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Cidadania, Poder e Exclusão Social

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01/10/2001 às 00:00
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4. Poder, Direito e Legitimidade

É conveniente estudarmos o padrão de cidadania brasileiro em confronto com o modelo de poder vigente no aparato jurídico – político. Pensando desta forma, a análise que neste ponto será desenvolvida tem como pressuposto básico a crença de que o relacionamento entre o exercício do poder, o sistema jurídico e a legitimação democrática via participação popular, não pode ser compreendido de uma maneira estanque, já que todos estes conceitos são interdependentes entre si.

Ou seja, esta interferência entre as esferas jurídica e política, passa obviamente por procedimentos e práticas públicas e pela estrutura de tomada de decisões, os quais são modelados segundo os interesses dos grupos que estão no poder, refletindo, claramente, o pensamento político - institucional predominante.

Aliás, quando aborda este tema, Hannah Arendt, afirma que o poder obtém sua legitimidade a partir de um consenso originário baseado em um entendimento recíproco, que produza um agir em concordância. Fica nítido que a filósofa alemã parte da perspectiva da fundação deste consenso. É neste ponto que as opiniões de outro estudioso alemão—Habermas—diferem das de Arendt, pois ele não trata apenas da origem do poder, também do seu exercício.(10)

Mas como atingir este consenso de forma democrática, em um contexto pluralista, onde se chocam valores e interesses diversos e, principalmente, onde impera uma exclusão social crescente ? Além do que, devemos lembrar, que o Estado não mais consegue buscar e efetivar sozinho todas as soluções necessárias a tão famosa governabilidade, necessitando assim fazer "acordos", que na maioria das vezes são impostos conforme a conveniência dos economicamente poderosos.

Tendo como parâmetro estes questionamentos, é que Habermas diz que as idéias de Arendt não conseguem explicar satisfatoriamente o modo como o poder está estruturado no presente. Isto resultaria do fato de que ela não admite—determina como violência—o que Habermas chama de competição estratégica(11), que para ele é essencial na compreensão do jogo político contemporâneo.

Na visão habermasiana, as crises de legitimidade atuais são decorrentes da formação de consensos deturpados—falsos consensos—, pois sem um envolvimento pleno e responsável de todos os interessados no discurso público e na sua argumentação, não há que se falar em uma real autolegislação.

Destaca-se a importância dos processos de organização da opinião pública, que conduzem ou podem conduzir a uma real autonomia dos cidadãos frente ao Estado—sempre recordando que as nossas estruturas sociais são caracterizadas por uma progressiva ausência de consenso.

Um poder democraticamente legitimado, para usarmos de uma idéia de Habermas, só pode surgir em um ambiente social extremamente diferenciado como o nosso, se pressupormos a presença permanente de um senso crítico e de uma esfera pública politizada, o que infelizmente não encontramos no Brasil.

Ora, como o Direito carrega consigo mesmo pelo menos a pretensão de legitimidade—o que é a princípio, o fundamento de sua validade—podemos dizer, que quando o poder legiferante não se reveste de uma racionalidade vinculante, este Direito torna-se mera imposição autoritária, pois desprovido de bases legítimas. Seguindo esta linha de pensar, a ordem jurídica converte-se na mais perfeita manifestação da ideologia de poder hegemônico.

"O Direito não legítimo—ilegítimo—deixa de ser instrumento de organização social e passa a cumprir a função de organizar e justificar o exercício do poder por um determinado grupo."(12)

Sendo assim, o temor que aqueles que detêm a posse e o exercício do poder sentem de toda proposta de uma inclusão real, leva-os a apoiar todos os mecanismos normativos que visem evitar ou a dificultar que o homem comum comece a se autodeterminar.

Em outros termos, o surgimento de novas posturas e determinações, que se revelem mais suscetíveis às pressões oriundas da base da nossa pirâmide social, são o grande pesadelo das elites que sempre dominaram o Estado, como se este fosse uma propriedade particular.

De fato, todas as modificações até aqui introduzidas no sistema de poder brasileiro, foram por demais tímidas e restritas, conservando praticamente intacta a estrutura conservadora que rege as relações na sociedade. Estas concessões pontuais que os "donos do poder" se permitem fazer, servem apenas para acalmar a periferia, constituindo em verdadeiras peças de propaganda e tornando a cidadania uma miragem.

Esta espécie de dominação imperceptível, procura por todos os meios possíveis, impedir uma remoção completa do entulho autoritário ainda existente na nossa conjuntura e no estabelecimento de uma realidade social mais equilibrada. A conformação do poder, dentro da sociedade contemporânea brasileira, só traz mais frustração e ceticismo quanto às políticas públicas, fazendo do cidadão um ser indefeso perante a máquina burocrática estatal.

Este elitismo democrático de pseudo - políticos é um entrave ao alargamento das instâncias de diálogo no seio da coletividade, o que não favorece a um novo redimensionamento do espaço para a participação popular.

Portanto, qualquer projeto de cidadania tem que necessariamente passar por um "gradativo ingresso de novas parcelas da população nas atividades políticas, mediante a extensão da cidadania às classes de menor poder aquisitivo." (13)

É por isso que acreditamos que a questão da cidadania no Brasil deve ser entendida não mais em termos das macro – estruturas sociais e sim, a partir do indivíduo em si mesmo considerado e do conteúdo de suas relações intersubjetivas. Somente por este caminho, pensamos ser passível de serem realizados os imperativos sociais constitucionalmente assegurados.

A maior dificuldade para o que denominaríamos de uma revitalização da individualidade, reside no fato de ser a nossa sociedade atual moldada por uma linguagem economicista de cunho neoliberal, voltada exclusivamente para atender os anseios do mercado, onde as pessoas são reduzidas a pontos de estatística.

Neste sentido, as recentes transformações resultantes da Globalização da economia mundial provocaram um deslocamento do pêndulo do poder decisório para o exterior, esvaziando a importância das políticas locais. Esta autêntica transferência da responsabilidade das decisões à organismos estrangeiros, tem repercussões danosas no nosso quadro social, haja visto que muitas destas decisões tomadas, não levam em consideração as nossas peculiaridades, nem a extraordinária desigualdade e injustiça sociais que existem no Brasil.

A estagnação econômica prolongada devido ao atendimento de cortes de gastos públicos pregados por entidades como o Fundo Monetário Internacional e a identificação de cidadão com consumidor, tem colocado em segundo plano os investimentos em áreas sociais fundamentais.

O máximo que este modelo capitalista de poder admite, como já salientado, é uma tênue tentativa de "civilizar" os seus instrumentos, sem entretanto concretizar os ideais de justiça inseridos nos direitos fundamentais.

Alguns de seus apologistas chegam a afirmar que não há nada que o Estado possa fazer em relação à massa de miseráveis desprovidos de todos os direitos mais básicos de cidadania; dizem que a idéia de uma inclusão social radical é utópica e que as forças do mercado encontrarão respostas para este problema—tal mentalidade só aumenta o fosso entre os excluídos e a minoria que participa dos ganhos que a Globalização produz.

Diante deste conjunto de circunstâncias, é de enorme valia a atividade desempenhada pelos novos movimentos sociais, pois são estes que procuram criar condições propícias para um autogoverno por parte da sociedade, com o intuito de fazer com que os grupos detentores do exercício do poder estatal passem a aceitar atualizações estruturais profundas no que concerne a realização da cidadania. Além disto, tentam vencer não somente as barreiras que visam a preservar os tradicionais papéis dos atores políticos, como também obstar que os novos comportamentos sociais sejam conduzidos pela vontade do Estado.

O que na verdade pretende-se ao adotar uma perspectiva não – autoritária do exercício do poder, é fazer com que as decisões que se referem a todos, objetivem fins comuns e que sejam legitimadas democraticamente através de procedimentos transparentes e plurais de discussão pública.

É a democracia participativa superando a simples representação eleitoral, como um processo contínuo de formação e avaliação crítica do poder público e de seus atos, que tem como finalidade possibilitar que os cidadãos realmente consigam intervir na produção normativa e na administração dos negócios públicos—é a busca do consenso, dentro de um dissenso democraticamente estabelecido.(14)


5.Conclusão

A luta é pela democracia, isto é, pela liberdade do homem, liberdade no sentido mais geral e abrangente, inclusive a liberdade de não se enquadrar numa disciplina de rebanho, sob a chefia "providencial" de um ou de outro líder.

(Edgar da Mata – Machado)

Já na introdução deste artigo, a despeito das inúmeras passagens em que discutimos algumas das propostas de como enfrentar os problemas sociais, dissemos que trabalhar o tema Cidadania no nosso presente modelo social, implicava muito mais em uma tarefa de levantar dúvidas, do que propriamente no encontro de respostas.

Em outras palavras, verificamos que o melhor caminho para alcançarmos um padrão de desenvolvimento realmente democrático no Brasil, passa pelo estabelecimento de formas autônomas e críticas, de agir frente a um quadro social marcadamente injusto, e para conseguirmos isto, supomos ser mais interessante suscitar questionamentos que façam as pessoas refletirem a respeito de seu papel como cidadãos integrados dentro de uma comunidade.

Partindo deste ponto de vista e conforme se pode constatar das considerações até aqui produzidas, não há como falar em cidadania em uma estrutura institucional que nega sucessiva e constantemente os direitos mais elementares à maioria da população, conservada a margem das discussões concernentes a gestão dos negócios públicos. Alia-se a este fato, uma política governamental que se alinha quase automaticamente às diretrizes organizacionais traçadas por entidades estrangeiras de características não – democráticas, o que significa uma redução de sua soberania política.

Não é possível pensar em democracia em um ambiente onde o processo eleitoral é claramente manipulado, onde a opinião pública não é concebida de modo livre, sendo dirigida por todo um aparato de informação a serviço do poder dominante, o que só gera uma crescente perda de autoridade, devido a uma intensa deslegitimação do sistema.

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Percebe-se assim, que não há no Brasil uma troca construtiva e democrática no exercício do poder, sendo o discurso político sempre mantido propositadamente da forma mais alienante possível, com intuito de dificultar o aparecimento de novos padrões de integração social.

Aliado a esta circunstância, temos que os nossos partidos políticos, por serem privados de uma sólida base ideológica, não mais conseguem atuar como interlocutores efetivos das demandas sociais perante o aparelho do Estado.

Estamos, portanto, falando de uma tremenda falta de aprendizado político democrático, que por sua vez, reflete – se na ausência de um debate transparente e plural da pauta política e dos interesses coletivos e da maneira pela qual, estes deveriam ser equacionados.

Essa forma de pôr a questão não procura encobrir o fato, de que o atendimento de todas as demandas sociais não significaria em uma cidadania plena, já que para esta surgir julgamos ser preciso uma extensa transformação na própria consciência dos indivíduos. Mas este cuidado com os anseios populares é um antecedente básico, para pelo menos podermos vislumbrar um projeto de cidadania.

Esta, para transformar-se em realidade, pressupõe uma concretização dos valores éticos inseridos nos direitos fundamentais, fazendo com que qualquer plano que busque uma conscientização democrática dos indivíduos tenha que estar ajustado com os direitos humanos e com os novas idéias de participação popular.

É ir além da já antiquada dicotomia entre liberdade e igualdade em um sistema democrático, pois o valor central quando da interpretação ou aplicação das normas legais ou no momento de elaboração de políticas públicas é a dignidade humana, o que está explicitamente consagrado no Carta constitucional de 1988 (CF: art.1o, inciso III).

Neste ponto é importante lembrarmos que, não obstante a redemocratização ocorrida com a promulgação da atual Constituição e com a presença no cenário político de novos personagens, ainda se faz mister o implemento dos princípios democráticos inseridos no texto constitucional, pois entendemos ser a consolidação destes ideais um momento distinto daquele posterior ao fim da ditadura militar.

Sendo assim, o essencial na compreensão dos direitos da cidadania no Brasil, como já foi exposto, é de que estes só se realizarão inteiramente quando reformas profundas tornarem os procedimentos decisórios referentes às práticas deliberativas, acessíveis a todas as camadas sociais. Deste modo, a formação de um cidadão independente e atuante, com uma consciência crítica em relação aos atos da administração pública é elemento – chave na inserção da sociedade brasileira em um contexto que seja mais solidário e justo, permitindo uma inclusão social verdadeiramente democrática.

A este respeito, com sabedoria e visão de futuro, já afirmava Sérgio Buarque de Holanda na sua famosa obra Raízes do Brasil, que "a experiência já tem mostrado largamente como a pura e simples substituição dos detentores do poder público é um remédio aleatório, quando não precedida e até certo ponto determinada por transformações complexas e verdadeiramente estruturais na vida da sociedade."(15)


Notas

1. "É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo..." HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p. 160.

2. A grosso modo, na visão de Kelsen, a liberdade do homem se efetiva (maximiza) no momento em que este participa da vontade do Estado, o que aconteceria nas eleições. Ou seja, há uma redução dos direitos políticos de participação, ao ato de votar.

3. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia, p. 43. Ver, ainda, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, pp. 47 – 51, BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução, pp. 12 – 17.

4. AVRITZER, Leonardo (coordenador). Sociedade Civil e Democratização, pp. 291 – 292. Neste sentido, conferir, ARENDT, Hannah. Da Revolução, pp. 198 – 204.

5. PIOVESAN, Flávia. Op.cit. p. 50.

6. PÉREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales, p. 19.

7. "A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos." HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, tomo II, p.92.

8. Uma conversa sobre questões da teoria política. Entrevista de Jürgen Habermas a Mikael Carlhedem e René Gabriels. CEBRAP(Novos Estudos), no. 47, p. 88.

9. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit, p. 104.

10. Hannah Arendt entende ser o Poder a capacidade humana—intersubjetividade—para atuar em conjunto.

11. Ação Estratégica significando, a grosso modo, a competição pelo exercício do poder, não ao entendimento mútuo.

12. GRAU, Eros Roberto. Direito, Conceito e Normas Jurídicas, p.37.

13. FARIAS, José Eduardo. Poder e Legitimidade, p. 63.

14. "Isso faz com que a democracia seja sinônimo de auto – organização política da sociedade." HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 20. Tomo I.

15. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit, p.178.


Bibliografia

ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Universidade de Brasília (co – edição com a Editora Ática), 1988.

AVRITZER, Leonardo(coordenador). Sociedade Civil e Democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução. Belo Horizonte: Movimento Editorial da FDUFMG (nova fase), 1995.

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997.

FARIAS, José Eduardo. Poder e legitimidade: Uma Introdução à Política do Direito. São Paulo: Perspectiva, 1978.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 13a.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

DELGADO, Mauricio Godinho. Democracia e Justiça – sistema judicial e construção democrática no Brasil.. São Paulo: LTr, 1993.

GRAU, Eros Roberto. Direito, Conceito e Normas Jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, tomo I e II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

________________. Uma conversa sobre questões da teoria política – entrevista de Jürgen Habermas a Mikael Carlehedem e René Gabriels. CEBRAP (Novos Estudos), no.47, pp. 85 – 102, março, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3a. Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MATA – MACHADO, Edgar de Godói da. Memorial de Idéias Políticas. Belo Horizonte: Vega, 1975.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4a. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6a. ed. Madrid: Tecnos, 1995.

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Sobre o autor
Francisco de Castilho Prates

acadêmico de Direito na UFMG, Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRATES, Francisco Castilho. Cidadania, Poder e Exclusão Social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2105. Acesso em: 22 nov. 2024.

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