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Multa de trânsito x Estado Democrático de Direito

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14/01/2012 às 10:32
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Motivação dos atos administrativos

"O princípio da motivação dos atos administrativos, após a Constituição Federal de 1988, está inserido no nosso regime político. È, assim, uma exigência do Direito Público e da legalidade governamental. Do Estado absolutista, em que preponderava a vontade pessoal do monarca com força de lei, evoluímos para o Estado de Direito, onde só impera a vontade das normas jurídicas. Nos Estados modernos já não existe a autoridade pessoal dos governantes, senão a autoridade pessoal da lei. A igualdade de todos perante a lei e a submissão de todos somente à lei constituem dois cânones fundamentais dos Estados de Direito. A nossa Constituição consagrou tais princípios em termos inequívocos ao declarar que "todos são iguais perante a lei" (artigo 5°, caput) e que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (artigo 5°,II)" (Lopes Meirelles, Hely, p.101)

Como enfatiza o renomado publicista, a motivação dos atos administrativos é uma garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, uma vez que reduz a sua possibilidade de impor a vontade pessoal do governante, ao dificultar que o seu ato se desvincule da lei.

Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, é óbvio que o administrador só poder agir de acordo com o dispositivo legal.

Dessa obrigatoriedade de observância da lei decorre a necessidade de motivação dos atos administrativos.

Somente dessa forma o administrado pode conferir se o ato do administrador, que lhe obriga a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, encontra arrimo no texto legal.

Impor algo ao administrado sem motivação é como dizer-lhe: "faça o que eu mando e não pergunte o porquê!"

Ora, esse comportamento arbitrário está tão ultrapassado que até mesmo no seio familiar é difícil o filho aceitar uma ordem do pai sem a devida justificativa por parte do seu genitor.

A Constituição, notadamente no tocante aos direitos humanos, vem, a passos largos, ganhando concretude, de modo que as normas infraconstitucionais, outrora interpretadas quase que isoladamente, hodiernamente, sofrem incidência direta das regras e princípios previstos na Lei Maior.

Por isso, a não motivação de um ato administrativo está na contramão do direito constitucional moderno, extremamente garantista.

Além de servir para exame da legalidade, igualdade e moralidade administrativa, a motivação é obrigatória para assegurar a ampla defesa e o contraditório.

Na hipótese de o agente de trânsito multar o condutor pelo não uso do cinto de segurança, sem colher a sua assinatura no auto de infração, a falta de motivação acerca da ausência da referida assinatura prejudicaria o contraditório e a ampla defesa por parte do condutor?

Para responder a essa questão precisamos tecer algumas considerações sobre o conteúdo do contraditório e da ampla defesa.

Ter direito ao contraditório e à ampla defesa não significa somente o direito do acusado de se contrapor a algum fato que lhe fora imputado, mas inclui o direito de ter os seus argumentos de defesa apreciados pelo juiz, com real possibilidade de influenciar na decisão do magistrado.

Pois se o argumento de defesa não tivesse potencialidade para influenciar na decisão do juiz, não haveria necessidade de defesa, isto é, de contraditório.

Isto posto, precisamos averiguar se o contraditório feito pelo condutor (isto é, a sua defesa) à motivação do agente de trânsito sobre a ausência de assinatura no auto de infração é potencialmente capaz de influenciar na decisão do julgador.

Antes, convém lembrar que a assinatura do condutor no auto de infração compõe a forma do ato administrativo.

E, segundo Hely Lopes Meirelles, "Enquanto a vontade dos particulares pode manifestar-se livremente, a da Administração exige procedimentos especiais e forma legal para que se expresse validamente" (LOPES MEIRELLES, Hely,p. 155).

Com efeito, a inobservância à forma prescrita em lei é motivo de invalidade do ato administrativo. O que já nos autoriza a concluir que a não motivação sobre a ausência de assinatura do condutor no auto de infração prejudica o contraditório, pois, dependendo do conteúdo da referida motivação, o auto de infração poderá se invalidado pelo condutor.

Só não seria necessária a motivação no auto de infração se o agente de trânsito tivesse liberdade irrestrita para decidir sobre o colhimento da assinatura do condutor, visto que, nesse caso, o contraditório do condutor ao conteúdo da motivação sobre a ausência da assinatura no auto de infração não teria potencialidade para influenciar na decisão do juiz. Pois se o agente de trânsito não tivesse limites em sua liberdade de agir, no que se refere à obtenção da assinatura do condutor, nenhum argumento de defesa por parte do condutor poderia obter êxito ao atacar o referido ato administrativo, uma vez que o agente de trânsito estaria sempre agindo de acordo com as suas prerrogativas funcionais. E a defesa do condutor consiste exatamente em argüir que o agente de trânsito extrapolou os limites estabelecidos pela lei. Logo, inexistindo tais limites (caso a liberdade do agente fosse irrestrita), nunca haveria ilegalidade no fato de o auto de infração não conter a assinatura do condutor.

Destarte, seria desnecessária a motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração. Pois, sendo a finalidade da motivação a constatação de que o ato administrativo se manteve dentro dos limites legais, inexistindo tais limites, a motivação perderia a sua razão de ser.

No entanto, cumpre ressaltar que nem mesmo nos atos discricionários é conferida liberdade irrestrita ao administrador, uma vez que, nesta categoria de atos administrativos, o agente de trânsito fica obrigado a "evidenciar a competência para o exercício desse poder e a conformação do ato com o interesse público" (Lopes Meirelles, Hely, p.102).

Com efeito, ato discricionário, para não se transformar em ato arbitrário, deve ter como vetor o interesse público, devendo este ser demonstrado pelo administrador (motivação).

Uma vez apartado do interesse público, o ato administrativo tornar-se-á ilegal, ensejando, por conseguinte, a sua anulação.

Logo, se até mesmo no ato discricionário o administrador é obrigado a observar determinados limites, sob pena de cometer atos ilegais e, conseqüentemente, ensejar a anulação desses atos pelo administrado prejudicado, resta claro que uma eventual falta de motivação prejudicaria o contraditório e a ampla defesa.

Portanto, ainda que se considerasse a existência de discricionariedade por parte do agente de trânsito no colhimento da assinatura do condutor no auto de infração, o referido agente, na hipótese de não colhimento da assinatura do condutor, deveria, obrigatoriamente, motivar tal ausência, demonstrando a conformidade do ato administrativo com o interesse público.

Neste caso, é verdade, haveria muitas hipóteses que permitiriam ao agente de trânsito a dispensa do colhimento da assinatura do condutor (tais como o excesso de trânsito, a necessidade de realizar outro serviço etc.), de modo que se concluíssemos pela existência de discricionariedade na forma do auto de infração, dificilmente se obteria êxito na anulação desse ato (desde que houvesse motivação, é claro) uma vez que a possibilidade de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor seria muito abrangente.

Apesar de tal liberdade conferida ao administrador (se o seu poder fosse discricionário), Isto, no entanto, não chegaria ao ponto de significar um poder irrestrito.

Assim, se claramente a motivação acerca da ausência da assinatura do condutor demonstrar um ato arbitrário (por exemplo, alegar de forma pouco esclarecedora que "não era oportuno colher a assinatura", sem, no entanto, demonstrar o real motivo que o compeliu à prática do ato), tal ato poderá ser anulado por não se conformar ao interesse público.

Se nem mesmo os atos discricionários prescindem de motivação, com muito mais facilidade se compreende a obrigação de se motivar um ato vinculado, vez que, nesta categoria de atos administrativos, os limites de atuação do agente administrativo são rigorosamente delimitados pela lei. Sendo, portanto, muito mais fácil se verificar um eventual excesso por parte do agente administrativo.

Transportando o poder vinculado do agente administrativo para o caso em tela (como já exaustivamente tratado), haveria escassas hipóteses nas quais se justificaria a ausência de assinatura do condutor (fuga do condutor ou a sua recusa em assinar etc.).

Qualquer motivação que não observasse esses limites impostos padeceria de ilegalidade, ensejando a anulação do ato.

Diante da constatação de que no ato administrativo vinculado e até mesmo no ato administrativo discricionário há limites legais de atuação do agente administrativo, concluímos, indubitavelmente, que a falta de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração prejudica o contraditório e a ampla defesa. Pois, como dissemos, a razão de ser do contraditório/ampla defesa reside justamente na sua possibilidade real de influenciar na decisão do julgador. O que só é possível se o ato administrativo encontrar limites na lei. Porquanto com o extravasamento dos limites legais é que nasce a possibilidade de invalidação do ato administrativo.

Percebam, a falta de motivação a que nos referimos é aquela concernente à ausência de assinatura do condutor no auto de infração e não a que diz respeito às condições nas quais se deu a aplicação da penalidade. Pois não raramente encontramos na motivação do ato administrativo: "Visão frontal". Cujo intuito é não deixar dúvidas de que o agente de trânsito teve condições de, inequivocamente, constatar a falta de uso de cinto de segurança por parte do condutor.

No entanto, esta justificativa de forma alguma supre a falta de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração. Pois, se o ato administrativo estiver viciado em sua forma, para poder anulá-lo, nem sequer é preciso se indagar sobre a veracidade do seu conteúdo.

Aliás, esta preocupação exagerada do agente de trânsito em querer demonstrar que não houve qualquer equívoco de sua parte na aplicação da penalidade não faria sentido se fosse colhida a assinatura do condutor.

Chegamos, com efeito, a outra importante conclusão: a não motivação acerca da ausência de assinatura fere mortalmente os princípios da legalidade, moralidade, igualdade, contraditório e ampla defesa.

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Conclusão

Com razão, muitas vezes, é duramente criticado o legislador. Afinal, leis mal redigidas, confusas a até inconstitucionais recheiam os códigos nacionais.

No entanto, quando o legislador age com proficiência, infelizmente, não é raro surgirem interpretações absurdas sobre o produto do seu labor (a lei), apoquentando, da mesma forma, o oprimido povo brasileiro.

Vejam que o Código de Trânsito Brasileiro estabelece normas coerentes.

O estudado artigo 167, por exemplo, prevê a aplicação de multa ao condutor infrator (prevenindo, em tese, que ele cometa novamente tal infração) e comina juntamente a medida administrativa de retenção do veículo, até colocação do cinto de segurança (prevenção imediata).

Deve constar do auto de infração a assinatura do condutor infrator, salvo em caso de impossibilidade de fazê-lo.

O CTB, assim, conferiu mais crédito ao ato punitivo efetivado pelo agente de trânsito. Pois ao ser obrigado a assinar a multa, o infrator tem a possibilidade de certificar-se da sua prática infracional, mitigando, assim, as inúmeras dúvidas que pairam sobre a sociedade, no tocante a estes atos punitivos tão odiados pelos motoristas.

No entanto, no afã de conferir mais crédito a tais atos (multas), não poderia o legislador permitir que alguém se beneficiasse da própria torpeza.

Com efeito, quando não for possível colher a assinatura do condutor infrator, ele não ficará impune. Neste caso, excepcionalmente, o infrator será notificado por via postal ou outro meio, acerca da penalidade que lhe fora imposta.

Fechando de forma gloriosa essa trajetória extremamente coesa, deve o agente de trânsito motivar uma eventual ausência de assinatura do condutor no auto de infração, visando a assegurar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade, contraditório e ampla defesa.

Esta linha de pensamento é tão lógica, que consegue, a um só tempo, valer-se da interpretação sistemática sem, contudo, escapar à literalidade da lei. Tudo isso sob o fulgor constitucional, consubstanciado nos princípios, há pouco referidos, da moralidade administrativa, legalidade, igualdade, contraditório e ampla defesa. Eis um Estado Democrático de Direito!

Interessante que, hodiernamente, a preocupação com a efetivação dos valores constitucionais é tão grande, que encontramos interpretações meio "forçadas" da lei, ou até mesmo contra a lei infraconstitucional, quando se tem por mira preceitos superiores consagrados na Lei Maior.

Assim foi construída a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, cuja finalidade é preservar os princípios da igualdade e da adequação do processo. Destarte, ainda que a lei processual expressamente atribua o ônus da prova a quem alega, segundo a referida teoria, pode o magistrado distribuir o ônus da prova de acordo com quem tenha condições de suportá-lo.

A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova tem sido amplamente aceita no direito pátrio, uma vez que, como dito, assegura os direitos constitucionais da igualdade e da adequação do processo, justificando, em tese, uma interpretação "distorcida" da lei infraconstitucional.

Inadmissível, no entanto, quando o intérprete dá uma "forçada" na interpretação da lei sem justificativa alguma para tanto. Ou pior, em detrimento de valores consagrados da Lei Maior.

È exatamente o que tem ocorrido em relação ao tema abordado. Pois, uma vez que se considere discricionário (em vez de obrigatório, por ser um ato vinculado) ao agente de trânsito reter o veículo até a colocação do cinto de segurança, abrir-se-á espaço para a não preservação da integridade física do condutor (já que a finalidade do cinto é resguardar a integridade física do condutor/passageiro).

Na mesma linha de raciocínio, a considerar discricionário o colhimento da assinatura do condutor, a credibilidade atribuída pela sociedade a este ato punitivo seria sensivelmente reduzida, pois, no mais das vezes, o agente de trânsito não faria a mínima questão de obter a assinatura do condutor, uma vez que a ausência de tal assinatura seria facilmente justificada.

Por fim, se não houvesse obrigatoriedade de motivação pela ausência da assinatura, os princípios da legalidade, moralidade, igualdade, contraditório e ampla defesa estariam sendo seriamente comprometidos.

Caros leitores, não são poucas as pessoas vitimadas pelas "indústrias" de multas.

Quantas vezes não somos penalizados e sequer nos recordamos da prática do ato infracional.

Bem, o esquecimento é inerente ao ser humano, sobretudo de idade mais avançada, diriam.

Até por levar isso em consideração, muitas vezes, nos conformamos com algumas multas recebidas, embora, provavelmente, não as tenhamos cometido.

Porém, a questão nos tira o sono quando nos sobrevém a certeza de que fomos punidos sem termos praticado qualquer infração, e que muitos ainda o serão.

A irresignação aumenta quando nos sentimos indefesos ante a presunção relativa (quase absoluta eu diria) de veracidade e legitimidade dos atos administrativos.

Diante da improbabilidade de se desmentir um ato administrativo, somos obrigados a buscar um último socorro no conjunto normativo pertinente ao tema.

Para o nosso consolo, percebemos claramente que no sistema normativo há dispositivos para impedir a prosperidade dessas indústrias de multa, sobretudo, quando consideramos obrigatória a motivação dos atos administrativos.

Porque não se pode negar que o referido princípio (desde que alicerçado em interpretações coesas) dificulta-se sobremaneira a aplicação de penalidades por infrações inexistentes.

Imaginem que a justificativa do agente de trânsito para a ausência de assinatura do condutor, no auto de infração, seria muito restrita, como a fuga do motorista ou a sua recusa em assinar etc., de modo que, uma suposta mentira por parte do agente de trânsito, seria facilmente identificável pelo condutor. E, em se multiplicando esses atos desonestos, a classe de motoristas certamente se uniria para conclamar justiça.

No entanto, meus caros, mesmo havendo tantas pessoas desmotivadas com as infindáveis injustiças ocorridas no país tupiniquim, parece que o princípio da motivação, especialmente no tocante à questão abordada, não tem sido usado como um poderoso escudo do Estado Democrático de Direito, embora não lhe falte potencialidade para tanto.

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Sobre o autor
Marcio Kazuo Saito

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAITO, Marcio Kazuo. Multa de trânsito x Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3118, 14 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20864. Acesso em: 26 abr. 2024.

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