3. Conteúdo do Princípio
Feitos os breves apontamentos acerca da evolução histórica deste que é, sem dúvida, um dos grandes princípios do Direito Constitucional, necessário é que entendamos seu conteúdo, compreendendo suas funções em nosso sistema jurídico, sua abrangência e forma de interação com outras normas constitucionais.
No presente capítulo analisaremos, pois, as duas vertentes que compõem o conteúdo material do princípio da legalidade tributária e que, em verdade, acabam por defini-lo, permitindo sua correta e eficaz aplicação.
Em seguida, nos deteremos à análise da forma textual sob a qual foi positivado o princípio na Constituição de 1988, demonstrando, com base no estudado, a correta interpretação de cada um dos termos utilizados pelo constituinte.
3.1. As Duas Vertentes da Legalidade Tributária
Para que se vislumbre, de fato, o que representa a legalidade tributária em nosso sistema jurídico, imperioso é conhecer profundamente seu conteúdo, significado e, principalmente, a maneira como se dá seu relacionamento com outros princípios (ou sobreprincípios) constitucionais, dos quais ela é, na verdade, decorrente.
3.1.1.Legalidade como Manifestação do Consentimento: A Exigência Republicana
Como visto anteriormente, tem a legalidade tributária origem na antiga idéia de autotributação: a partir do século XI, viu-se consolidada entre os povos a idéia de que aqueles que suportarão a carga tributária devem com ela consentir, ainda que o façam indiretamente, por meio de seus representantes.
Assim, nasceu a legalidade tributária da necessidade de manifestação de consentimento popular em relação às imposições financeiras que os Estados porventura pretendessem instituir.
Com o passar dos séculos e desenvolver das sociedades, essa idéia foi perdendo força, cedendo lugar aos ideais do chamado Estado de Direito (muito embora estes, como veremos, em nada contrariem o consentimento). Chegou-se a um ponto tal que, hoje, pouco - ou nada - se fala do chamado "princípio do consentimento", sendo este relegado, na maior parte das vezes, às análises históricas da legalidade.
A negligência com que mencionado princípio vem sendo tratado pela doutrina e jurisprudência pátrias, no entanto, nos parece equivocada e, em verdade, inadmissível, dada a absoluta indissociabilidade existente entre este e a atual sistemática republicana. Explicamos.
Nos valendo da precisa conceituação formulada por Geraldo Ataliba, vejamos o que, essencialmente, representa o regime republicano sob o qual vivemos:
República é o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente, e mediante mandatos renováveis periodicamente.
[...]
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Como o povo não pode apresentar-se na função de governo, os seus escolhidos o representam. Governam em seu nome, no seu lugar, expressando sua vontade. [15]
Do texto destacado percebe-se ser inerente à forma republicana de governo a noção de representação, de realização pelos destinatários da outorga de poderes da vontade dos titulares deste mesmo poder: os cidadãos. Em outro dizer, é consectário direto da República o princípio do consentimento.
A manifestação da vontade popular - o consentimento - se concretiza, em nosso sistema de tripartição de poder, por meio das leis, atos inaugurais da ordem jurídica elaborados pelos membros do Poder Legislativo (e por eles apenas), representantes do povo, por ele eleitos.
Se o povo é o titular da res publica e se o governo, como mero administrador, há de realizar a vontade do povo, é preciso que esta seja clara, solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a sua vontade. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, estão: o primeiro obedecendo a si mesmo, e o segundo ao primeiro. O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se à sua vontade, expressa na lei. [16]
Disto se conclui que, para que sejam os cidadãos submetidos a qualquer tipo de imposição, em especial aquelas que ameacem sua liberdade ou seu patrimônio, devem estes ser necessariamente consultados, para que digam em que limite e em que termos consentem com a constrição de tão elementares direitos. E este consentimento será demonstrado por meio das leis, elaboradas e expedidas por seus representantes, eleitos especificamente para esta função.
Não deixa outra possibilidade, pois, o regime republicano, que, como visto, é construído sobre a idéia de que são os cidadãos os verdadeiros titulares do poder.
Reconhecendo a inafastável ligação entre República e consentimento, afirma José Artur Lima Gonçalves:
O necessário consentimento, em face do regime republicano, é tão óbvia e inafastavelmente posto pela sistemática constitucional (republicana), que Antonio Berliri, com ironia, sugere que se vá logo à questão de saber qual é o órgão mais qualificado para implementar o consentimento popular [...]. [17]
Com a tributação, como parece claro, não poderia ser diferente. [18]
O cidadão, através das leis produzidas por seus representantes, dirá se e em que medida participará do financiamento dos gastos públicos. Sem esse necessário consentimento, então, não poderá subsistir qualquer tentativa de incursão estatal no patrimônio de seus súditos, sob pena de violação do princípio republicano.
E esta exigência de produção de lei pelos representantes do povo acaba por impor limitação (ou proibição) ao Executivo, eis que este Poder tem obstada qualquer possibilidade ingerência na tarefa de criar ou aumentar tributos. [19]
O princípio da legalidade tributária, pois, ao vedar a instituição e o aumento de tributo sem lei (ato emanado do Poder Legislativo) que o estabeleça, nada mais faz que verbalizar a exigência de atendimento ao princípio do consentimento, este último direta e inexoravelmente decorrente do sistema republicano.
A legalidade tributária é, em última análise, uma exigência da República, sendo seu conteúdo dedutível do próprio sistema.
Deveras, pelo princípio da legalidade afirma-se, de modo solene e categórico, que, sendo o povo o titular da coisa pública e sendo esta gerida, governada e disposta a seu (do povo) talante - na forma da Constituição e como deliberado por seus representantes, mediante solenes atos legais -, os administradores, gestores e responsáveis pelos valores, bens e interesses considerados públicos são meros administradores, que, como tais, devem obedecer à vontade do dono, pondo-a em prática [...]. [20]
Extrai-se justamente desta conclusão a razão pela qual se deve preservar, a qualquer custo, o princípio da legalidade tributária: as violações a ele implicam em violações diretas ao princípio republicano. [21]
Não bastasse isso, é de se acrescentar que, também sob a perspectiva do Estado de Direito, se mostra de suma importância o princípio da legalidade tributária em sua vertente ligada ao consentimento popular.
Isso porque, a idéia de justiça igualitária, conteúdo material do Estado de Direito, somente pode ser atingida através das leis, as quais representam a vontade dos cidadãos e o único instrumento apto a prevenir o arbítrio do poder.
Em verdade, para que se possa considerar um Estado como de Direito, imprescindível é sua subordinação à lei - esta compreendida, sempre, como ato por meio do qual se manifesta o consentimento popular e se limita o poder estatal.
Desta forma, é de se enxergar o princípio da legalidade como "instrumento - único válido para o Estado de Direito - de revelação e garantia da justiça tributária". [22]
A vertente do consentimento, mais antiga forma de se enxergar o princípio da legalidade tributária, mantém-se, pois, firme em nosso sistema constitucional, não se podendo cogitar, ainda hoje, de sua superação ou desconsideração. Entender o princípio da legalidade tributária passa, necessariamente, pelo entendimento da idéia do consentimento e da primazia da lei (esta concebida em sentido formal) que dele decorre.
3.1.2. Legalidade como Instrumento da Segurança Jurídica
Sob uma segunda perspectiva, pode-se visualizar o princípio da legalidade tributária como um dos instrumentos necessários para se atingir o ideal da segurança jurídica, sobreprincípio constitucionalmente consagrado, ainda que não de forma expressa.
Vista desta forma, a legalidade tributária se prestaria a garantir que os tributos sejam cobrados segundo normas objetivamente postas que permitam assegurar o máximo de estabilidade e segurança nas relações entre Fisco e contribuintes.
Além disso, o princípio da legalidade garante que os tributos não poderão ser instituídos ou alterados arbitrariamente pelo Poder Executivo, protegendo o direito à propriedade privada e, por conseqüência, trazendo maior tranqüilidade e - por que não dizer - segurança aos cidadãos. Desta forma, "protege-se a pessoa humana dos abusos e inconstâncias da Administração, garantindo-lhe um ‘estatuto’ onde emerge sobranceira a segurança jurídica, o outro lado do princípio da confiança na lei fiscal, a que alude a doutrina tedesca". [23]
Na verdade, ao prever pormenorizadamente os aspectos da incidência tributária, a lei - ato público e de conhecimento amplo - permite ao cidadão conhecer de antemão o volume da carga tributária que terá que suportar, permitindo a realização de planejamentos ou, ao menos, evitando a surpresa, fator fortemente repelido pelo princípio da segurança jurídica.
O princípio da legalidade tributária garante ao cidadão, pois, a previsibilidade das situações futuras em matéria tributária, assegurando a ele, através da exigência de edição de lei para a instituição ou aumento de tributos, que seu patrimônio não será atingido por circunstâncias por ele desconhecidas ou, ainda, em montantes por ele não esperados.
Tal como posta, a segurança jurídica abomina a casuística dos regulamentos e incertezas que se deve às muitas portarias e demais atos da Administração. Dado que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei, a segurança jurídica a que faz jus o contribuinte entronca diretamente com a tese ou princípio da "proteção da confiança". [24]
Além disso, a obrigatoriedade de instituição ou majoração dos tributos por meio de lei garante aos contribuintes, pelo menos, a certeza de que a relação de tributação não se constitui em simples relação de poder, mas pelo contrário, que se consubstancia em típica relação jurídica. [25]
Desta forma, para que atendam plenamente ao princípio da legalidade, e, por conseqüência, para que não firam a segurança jurídica, devem as leis fiscais ser elaboradas de modo a permitir que a população saiba exatamente que condutas suas implicarão em incidência tributária e, mais, em que montante e de que forma se dará eventual cobrança.
Precisamente o conceito de "proteção da confiança" assume no Direito Tributário uma larga projeção. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional proclamou mesmo ser um imperativo constitucional de qualquer Estado de Direito aquilo a que chamou o "princípio da confiança na lei fiscal" [...] e segundo o qual as leis tributárias devem ser elaboradas de tal modo que garantam ao cidadão a confiança de que lhe facultam um quadro completo de quais as suas ações ou condutas originadoras de encargos fiscais. [26]
A idéia de segurança jurídica é, não se nega, muito mais ampla do que o princípio da legalidade tributária, no entanto, nos termos aqui postos, é fato que este princípio toca a questão da segurança, sendo um dos principais instrumentos de sua realização em matéria de tributação.
Repita-se, neste ponto, que ao definir que tributos somente podem ser exigidos ou aumentados por meio de lei, o princípio da legalidade afasta dos cidadãos a insegurança gerada por regulamentos esparsos, produzidos sem qualquer critério ou limites por órgãos do Poder Executivo. Estabelece, assim, regra que tutela e resguarda a confiança que deve pautar as relações entre Fisco e contribuintes, tornando-as mais estáveis.
3.1.2.1. A Tipicidade Tributária
Dentro da visão do princípio da legalidade como instrumento realizador da segurança jurídica, destaca-se outro princípio dele diretamente decorrente: o da tipicidade tributária.
Desdobramento do princípio da legalidade tributária, relaciona-se a tipicidade com o aspecto material deste princípio, orientando a maneira com que deve ser elaborado o conteúdo da lei que - por força do aspecto formal da legalidade - instituirá o tributo. Explicamos.
Em sentido formal, exige o princípio da legalidade tributária que, para que se institua ou majore tributo, se edite lei em sentido formal, ou seja, exige a edição de ato normativo pelo Poder Legislativo em conformidade com as normas procedimentais previstas na Constituição Federal.
O aspecto material da legalidade, por sua vez, remete a exigências relativas ao conteúdo dessa lei que será editada. E é justamente aí que se enquadra o princípio da tipicidade: em razão dele, a lei que institui ou majora tributos deve ser completa; deve trazer todos os elementos que compõem a norma jurídica tributária (os fatos descritores do fato jurídico e prescritores da relação), explicados e detalhados de forma a não se abrir qualquer margem de discricionariedade aos agentes aplicadores e julgadores.
A lei fiscal deve conter todos os elementos estruturais do tributo: o fato jurígeno sob o ponto de vista material, espacial, temporal e pessoal (hipótese de incidência) e a conseqüência jurídica imputada à realização do fato jurígeno (dever jurídico). Equivale a dizer que a norma jurídico-tributária não pode ser tirada do ordo juris nem sacada por analogia; deve estar pronta na lei, de forma inequívoca, obrigando o legislador a tipificar os fatos geradores e deveres fiscais. [27]
A tipicidade tributária implica dizer, assim, que a lei que institui o tributo não poderá fazê-lo simplesmente afirmando a criação de determinado tributo e relegando ao Poder Executivo a tarefa de definir o núcleo da hipótese de incidência, os sujeitos passivos, a base de cálculo e a alíquota a serem adotadas.
Para que se atenda de forma plena ao princípio da legalidade tributária, pois, a lei instituidora ou majorada de tributo deve ser completa, apresentando conceitos fechados e precisos. Essa é a exigência da tipicidade.
Na verdade criar o tributo não é apenas dizer que ele está criado. Criar o tributo é estabelecer todos os elementos necessários à determinação da expressão monetária e do sujeito passivo da respectiva obrigação.
[...]
Realmente, é fácil compreender que bem pouco valeria a afirmação, feita pela Constituição Federal, de que só a lei pode instituir tributo, se o legislador pudesse transferir essa atribuição, no todo ou em parte, a outro órgão estatal, desprovido, segundo a Constituição, de competência para o exercício de atividade normativa. [28]
Se considerada, então, a necessidade de se efetivar os ditames do princípio da legalidade tributária, parecem bem naturais as prescrições e exigências do princípio da tipicidade, afinal, somente por meio de leis de conteúdo completo e preciso é que se pode garantir a efetiva segurança jurídica do contribuinte e, mais, o respeito aos estreitos limites de seu consentimento (o qual deve ser integralmente manifestado por meio da atividade normativa de seus representantes).
O princípio da legalidade originariamente cingia-se a requerer lei em sentido formal, continente de prescrição jurídica abstrata. Exigências ligadas aos princípios éticos da certeza e segurança do Direito, como vimos de ver, passaram a requerer que o fato gerador e o dever tributário passassem a ser rigorosamente previstos e descritos pelo legislador, daí a necessidade de tipificar a relação jurídico-tributária. [29]
Não bastasse isso, já fora do âmbito normativo, impõe este princípio a necessidade de que haja perfeita subsunção do evento factualmente ocorrido à previsão abstrata feita na norma, o que, em última análise, acaba por exigir que os agentes da Administração Pública "indiquem, pormenorizadamente, todos os elementos do tipo normativo existentes na concreção do fato que se pretende tributar". [30]
Referido princípio impõe, pois, freios à atividade fiscal, tornando-a plenamente vinculada ao conteúdo prescrito em lei. Segundo Alberto Xavier, "A tipicidade seria, pois, o princípio pelo qual os tributos só poderão ser cobrados quando a lei o autorize e, portanto, quando se concretiza a hipótese (Tatbestand) dessa mesma lei". [31]
Em última análise, circunscreve-se o princípio da tipicidade tributária na vedação de que sejam editadas normas tributárias por meio de cláusulas gerais e conceitos abertos, as quais poderiam criar uma margem de discricionariedade na cobrança e fiscalização de impostos, situação esta absolutamente incompatível com o já destrinchado conteúdo do princípio da legalidade, tanto sob a perspectiva do consentimento, quando da segurança jurídica.
Desta forma, em razão da dupla exigência oriunda do princípio da legalidade: (i) de que o tributo seja instituído por lei (legalidade formal) e (ii) de que esta lei exaura a matéria por ela tratada, disciplinando todos os pormenores da tributação (legalidade material), é que se pode afirmar estar a matéria tributária sujeita à reserva absoluta de lei (ou, como preferem alguns autores, à disciplina de lei).
A lei, e somente ela, pode inovar o ordenamento em matéria tributária, devendo fazê-lo, sempre, de forma suficiente a vincular integralmente o comportamento de seus destinatários, sem qualquer margem de discricionariedade ou dúvida as quais possam vir a se converter em arbitrariedade.
Merece destaque, neste ponto, a lição de Alberto Xavier, em trabalho dedicado ao estudo da legalidade e da tipicidade tributárias:
O princípio da tipicidade não é, ao contrário do que uns já sustentaram, um princípio autônomo ao da legalidade: antes é a expressão mesma deste princípio quando se manifesta na forma de uma reserva absoluta de lei, ou seja, sempre que se encontra construído por estritas considerações de segurança jurídica. [32]
A esse regime de reserva absoluta de lei é que se costuma designar "princípio da estrita legalidade tributária", expressão criticada pelo supracitado autor, [33] mas que apenas quer referir-se ao fato de que, no âmbito tributário, o princípio da legalidade ganha contornos mais rígidos, diferenciando-se da simples regra geral aplicável à Administração Pública e contemplada no inciso II do artigo 5º da atual Constituição.
E essa é uma realidade que não se pode negar, mormente se consideradas todas as implicações constitucionais do princípio da legalidade tributária, já exaustivamente tratadas.
3.2.O Artigo 150, I, da Constituição
Como visto, revela-se a legalidade tributária como princípio necessário tanto à manutenção dos ditames republicanos, quanto à proteção da segurança jurídica, finalidades estas que, por inafastáveis e inerentes ao próprio princípio, devem pautar, sempre, a interpretação dos dispositivos legais que o consagrem no ordenamento positivo vigente.
Desta forma, uma vez compreendidas as duas vertentes sob as quais deve ser enxergado o princípio da legalidade tributária em nosso sistema jurídico, cumpre analisar o dispositivo constitucional que expressamente o consagrou, visando, assim, a se entender com precisão a significação que deve ser atribuída a cada um dos termos que o compõem, de forma a harmonizá-los com todas as implicações do princípio.
Dispõe o primeiro inciso do artigo 150 da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
Assim, como se infere da literalidade do artigo, é vedado aos entes tributantes exigir ou aumentar tributo por meio de outro instrumento que não seja a lei, constituindo esta a primeira das grandes limitações constitucionais ao poder de tributar.
Mas, para que seja referida proibição efetivamente entendida em harmonia com o até aqui afirmado acerca do conteúdo do princípio da legalidade, imperioso é que se compreenda o sentido específico daquelas que podem ser consideradas as expressões-chave do dispositivo: "exigir ou aumentar" e "lei".
Como bem adverte Hugo de Brito Machado,
A expressão ‘exigir ou aumentar’ não é tecnicamente correta. Melhor seria dizer-se instituir ou majorar tributo, como estava no art. 2º, item I, da EC 18/65, ou então instituir ou aumentar tributo, como estava no art. 20, item I, da Constituição de 1967, e art. 19, item I, da EC 1/69. [34]
A observação do autor decorre do fato de que a expressão "exigir", utilizada pelo Constituinte de 1988, se aproxima mais da ação de cobrar tributos do que do ato de propriamente instituí-los. Desta forma, poder-se-ia pensar, numa interpretação apressada, que a Constituição estaria a vedar apenas a ação de cobrança de tributos não prevista em lei.
Não é este, no entanto, o caso. Quando se depara com a palavra "exigir", deve o intérprete associar a ela a idéia de instituir, de criar um tributo, e não de simplesmente o cobrar (até mesmo porque, impensável seria a cobrança de um tributo não previamente instituído). E, por instituir, é de se repetir, entenda-se descrever detalhada e suficientemente todos os elementos da regra-matriz do tributo que se pretenda criar, não bastando ao atendimento da legalidade em sentido material, como visto, a simples criação vazia, em branco, do tributo.
Em verdade, se consideradas as demais prescrições constitucionais que moldam o princípio sob análise, não se chega - ao menos não de forma autorizada - a conclusão diversa, afinal, se considerada livre a criação de tributos por meio de instrumento outro que não a lei, caem por terra as idéias de consentimento e de segurança jurídica, inerentes a nosso sistema constitucional republicano, mas não compatíveis com a interpretação restrita do vocábulo "exigir".
Noutro dizer, se entendida a norma construída a partir do artigo 150, I, da Constituição Federal como limitadora apenas da atividade estatal de cobrar tributos, deixam de ser contemplados por ela os princípios republicano e da segurança jurídica, que, em verdade, acabariam por sofrer grave violação.
Firme é, nesse sentido, a opinião de Hugo de Brito Machado, para quem "a instituição, ou criação, do tributo há de ser feita por lei. Este é o sentido que o elemento sistemático da interpretação recomenda para a norma constitucional em questão". [35]
O vocábulo "lei", por sua vez, embora aparentemente claro, merece algumas considerações.
Como mencionado em momento anterior, a tradicional doutrina jurídica separa o conceito de "lei" em duas diferentes categorias: a lei formal e a lei material.
Formalmente, lei é o "ato jurídico produzido pelo órgão estatal competente para exercer a função legislativa, com observância do processo para tanto estabelecido pela Constituição". [36] Em outro dizer, em sentido formal, lei é o ato produto do exercício pelo Poder Legislativo de sua função típica, executada nos exatos termos das normas constitucionais de procedimento. É, em nosso sistema, o veículo adequado para inserir no ordenamento jurídico normas inéditas.
Materialmente, por outro lado, somente há que se falar em lei tributária quando há conteúdo normativo, formulado sob estrutura hipotética, dotado de abstratividade e generalidade, e, ainda, de clareza e suficiência. É essa, afinal, a lição que se tira do estudo do princípio da tipicidade, consectário da legalidade tributária.
A dupla perspectiva sob a qual se pode enxergar a lei é perfeitamente delineada por Geraldo Ataliba, que, mesmo sem se referir expressamente às categorias formal e material, as diferencia de forma clara e inquestionável:
No nosso direito a lei não é simplesmente o ato inaugural e primeiro, inovador da ordem jurídica, emanado do Poder Legislativo, órgão vertical do Estado e titular da representação popular por excelência [...]. É mais que isso: a lei é, no direito constitucional brasileiro, necessariamente genérica, isônoma, abstrata e irretroativa. [37]
Sob a égide da atual Constituição, fundada, dentre outros, nos princípios republicano e da tripartição do poder, impensável e inaceitável é a inovação do ordenamento jurídico por meio de instrumento outro que não a lei em sentido formal, em especial quando referida inovação implica na imposição de deveres e obrigações aos cidadãos.
Além disso, é de se ter mente que a legalidade desempenha, em nosso ordenamento constitucional, o papel de protetora das garantias e direitos individuais e, ainda, de portadora do consentimento popular, sendo este tipo de função, por certo, "incompatível com a sua [do princípio da legalidade] consagração por fontes secundárias (‘normas complementares’) provenientes do Poder Executivo". [38]
Justifica-se plenamente, assim, a obrigatoriedade de edição de lei em sentido formal.
A materialidade da lei, por sua vez, é exigência que decorre diretamente da necessidade de acolhimento do princípio da isonomia jurídica, expressamente contemplado (e exaltado) pela Carta de 1988, bem como do tantas vezes já mencionada princípio da tipicidade tributária, decorrência inafastável dos princípios republicano e da segurança jurídica.
Assim é que, constitucionalmente, somente pode a palavra "lei" ser entendida como a soma de seus aspectos formal e material, não bastando, pois, à satisfação do princípio da legalidade tributária (e à própria harmonia do sistema), a edição de ato que se enquadre em apenas uma das duas vertentes do vocábulo. [39]
Não é outra a opinião de Hugo de Brito Machado:
A nosso ver, quando a Constituição estabelece que somente a lei pode criar tributo, a palavra "lei" está aí empregada em sentido restrito. Há de ser lei tanto em sentido formal, como em sentido material. [40]
Daí se dizer, como afirmado anteriormente, que em nosso ordenamento encontra-se a matéria tributária sob reserva absoluta de lei, e não simplesmente albergada pelo princípio da legalidade em sentido amplo. Nas palavras de José Afonso da Silva,
A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade e o da reserva de lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal. [...] O fenômeno tributário, como atividade estatal, obedece ao princípio da legalidade, mas não à simples legalidade genérica que rege todos os atos e atividades administrativas. Subordina-se a uma legalidade específica, que, em verdade, se traduz no princípio da reserva de lei. [41]
Sobre o mesmo assunto, manifesta-se com clareza Alberto Xavier:
Se o princípio da reserva de lei formal contém em si a exigência da lex scripta, o princípio da reserva absoluta coloca-nos perante a necessidade de uma lex stricta: a lei deve conter em si mesma todos os elementos da decisão no caso concreto, de tal modo que não apenas o fim, mas também o conteúdo daquela decisão sejam por ela diretamente fornecidos. [...] É a esta característica que aludem, entre nós, alguns autores, ao referirem-se - embora com evidente impropriedade terminológica - a um princípio de estrita legalidade. [42]
Compreendida está, desta forma, a leitura que deve ser construída a partir da disposição constante do inciso I do artigo 150 da Constituição de 1988, que, em suma, veda aos entes federativos a possibilidade de, no exercício de suas competências constitucionais, instituir ou aumentar tributo por instrumento outro que não a lei, esta última considerada como ato inovador da ordem jurídica, emanado do Poder Legislativo, de conteúdo necessariamente genérico, isônomo, abstrato completo e fechado.
3.3.Exceções ao Princípio
Analisado o conteúdo da legalidade tributária, seja sob a ótica do consentimento, seja no que toca à segurança jurídica, difícil é aceitar que venha este a ser, de qualquer maneira, excetuado.
Ora, se, como dissemos, decorre este princípio das idéias de República e de Estado de Direito e, ainda, se presta a, juntamente com outras normas, tutelar a confiança necessariamente existente no trato entre Estado e cidadão, não caberia, de fato, cogitar de possíveis exceções à sua incidência.
A Constituição de 1988, no entanto, indo contra este pensamente, tratou de firmar hipóteses em que a legalidade tributária, tal como aqui estudada, é afastada.
A exceção ao princípio em comento se encontra consignada no §1º do artigo 153 do Texto Magno, o qual se refere à possibilidade de a lei delegar ao Poder Executivo a faculdade de fazer variar, observadas determinadas condições e dentro dos limites que ela estabelece, as alíquotas (e somente as alíquotas) de determinados impostos (II, IE, IPI e IOF).
Veja-se que, ao abrir a possibilidade de um dos elementos formadores da regra-matriz de incidência do tributo ser definido por instrumento que não a lei, produzido por órgão que não do Poder Legislativo, o constituinte excetuou sim o princípio da legalidade tributária, uma vez que afastou a já discutida reserva absoluta de lei (alcançada apenas quando se conjugam a necessidade de lei formal e lei material, conforme os ditames da tipicidade).
Prescrevendo, no entanto, que ao legislador cabe estabelecer as "condições e limites" para a atuação do Poder Executivo, que apenas agirá dentro da margem pré-fixada pela lei, manteve a Carta de 1988 observância ao princípio da legalidade geral, consagrado pelo artigo 5º, inciso II, de seu próprio texto.
Assim, forçoso é admitir que, ainda que haja, de fato, exceções ao princípio da legalidade tributária (visto, como aqui proposto, como reserva absoluta de lei), estas são albergadas pelo princípio da legalidade geral, restando resguardados, assim, os direitos e garantias do contribuinte, ainda que de forma um pouco menos rígida.
Discorrendo sobre os princípios que impõem limitações ao poder de tributar, afirma José Afonso da Silva:
[...] princípio da reserva de lei ou da legalidade estrita, segundo o qual é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir ou aumentar tributos sem que a lei o estabeleça (art. 150, I), mas a Constituição admite a alteração, por decreto, das alíquotas dos impostos sobre importação, exportação, produtos industrializados e operações financeiras, atendidas as condições e limites estabelecidos em lei (art. 153, §1º), o que vale dizer, ainda, respeito ao princípio da legalidade genérica. [43]
O que é importante ter em mente, no entanto, é que referidas exceções somente são válidas por terem sido firmadas pelo constituinte originário, não havendo, em nosso sistema, a possibilidade de criação de novas hipóteses de afastamento do princípio da legalidade tributária, seja pelo legislador ordinário, seja pelo poder reformador, afinal, qualquer providência neste sentido esbarraria nas chamadas "cláusulas pétreas", como a tripartição de poderes e os direitos e garantias individuais (artigo 60, §4, incisos III e IV).
Dito isto, impossível é pensar em quaisquer outras exceções ao princípio da legalidade tributária, que deve, portanto, ser aplicado em sua plenitude, independentemente de eventuais prescrições legais em sentido contrário.
3.3.1. As Medidas Provisórias
Nesse contexto cabe analisar, ainda que brevemente, a questão das medidas provisórias em matéria tributária, assunto polêmico sobre o qual doutrina e jurisprudência não parecem encontrar um ponto comum.
Diante de tudo que se afirmou, até este ponto, sobre o princípio da legalidade tributária, e, especialmente, sobre suas fortes ligações com os princípios republicano e da segurança jurídica, impossível é aceitar os argumentos lançados pelos defensores da utilização das medidas provisórias em matéria tributária. Vejamos o porquê.
De início, cabe destacar que, ainda que se afirme serem as medidas provisórias equiparáveis à lei, estas, como ato normativo emanado do Poder Executivo, não atendem, de forma alguma, ao princípio do consentimento, prestigiado apenas nas hipóteses em que as normas jurídicas são elaboras pelos representantes diretos do povo: os membros do Poder Legislativo.
O princípio da legalidade significa que a tributação deve ser decidida não pelo chefe do governo, mas pelos representantes do povo, livremente eleitos para fazer leis claras. [44]
Assim, por não representarem a vontade do povo, verdadeiro titular do poder, ferem as medidas provisórias o básico conceito da autotributação, exigência direta do sistema republicano sob o qual vivemos. Por conseqüência, a exigência de lei formal, decorrência lógica do princípio da legalidade tributária, restaria, assim, cabalmente violada.
O que deve ser destacado, neste ponto, é que, independentemente de possuir - ou não - "força de lei", não atende a medida provisória ao conceito formal de lei. E não por simples razão de nomenclatura, é claro, mas por não se enquadrar no que, essencialmente, significa uma lei: a manifestação de vontade dos detentores do poder (o povo) através de seus representantes eleitos para esta finalidade.
Desta feita, ainda que tenha o ordenamento autorizado que, por meio deste instrumento, se inove o sistema jurídico, atribuindo-lhe, desta forma, a principal característica da lei, o fato é que medidas provisórias não são leis e, justamente no que difere aquelas destas, se apega o princípio da legalidade tributária.
Impossível, destarte, concordar-se com a tese segundo a qual seriam as medidas provisórias instrumentos aptos a instituir tributos, sob pena de se ferir de morte o princípio da legalidade tributária, o qual - repita-se - não comporta exceções desta natureza.