positivado, princípios esses que se reportariam, especialmente, à igualdade e à inclusão que não podem ser limitadas por quaisquer critérios de cor de pele, gênero, orientação sexual, credo, dentre outros aspectos.

Se adotássemos aqui a integridade, escreveu Amanda Neves, o corpo da sentença exigiria coerência com os princípios, o que obviamente não pode ser praticado numa decisão que busca excluir e desigualar os direitos das pessoas.

Além de não se ater aos princípios e desconsiderar a objetividade como um dos elementos centrais da decisão judicial, o magistrado cometeu ainda uma falta bastante grave, segundo Amanda Neves, pois ele desconsiderou o pressuposto do direito como completeza de Ronald Dworkin: a concepção da decisão como parte de um romance em cadeia.

Conforme definiu Dworkin, os juízes são autores e críticos de um romance composto por todas as decisões proferidas anteriormente, e suas decisões servem também de parâmetro para o futuro. Desse modo, quando o juiz decide, além de levar em consideração o devido processo legal, ou seja, o procedimento legalmente previsto, a equidade, e a justiça, ele também precisa analisar o precedente, ainda que afaste-se dele.

Todavia, além de distanciar-se do direito como integridade e adotar uma atuação visivelmente parcial (não objetiva) e pragmática, fundamentando a decisão em hinos de futebol e ditos populares como "cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho", o magistrado também cometeu outro sério erro, o abuso do direito, conforme salientou textualmente Amanda Neves. O magistrado, que deixou de lado a real questão, isto é, a existência de injúria por parte do diretor do Palmeiras, preferiu tratar de uma suposta exigência de masculinidade e virilidade no futebol, fundamentando-a com argumentos duvidosos como ditos populares, hinos de clubes de futebol, além de afirmar textualmente: "é assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de magistrado, digo!" num evidente descaso à objetividade como elemento central da decisão, substituindo-a pela vontade do aplicador.

Amanda Neves concluiu seu estudo lembrando que o pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos concretos pré-fabricados; o pragmatismo adota o ponto de vista de que as pessoas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque uma legislação assim o estabeleceu ou porque uma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tinham tal direito (DWORKIN, 2010, p. 186).

Questionou nesse sentido Ronald Dworkin que se os direitos e deveres indubitavelmente fazem parte da realidade jurídica na qual vivemos, o pragmatismo poderia ser usado como interpretação possível?

O autor esclareceu que, na prática, essa corrente não é tão radical, pois os pragmáticos defendem que os juízes devem agir como se as pessoas tivessem direitos, isto é, para o bem da civilização admitem que a legislação - e só ela - pode estabelecer normas. E os magistrados, para evitar o próprio fracasso do modelo pragmático, não podem descartar as leis apenas pelo fato de que não as aprovam.

Ao caracterizar as concepções de direito apontadas por Dworkin (convencionalismo, pragmatismo e direito como integridade), Amanda Neves concluiu sua brilhante publicação avaliando que o magistrado da sua pesquisa proferiu uma decisão tipicamente pragmática, sem levar em consideração nem o precedente, nem os princípios da comunidade política, tampouco aqueles expressos no texto constitucional, especialmente igualdade e não-exclusão de qualquer indivíduo em razão de qualquer critério.

A primeira vantagem da visão pragmática refere-se ao fato de que o pragmatismo não deseja buscar uma suposta intenção original do legislador ou do juiz que proferiu uma decisão anterior. Além disso, o juiz pragmático não se sente obrigado a considerar e a reproduzir sempre o precedente quando este representa uma decisão obscura ou então quando existe um espaço para divergência entre as semelhanças e diferenças entre decisões passadas e o caso em questão.


8 Discussão

Inerentes a qualquer prática científica, tradicionalmente são encontrados conceitos, teorias e hipóteses que auxiliam o pesquisador a conhecer a realidade social. Historicamente, portanto, é inegável a importância de todos esses recursos na ciência, utilizados para guiar e adaptar as ideias do pesquisador quando ele investiga o seu objeto de estudo.

Da mesma forma notamos que o tipo ideal proposto por Max Weber é uma abstração, uma hipótese da realidade. Diferentemente, porém, de outras hipóteses de trabalho das ciências naturais, o tipo ideal weberiano não se presta ao teste da refutação porque é uma hipótese exagerada, uma utopia criada não para ser testada, mas para inspirar, guiar e facilitar a compreensão do pesquisador sobre algum fenômeno empírico dentro da complexidade social.

O tipo ideal weberiano não é uma meta epistemológica, mas um meio cuja finalidade heurística é proporcionar uma direção prática ao pesquisador para que ele não fique perdido na complexidade dos fenômenos e dos processos exteriores. Obviamente, o tipo ideal nunca será atingido plenamente pelo ser humano, pois caso contrário deixaria de ser um elemento ideal.

Especificamente de acordo com a metodologia de Weber, a construção do tipo ideal representa uma necessidade metodológica do pesquisador, que pretende conhecer a convergência de certos processos e fenômenos num determinado tempo e espaço de forma aleatória ou concentrada, e por isso mesmo precisam ser arranjados ou nivelados estrategicamente numa mesma estrutura ou escala de sensação estabelecida, neste caso, por decisão unilateral do pesquisador.

Por mais complexo que possa parecer, o tipo ideal será sempre uma simplificação da realidade ou dos fenômenos reais porque é uma simulação inventada pelo pesquisador que pode ser, todavia, reutilizada ou não, progressivamente, por outros pesquisadores.

Não é tarefa do tipo ideal weberiano, por exemplo, estabelecer uma relação causal entre elementos ou fenômenos dentro ou fora do modelo concebido, mas sim fixar uma relação de interdependência entre eles que só ganha significado e validade científica a partir da ação social dos indivíduos concretos.

Por se tratar de uma utopia criada pela intuição do pesquisador que pressente a existência deste e daquele fenômeno no cotidiano, o tipo ideal precisa pisar no terreno da ciência empírica; caso contrário, o pesquisador fica preso a um credo pessoal ou imaginativo, não servindo nada em favor do progresso do conhecimento científico.

No livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, encontramos todas essas características aplicadas na pesquisa histórica. Logo no começo, Weber declarou que não tem meios objetivos de medir exatamente ou aproximadamente até onde foi a relação entre a ética protestante e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por isso mesmo, ele optou pela expressão influência que representa algum grau intuitivo de relação de convergência entre vários aspectos favoráveis ao capitalismo, além da religião, como a expansão do monetarismo, o desenvolvimento tecnológico, a racionalidade cultural, as grandes navegações, etc.

Em outras palavras, Weber não considerou que a religião determinou o surgimento do capitalismo, mas na verdade influenciou a sua ocorrência o que acabou sendo observado melhor na história através do tipo ideal da época - o empreendedor cristão - sintetizando teoricamente uma série de atributos e práticas ideais favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo em determinado setor do cotidiano.

O tipo ideal de empreendedor capitalista condenava a ostentação dos gastos desnecessários, o misticismo e a arrogância social. Além disso, motivou os capitalistas a fazerem investimentos na comunidade acreditando que desta forma estariam servindo melhor à vontade de Deus, contribuindo para a salvação dos homens através da valorização do trabalho em contraposição à prática tradicional do ócio contemplativo dos monastérios que serviam como exemplo de virtude espiritual "fora do mundo".

Na metodologia de Weber, o tipo ideal serve como ferramenta de autocontrole do pesquisador a fim de obter uma referência extrema sobre algum fenômeno, comportamento, processo ou objeto que circula aqui, acolá, no cotidiano, facilitando a localização de algum fenômeno estranho ou volátil na realidade social.

Considera-se, dessa forma, que os fenômenos não são necessariamente fatos puros e isolados na sociedade, mas uma combinação de impressões e de múltiplas relações que não existem prontos na realidade, visto que são construídos diretamente pela percepção e vivência das pessoas e principalmente do pesquisador social.

Por exemplo, o tipo ideal de empreendedor cristão da Reforma protestante não existiu, fisicamente, em lugar nenhum, todavia, motivou os protestantes a agirem nessa direção. Ao mesmo tempo, a realização desse tipo ideal cristão exigiu a convergência de uma série de relações e elementos, por exemplo, mobilizando o interior da família, o púlpito das igrejas, o trabalho na comunidade, a espiritualidade pessoal e assim por diante.

É justamente no processo empírico que o tipo ideal proporciona a sua contribuição científica, comprovando a sua presença ou ausência na prática social por meio de gradações e variações diversas, outras vezes, longe ou perto demais da utopia desenhada pela intuição do pesquisador.

Desse modo, o tipo ideal funciona como espécie de termômetro, que é uma tecnologia adequada para medir a temperatura dos corpos, neste caso, especificamente, dos corpos sociais que podem manifestar grau zero, mínimo, ou máximo de ocorrência do tipo ideal na realidade como já sugeriu, semelhantemente, o esquema da gradação de Kant em sua obra Crítica da razão pura.

Outra característica importante do tipo ideal é que ele funciona como meio ou instrumento de comparação e de medição dos fenômenos. Desse modo, possibilita duas tarefas nobres das ciências sociais: a previsão e o diagnóstico dos fatos.

Ao indicar o que poderia acontecer se um grupo de fenômenos ou variáveis alcançassem o grau extremo, o tipo ideal realiza prognósticos inéditos que dificilmente poderiam ser obtidos na experiência social do senso comum, tendo em vista a real pulverização dos fatos bem como a dificuldade de se manipular o comportamento humano na tentativa de se conhecer o futuro com clareza e probabilidade.

De maneira complementar, o tipo ideal permite fazer o diagnóstico coerente sobre determinado setor da realidade, uma vez que ele organiza e atribui sentido ao que está sendo observado no trabalho de campo indo contra ou a favor do extremo ideal do modelo escolhido pelo pesquisador.

8.1 O juiz ideal da obra O império do direito

Hércules é um tipo ideal de juiz. É metódico, criterioso, reflexivo, paciente e bem informado a respeito do sistema jurídico. Em outras palavras, é declaradamente um jusfilósofo, juspolítico e jusmoralista predeterminado a produzir a melhor metodologia de releitura constitucional da lei dentro do Poder Judiciário usando uma lista de critérios previamente agendados por Ronald Dworkin.

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8.1.1 Isolando o fenômeno kantiano

Aqui, acolá, progressivamente os juízes olham para si próprios e para o mundo, descobrindo subjetivamente que possuem ou deveriam ter uma consciência moral sobre aquilo que proferem como sentença no Poder Judiciário. Ao olharem para si mesmos, certos juízes descobrem que existe uma tendência kantiana mínima escondida nas profundezas de sua personalidade moral. Eles redescobrem, por exemplo, que possuem liberdade e que podem usá-la por Lei; redescobrem que têm responsabilidade, e que podem e devem exercê-la de acordo com a constituição federal; redescobrem, além disso, que são seres autônomos e não autômatos ou máquinas jurídicas; reconhecem também que podem se autogovernar e dirigir a ordem pública do Estado com maior grau de responsabilidade, dignidade e autonomia política, compartilhando essa tarefa com o Executivo e o Legislativo.

Em outras palavras, cada vez mais, aqui, acolá, os juízes tomam consciência de suas potencialidades como sujeitos morais produzindo máximas de vontade ou de ação, estranhamente dentro dos processos judiciais e do direito como um todo.

No campo da moralidade, Kant ( no livro Crítica da razão prática, Livro primeiro, 2004, p. 39) considerou sabiamente que:

É da lei moral que temos consciência imediata (tão logo formulamos por nós mesmos máximas de vontade); é ela que se oferece primeiramente a nós e nos conduz precisamente ao conceito de liberdade, enquanto a razão a representa como um princípio de determinação que nenhuma condição sensível pode sobrepujar, e que é inteiramente independente dessas condições.

O desafio do agente moral, segundo o que afirmou Kant, consiste em saber discernir o bem do mal; a veracidade da falsidade; a justiça da violência. Compete ao dever estabelecer e cultivar o sentimento moral, constituindo um sentimento individual de satisfação consigo mesmo. De acordo ainda com Kant (Crítica da razão prática, 2004, p. 47):

Ordenar, porém, a moralidade sob o nome de dever é inteiramente racional, porque nem todos obedecem de bom grado aos seus preceitos, se neles vêem oposição às suas inclinações; e no que concerne às medidas que devem ser tomadas acerca do modo de poder fazer obedecer-se a esta lei, não deverão aqui ser ensinadas, pois a esse respeito, cada qual pode o que quer.

Completando esse raciocínio, Kant afirmou que na idéia da razão prática da moralidade existe a possibilidade de transgressão da lei moral, consequentemente, existe a possibilidade do castigo, a sua punibilidade. Em todo castigo, entretanto, deve haver justiça, que é o essencial neste caso. Porém, a consciência de cada um exerce no modelo kantiano - que é ahistórico e universalista - esse papel regulador e fiscalizador entre os homens. Por exemplo, a regra da faculdade de julgar sob as leis da razão pura prática diz o seguinte: - Pergunta a ti mesmo se, quanto à ação que pretendes poderias considerá-la possível, mediante a tua vontade, supondo-se que ela deveria ocorrer segundo uma lei da natureza da qual tu próprio fazes parte (KANT, Crítica da razão prática, 2004, p. 79).

Um dever importante no trabalho crítico da consciência é o respeito em relação aos outros. O homem deve ter como santa e inviolável a humanidade, e não tratar o outro como meio, mas como fim. Segundo Kant (Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 61):

Esse princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como fim em si mesma [...] não é extraído da experiência – primeiro pela sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral, sobre o que nenhuma experiência tem alcance para determinar seja o que for; segundo, porque nele a humanidade se representa não como fim dos homens (subjetivo), isto é, como objeto de que fazemos por nós mesmos efetivamente um fim, mas como fim objetivo, quais forem os fins que tenhamos em vista, constitui como lei a condição suprema que restringe todos os fins subjetivos, e que por isso mesmo, só pode derivar da razão pura.

No modelo kantiano, a lei moral não é propriamente a doutrina que nos ensina como nos tornarmos felizes, mas como devemos nos tornar dignos da felicidade. Apesar de cada um se auto-identificar como sujeito livre, a moralidade estabelece suas normas de obediência através do dever dentro de uma comunidade universal de princípios.

Como critério de avaliação da consciência moral de cada um isoladamente [visto que não se inclui aqui nem a história nem a sociologia das ideias], Kant apresentou as seguintes máximas universais que funcionariam como parâmetros abstratos de conduta (encontradas no livro Fundamentação da metafísica dos costumes...):

- Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal.

- O homem não é uma coisa, um objeto passível de ser usado como simples meio.

- Não posso dispor do homem para mutilar, degradar ou matá-lo.

- Não é justo desejar aos outros aquilo que detestamos ou repudiamos.

- Não basta apenas evitar o confronto com a humanidade, é preciso que nossas ações concordem com esse princípio universal.

- O ser racional deve se considerar por todas as máximas de sua vontade, o legislador universal para julgar a si mesmo e às suas ações desse ponto de vista, conduz a outro conceito bastante fecundo que se lhe relaciona e que é o de reino dos fins., ou seja, no reino dos fins tudo tem um preço e uma dignidade.

- A moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade.

- A própria legislação que determina todo o valor, por isso mesmo, deve ter uma dignidade, ou seja, um valor incondicional, incomparável, para o qual só a palavra respeito confere a expressão conveniente da estima que um ser racional deve lhe tributar.

- A autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional.

- O dever é uma obrigação prática.

- Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço não admite qualquer equivalência, compreende aqui uma dignidade.

8.1.2 Isolando o fenômeno existencialista

Aqui, acolá, progressivamente,inúmeros juízes tentam marcar a sua presença no sistema considerando que o futuro é uma projeção do presente; e o passado igualmente uma lembrança do presente.

Reassumindo a sua condição política de sujeito e não mais admitindo ser objeto massificado e despersonalizado do sistema conforme estipulam o convencionalismo e o positivismo jurídico, uma série de juízes questiona, cada vez mais, a massificação administrativa do direito e avalia criticamente que este fenômeno é um perigo social da Modernidade que a qualquer momento pode transformar o servidor público em objeto puro do poder.

Cada vez mais, aqui, acolá, certos juízes aproximam-se da filosofia existencialista e buscam promover a "abertura" do direito e do Poder Judiciário para o mundo, num processo nitidamente semelhante ao que pensou Heidegger, na obra Ser e tempo.

Os juízes buscam a autonomização de suas atividades judiciais estimulando a realização de um debate com o outro diferente a respeito do direito e da política. Para esses juízes, o essencial do ser é exatamente "estar no mundo", marcando a sua presença conscientemente engajada na realização moral da justiça.

A partir do que analisou Hannah Arendt, por exemplo, a respeito da situação do nazista Eichmann no Tribunal de Jerusalém, na década de 1960, os juízes agora conhecem os efeitos perniciosos causados pela massificação administrativa; e sabem que este fenômeno pode ressurgir em qualquer momento do século XXI, inclusive no Mercado que em nome da modernidade e da eficiência é capaz de marginalizar e de excluir pessoas incompetentes e ineficientes, e por extensão, de cometer novos tipos de atrocidades contra a dignidade da pessoa humana.

Conforme ressaltou o analista Celso Lafer (2003, p. 111), nas sociedades burocráticas modernas continuam a persistir soluções sociais, políticas e econômicas que mesmo depois dos regimes totalitários terem ficado para trás, ainda ameaçam a vida humana a se tornar uma coisa descartável. Entre outras tendências da atualidade, destacam-se a ubiquidade da pobreza e da miséria, a ameaça do holocausto nuclear, a violência, os surtos terroristas, a limpeza étnica e os fundamentalismos intolerantes. A palavra de ordem é agora aumentar a consciência pessoal a respeito da responsabilidade de cada um no mundo. Essa responsabilidade implica, por sua vez, uma atitude crítica em relação ao tempo (ver BOENO, 2009).

Segundo Heidegger, a história e a utopia são construções do presente. Por isso mesmo, Heidegger considerou que não se pode mais conceber que o indivíduo continue levando uma vida "inautêntica", escondendo a sua essência pessoal em ficções do passado e também nas utopias do futuro, ou ainda expressando a sua identidade de modo impessoal (a gente, nós, os outros, a maioria, todo mundo, a natureza, o destino, etc.).

Contra o risco da massificação administrativa, onde o funcionário perde sua capacidade crítica e apenas obedece às ordens superiores tendo em vista que assim manda a lei, Hannah Arendt propôs alguns remédios institucionais (BOENO e MONTARROYOS, 2009).

Primeiramente, em lugar de submeter os indivíduos a uma camisa-de-força, mediante padrões uniformes dogmáticos, o direito deve abrir espaço para as preferências e personalizar os métodos jurídicos. Semelhantemente, o modelo de Ronald Dworkin também pede a abertura do direito. Nesse sentido, de acordo inclusive como que afirmou Paulo Nader (2005, p. 235), esse amoldamento do fenômeno jurídico às condições individuais constitui propriamente a equidade do existencialismo jurídico, uma adaptação da norma ao figurino do caso concreto; a justiça do fato real.

O segundo remédio apresentado por Hannah Arendt contra a massificação é garantir a expressão dos direitos individuais e coletivos respeitando-se a livre associação e o direito de resistência contra os abusos e opressão do Estado praticados contra a dignidade da pessoa humana (BOENO e MONTARROYOS, 2009). Nesse aspecto, deve ser garantido o direito da informação, motivando as pessoas a realmente fazerem críticas públicas contra as fraudes, mentiras e trapaças dos políticos. Segundo Hannah Arendt, as mentiras e os segredos corrompem o espaço público. A transparência do público, completa Celso Lafer (2003, p. 120), é uma condição básica para o juízo e para a ação humana existirem numa "autêntica" comunidade política (BOENO, 2009).

Outro remédio apontado por Hannah Arendt é nitidamente kantiano (BOENO e MONTARROYOS, 2009). Devemos recuperar a máxima jurídica desse filósofo quando ele afirmou que: "o direito é o conjunto de condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos demais, de harmonia com uma lei universal de liberdade" (ver BOENO 2009; BOENO e MONTARROYOS, 2009). Essa recomendação existe igualmente na obra O império do direito, quando seu autor defende o direito como espaço de debates aberto necessariamente à multivocalidade da opinião pública e das autoridades.

8.1.3 Isolando o fenômeno hermenêutico

Aqui, acolá, cada vez mais aparecem juízes virtuosos querendo refletir, imaginar, argumentar e opinar mais sobre o que deveria ser feito de melhor para o cidadão e os chamados grupos vulneráveis viverem com dignidade, igualdade, fraternidade, liberdade e responsabilidade no espaço público e democrático.

Diante desse fenômeno histórico, ético e sociológico, certos juízes super-utilizam os princípios que são estruturas pensantes favoráveis à prática da comunicação social aberta e imaginativa; diferentemente das regras ou "réguas" sociais como diria Aristóteles (ver Ética a Nicômaco) que se caracterizam como estruturas válidas determinantes do que deve ou não ser obedecido e também dos critérios, que são estruturas praticantes e utilitaristas relacionadas com a efetividade do direito.

Através dos princípios constitucionais, especificamente, a prática argumentativa de certos juízes virtuosos vai constituindo, aqui, acolá, silenciosamente, uma comunidade principiológica entrelaçando os princípios fundamentais da constituição federal, compondo assim uma grande rede prático-transcendente ou comunidade de princípios.

Aumentando a necessidade histórica do juiz virtuoso de ser criativo através da arte de argumentação, reinterpretando os princípios constitucionais básicos (liberdade, igualdade, fraternidade, responsabilidade, legitimidade e dignidade), a hermenêutica jurídica ganha popularidade dentro e fora do Poder Judiciário como instrumento de comunicação social.

Habermas afirma nesse sentido que é no discurso que ficam postos, de maneira virtual, todos os interesses e motivos característicos da interação normal dos cidadãos. A afirmação é considerada verdadeira ou falsa quando o discurso teórico conduz a um consenso quanto à sua verdade ou falsidade; por outro lado, a norma é considerada legítima (ou ilegítima) quando o discurso prático desemboca num consenso quanto a tal legitimidade ou ilegitimidade (FREITAG e ROUANET, 1980, p. 19). Entretanto, o desafio para Habermas neste ponto é distinguir o falso do então verdadeiro consenso. O autor sabe que, na prática, os participantes do discurso podem julgar que o consenso obtido foi válido, e não obstante tal convicção pode revelar-se ilusória.

Na tentativa de visualizar, portanto, a ocorrência de discursos considerados automaticamente verdadeiros, Habermas propôs um modelo de "situação lingüística ideal", onde a comunicação não é perturbada nem por efeitos externos contingentes, nem por coações resultantes da própria estrutura da comunicação (ibid., p. 19).

A situação linguística ideal, segundo Habermas, exclui deformações sistemáticas da comunicação. Pressupõe ainda que cada interessado participa do discurso e que todos eles têm oportunidades idênticas de argumentar, dentro de sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e de refutar afirmações, interpretações e recomendações. Nesse mesmo modelo, são eliminadas todas as formas de coação externa e interna, permitindo uma "ação comunicativa pura" (ibid., p. 19).

Em síntese, no modelo proposto por Habermas, os homens não podem nem interagir, nem comunicar-se discursivamente senão na perspectiva de uma ordem social não-repressiva (caracterizada pela comunicação e pela situação linguística ideal), a qual, precisamente, não existe na realidade; porém, as antecipações do modelo nos autorizam a definir esse fato como algo possível (ibid., p. 19).

Para Habermas, a teoria consensual da verdade se distancia da epistemologia positivista, que postula uma relação não-problemática com o real.

Verdadeiro não é uma afirmação que corresponde a um objeto ou a uma relação real, mas uma afirmação considerada válida num processo de argumentação discursiva (ibid., p. 19).

A verdade não tem a ver exclusivamente com os conteúdos, e sim com os procedimentos que permitem estabelecer um consenso fundado (ibid., p. 19). A verdade, num certo sentido, confunde-se com as condições formais para alcançá-lo (ibid., p. 20).

Para Habermas, a estrutura da comunicação implica a possibilidade da justificação discursiva de normas (e das instituições que lhes correspondem). Desse modo, podemos dizer, então, que a característica de todas as sociedades que efetivamente se constituíram na história é a de ter obstruído esse processo, seja pela violência física, seja pelas legitimações ideológicas.

A função da ideologia é a de impedir a abertura de discursos práticos: as normas e instituições são objeto de pseudolegitimações (visões de mundo religiosas ou metafísicas) que cumprem a dupla função de impedir que tais normas e instituições sejam tematizadas discursivamente e de se protegerem, elas próprias, contra essa tematização (ibid., p. 20).

O processo de comunicação, cujo desfecho normal deveria ser a problematização discursiva, pára a meio caminho (ibid., p. 21). Nesse caso, a comunicação se obstrui. Todas as sociedades se caracterizam por essa deformação sistemática do processo de comunicação, que Habermas descreveu como um processo análogo ao da neurose.

As ideologias alcançam seu objetivo de impedir a tematização discursiva, excluindo certos temas e motivos inconvenientes da comunicação pública para o sistema de poder, e que poderiam de outro modo levar os indivíduos a promoverem a abertura de discursos problematizadores (ibid., p. 21).

Esses temas censurados são retirados da linguagem, pública e literalmente são excomungados e transferidos para o inconsciente sob a forma de conteúdos alinguísticos ou expressos numa linguagem privatizada, incompreensível para o próprio sujeito.

É assim que Habermas concebeu a terapia como a tentativa de re-simbolizar esses conteúdos banidos, reintegrando-os na linguagem pública. A teoria crítica de Habermas propôs, nesse quadro, interpretações que levem os sujeitos, imersos na falsa consciência, a reconhecer-se em tais construções por processos autônomos de autorreflexão.

A crítica sobre a ideologia é uma espécie de discurso terapêutico (ibid., p. 21). Desse modo, a luta política deve neutralizar a ideologia tecnocrática, lançando luz sobre as vulnerabilidades do capitalismo patrocinando ou ressaltando crises, seja da racionalidade quando o Estado não consegue realizar as tarefas técnicas que a ele se atribui; seja das motivações, que surge nas contraculturas que contestam os valores funcionais para a sobrevivência do capitalismo; seja finalmente das legitimações, quando se vê neste momento a incapacidade da ideologia da ciência e da técnica em sustentar a autoridade do Estado (ibid., p. 23).

Para Habermas, o consenso universal pressupõe um contexto livre de violência e de coação em que todos os integrantes de um discurso possam participar em pé de igualdade. O consenso perfeito, em seu modelo, só pode ser alcançado quando as instituições que canalizam e asseguram comunicação já estiverem liberadas de seus momentos repressivos (ibid., p. 24).

Nas sociedades modernas, pelo contrário, as instituições impedem a formação de um consenso livre: constituem barreiras externas à comunicação desinibida, comparáveis às barreiras internas das estruturas patológicas individuais, segundo o modelo freudiano (ibid., p. 24).

A ideologia tecnocrática, particularmente, tenta impedir a problematização do poder existente. Ela visa não exatamente à legitimação das normas; mas à sua supressão, ou seja, o poder não é legítimo por obedecer a normas legítimas e sim por obedecer a regras técnicas, das quais não se exige que sejam justas e sim que sejam eficazes (ibid., p. 16).

Se os fundamentos do poder não precisam ser tematizados, não é porque repousam sobre uma normatividade legítima, e sim porque não existe a rigor o que legitimar: a lógica das coisas sendo o que é, não pode ser alterada por decisões políticas.

A ideologia tecnocrática é muito mais indevassável que as do passado, porque ela está negando, na verdade, a própria estrutura da ação comunicativa, assimilando-a à ação instrumental (ibid., p. 16). Enquanto a ação comunicativa se baseia numa intersubjetividade fundada em normas, que precisam ser justificadas (mesmo que tal justificação se baseie em falsas legitimações), a ação instrumental se baseia em regras, que não exigem qualquer justificação (ibid., p. 16). Nesse contexto, as decisões práticas que afetam a coletividade são transformadas em problemas técnicos, resolvidos por uma minoria de experts que têm o know-how necessário. Impõe-se, aqui, perversamente, uma despolitização das massas. Essa despolitização passa a ser consequência e requisito da nova forma de dominação legitimada pelo poder de coação da racionalidade técnica (ibid., p. 16).

Para Habermas, a redução das decisões políticas a uma minoria (a nova elite dos tecnocratas) significa, ao mesmo tempo, um esvaziamento da atividade prática em todas as instâncias da sociedade (política, social, e mesmo econômica) incluindo agora a entrada do Estado (instância política), nas duas outras instâncias (social e econômica), que ficam submetidas a uma crescente administração intervencionista (FREITAG e ROUANET, 1980, p. 16).

8.1.4 Isolando o fenômeno democrático

As abordagens que representam a hermenêutica jurídica contemporânea devem muito à contribuição dos trabalhos de Heidegger e Gadamer que propuseram, cada uma seu modo, um conteúdo manifestamente antirrelativista de interpretação do sistema social no sentido de enfrentar o pragmatismo, o utilitarismo, o ceticismo e o positivismo jurídico (ABEL, 2010).

De maneira geral, a hermenêutica jurídica postula que o direito, enquanto ciência prática, não está "blindado" das revoluções pelas quais a filosofia e a linguística passaram no último século XX (ibid.). O principal fundamento da abordagem hermenêutica contra o positivismo, nesse contexto, decorre da "viragem linguística" protagonizada no século XX por Heidegger e Gadamer, respectivamente, nas obras O ser e o tempo e Verdade e método (ibid.). Entretanto, chama a atenção o autor Abel que:

Para aqueles que se imaginam "positivistas" por acreditarem que o Direito deve ser essencialmente restrito aos textos legais (uma concepção tão equivocada e ingênua quanto popular entre os operadores do Direito), a hermenêutica é por vezes tida como uma leitura "liberal", que permitiria um maior protagonismo por parte dos juízes em detrimento dos textos legais (o que é exatamente o que a abordagem hermenêutica combate). Para outros, essa abordagem é eventualmente acusada de "conservadora", pois - ao criticar a discricionariedade judicial - estaria pretendendo que os juízes fossem "impedidos" de interpretar. Em grande parte, essas leituras equivocadas sobre as implicações do approach hermenêutico decorrem de uma má compreensão prévia a respeito do que vem a ser o positivismo jurídico.

De acordo ainda com a análise proposta pelo comentarista e advogado Abel, não é raro no direito pátrio encontrarmos situações de "protagonismo judicial" em que o julgador, valendo-se de uma postura "discricionária e solipsista", ultrapassa as barreiras dos textos legais, imaginando estar encarnando a perfeita antítese do positivismo jurídico - "quando, na verdade, só está confirmando o paradigma contra o qual crê estar lutando" (ibid.).

Além disso, é largamente disseminada a ideia equivocada no ambiente jurídico de que o "grande problema" do positivismo jurídico é que ele comandaria os juízes a ficarem limitados à "letra da lei", quando, de fato, o verdadeiro problema do positivismo jurídico (e essencialmente o alvo preferencial de todos os seus críticos mais qualificados) seria a sua "legitimação da discricionariedade judicial" nos chamados "casos difíceis" (ibid.).

A crítica que se faz ao positivismo jurídico, portanto, não se dirige ao seu suposto "apelo à legalidade", mas sim - pelo contrário - "à autorização que ele dá aos juízes de, em certos casos, estarem desobrigados e desvinculados das leis" (ibid.). Ou seja, se um juiz "x" afirmasse que um caso concreto "y" era um "hard case", o juiz "x" estaria autorizado a dar uma resposta ao caso "y" não com base na lei, mas sim na sua "discricionariedade" (entenda-se: no conjunto de seus "pré-juízos", "pré-conceitos" e opiniões pessoais, retroativamente "fundamentadas" com um mínimo de retórica jurídica que se fizer necessário para tanto).

Contextualmente, de acordo com a análise do advogado Abel, a hermenêutica jurídica, enquanto nova forma de pensar o direito, "decorre da própria transformação que as instituições jurídicas sofreram no curso do século XX, em especial no período do pós-Segunda Guerra" (ibid.).

O Estado de direito, dentro do "neoconstitucionalismo" então emergente, deve abandonar o seu antigo papel de "dado pronto e acabado" da ordem social, limitando-se eventualmente a garantir a segurança dos cidadãos e lidar com seus conflitos particulares (Estado liberal) ou então simplesmente promover reformas pontuais para mitigar as contradições do modo de produção capitalista (Estado social).

A nova encarnação do ente estatal - o "Estado democrático de direito" - apresenta-se agora como "agente transformador", fundado em estruturas jurídicas conscientes de que estão em movimento dentro do caminhar contínuo do processo histórico (ibid.).

A partir da segunda guerra mundial a filosofia política e jurídica assimilou o papel da linguagem e da comunicação, proporcionando uma revolução no modo de compreender o mundo. Essa transformação histórico-filosófica continua ainda hoje pretendendo superar o pensamento metafísico. Se no paradigma da metafísica clássica, de acordo com o autor Abel, os sentidos estão nas "coisas" e na metafísica moderna "na mente" (consciência de si do pensamento pensante), agora nessa verdadeira guinada pós-metafísica "os sentidos passam a se dar na e pela linguagem" (ibid.).

A ampla repercussão de obras críticas ao positivismo jurídico, nas últimas décadas, criou o ambiente usualmente denominado de "pós-positivismo", o que tem contribuído para fomentar a ideia equivocada de que para se combater o positivismo jurídico, nesta altura da história, estaríamos "chutando um cavalo morto", observou o comentarista Abel. Entretanto, completou o autor observando que não é o que a realidade de prática judiciária brasileira demonstra. Em suas diferentes manifestações - "e o que é pior, muitas vezes ocultas sob o manto de posturas progressistas pós-positivistas" - as problemáticas oriundas do positivismo jurídico continuam manifestando-se tanto na prática judicial quanto no "senso comum teórico" dos juristas (ibid.).

Dentro do contexto de um Estado democrático de direito contemporâneo, combater o positivismo significa, essencialmente, combater a discricionariedade judicial, arremata o autor. O que uma postura crítica (e comprometida com a democracia) deve fazer é, precisamente, que sejam "cumpridas as leis", e não o contrário. Imaginar que a lei é uma amarra opressora que deve ser cortada pelas mãos de um juiz libertário (ibid.):

É raciocinar nos termos de um Estado liberal embrionário de três séculos atrás, calcado na tensão entre os indivíduos livres e o Estado opressor (que sempre deveria estar sob pesada vigilância). A lei, no contexto do Estado democrático de direito, é precisamente o Direito construído de forma democrática, nos espaços democráticos adequados para tanto.

Considerando-se, portando que o "grande mal" do positivismo jurídico é a sua legitimação da discricionariedade judicial, torna-se fácil compreender agora que a superação deste problema não pode se dar, ao extremo, pelo protagonismo judicial desenfreado. Pergunta-se nesse sentido: como pode haver contraposição entre a lei e a vontade do povo numa democracia representativa? E entre legalidade e justiça, se os representantes escolhidos pelo povo, na forma do processo democrático, não estão aptos para decidir que leis são justas, a quem deveria, portanto, caber tal decisão?

O autor Abel considerou que aparentemente, entre boa parte dos juristas, há uma notável tendência no sentido de simpatizar-se com a ideia de que o Poder Judiciário deveria atuar como uma verdadeira "ferramenta de otimização" da democracia, "fazendo-se vista grossa para protagonismos judiciais, decisionismos questionáveis e políticas judiciárias pautadas pelo mais puro pragmatismo, em detrimento da legitimidade do Legislativo devidamente eleito pelo povo (de quem o poder emana, vale lembrar)" (ibid.). Entretanto, substituir o juiz "antigo" (que, no contexto anterior ao chamado neoconstitucionalismo não enxergava nada além da "letra fria da lei") por um juiz dito "novo" (que imagina ser pós-positivista ao valer-se de princípios ad hoc para decidir casos concretos com base nas suas noções de justiça e em postulados de conveniência política e/ou econômica) não significa nada além de "trocar seis por meia dúzia", ressalta integralmente o analista diante dessa opção extrema.

Desenvolvendo-se as práticas sociais extremas, Abel considerou que não se estará realizando qualquer avanço real no combate às "heranças malditas" do positivismo jurídico. Ou seja, na opinião desse autor: "apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. Do mesmo modo, não apegar-se (sic) à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista" (ibid.).

Concluindo, o autor Abel afirmou que pragmatismos, utilitarismos e discricionariedades (assim como o ceticismo generalizado em relação ao direito enquanto saber prático autônomo) podem ser convenientes e práticos, mas "só fazem aumentar o histórico déficit democrático pátrio, além de enfraquecer os fundamentos e alicerces da (ainda jovem) democracia brasileira, que certamente não se encontrará em posição de estabilidade e segurança enquanto continuar sendo enxergada, ela própria, como um mero formalismo relativizável, ideal abstrato ou simples argumento de ocasião" (ABEL, 2010).

8.1.6 A ontologia sintética do juiz ideal Hércules

Admitimos em nossa hipótese de trabalho a possibilidade de que as quatro correntes filosóficas listadas anteriormente podem convergir na mesma prática institucional de um único juiz dentro do Poder Judiciário. Entretanto, para fundamentar essa possibilidade filosófica temos necessariamente de imaginar um superjuiz e inventar uma representação conceitual para esse tipo de fenômeno extremo que pode aparecer no Poder Judiciário. Com essa preocupação filosófica, o juiz ideal Hércules apresentará uma personalidade sintética com traços moralistas, existencialistas, hermenêuticos e democráticos, preocupado com a efetividade dos princípios constitucionais, de forma diferente do convencionalismo e do pragmatismo jurídicos.

Do ponto de vista político, Hércules nunca será um ativista, pois não vai limitar seu julgamento ao aspecto político-circunstancial das estratégias, mas sim aos princípios constitucionais intrínsecos que são evocados ou não nas políticas públicas. Hércules não se deixa limitar pelo interesse coletivo de erradicar a pobreza ou pelo correto modelo de equilíbrio entre natureza e economia, etc. Antes disso, ele observa o tratamento que estão recebendo os princípios constitucionais básicos de liberdade, igualdade, responsabilidade, fraternidade e dignidade.

Hércules também não é um "passivista", pois ele rejeita a idéia rígida de que os juízes devem subordinar-se às autoridades eleitas. Vai considerar nesse sentido que o objetivo de algumas disposições é - ou inclui - a proteção da democracia, e irá interpretar tais disposições, em vez de subordinar-se às convicções daqueles cuja legitimidade elas poderiam inclusive desafiar. Hércules decidirá, provavelmente, sobre qual objetivo de outras disposições é ou inclui a proteção de indivíduos e de minorias contra a vontade da maioria, e ao decidir sobre as exigências de tais disposições, não irá ceder àquilo que os representantes da maioria consideram como correto (DWORKIN, 2007, p. 476).

Hércules não é um tirano usurpador que tenta enganar o povo, privando-o de seu poder democrático. Quando intervém no processo público para declarar inconstitucional alguma lei ou ato de governo, ele age a serviço do seu julgamento crítico sobre o que é de fato a democracia e sobre aquilo que a constituição, mãe guardiã da democracia, realmente quer dizer (ibid., p. 476).

Do ponto de vista moral Hércules é um juiz criterioso e metódico. Ele deve formar a sua própria opinião sempre (ibid., p. 288). Ele deve interpretar e se puder encontrar alguma teoria coerente sobre os direitos. Hércules não acha que a constituição é apenas o que de melhor produziria a teoria da justiça e da equidade abstratas à guisa de teoria ideal. É guiado, em vez disso, por um senso de integridade constitucional; acredita consequentemente que a constituição consiste na melhor interpretação possível da prática e dos textos constitucionais como um todo, e seu julgamento sobre qual é a melhor interpretação é sensível à grande complexidade das virtudes políticas subjacentes a qualquer questão (ibid., p. 474).

Do ponto de vista hermenêutico, Hércules aceita que as pessoas sejam governadas por princípios comuns (ibid., 254) e não apenas por regras criadas por um acordo político. O direito é uma arena de debates sobre quais princípios comuns a comunidade deverá adotar como sistema e sobre qual concepção se deverá ter de justiça, equidade e justo processo legal. (ibid., 254).

Do ponto de vista existencialista, o juiz Hércules pensa no presente. Admite que as estratégias que parecem óbvias para uma geração, podem não ser para outras seguintes (p. 192) e serão modificadas no âmbito do processo judicial e não fora dele. O juiz aqui deixa de lado as especulações, vacuidade e legalismo ou a massificação administrativa como sugere Hannah Arendt em outro contexto.

Hércules não busca as intenções do legislador mortos há muito tempo, "intenções que de qualquer modo devem ser obscuras, polêmicas e inacessíveis ao grande público". Ele não se preocupa apenas em buscar a verdade das decisões passadas, pois redescobriu, ontologicamente, que possui as suas próprias convicções constitucionais ou principiológicas vinculadas ao tempo presente.

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O observatório judiciário de Ronald Dworkin.: O império do Direito e o conceito de integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20850. Acesso em: 23 dez. 2024.

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