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A PEC 341/09 e o “enxugamento” da Constituição

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Querer reescrever a constituição denuncia uma certa fobia democrática, em que impera o velho e batido argumento de que a elaboração de uma constitução é um problema técnico; de que a extensão da nossa carta cidadã tornou o país ingovernável.

 

“Isto não é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações não terá sido mera coincidência”. Essa advertência prévia serve para alertar o leitor sobre certo tipo de mentalidade presente no imaginário social e jurídico constitucional e que se encontra refletida na proposta de emenda constitucional 341/09. Encaminhada pelo deputado federal Régis de Oliveira (PSC-SP), a proposta pretende realizar certo tipo de “enxugamento”, de “desconstitucionalização” da Constitução.

Não por acaso, muitos dos fundamentos presentes na PEC 341/09 são encontrados na PEC 157/03, que pretendeu instituir uma espécia de assembléia constituinte revisora, fato que mereceu um número exclusivo do Observatório da Constituição e da Democracia sobre o tema. Importante destacar que o artigo Discutindo o essencial de Paulo Blair – presente naquela edição – foi utilizado pelo deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh como fundamento do seu voto pelo arquivamento do projeto.

Como se vê, a tentativa de “reciclagem” constitucional não é nova. Nem seus argumentos. Mas, no presente caso, um aspecto pode-se dizer original: a sua amplitude. Busca-se reduzir o número de artigos da constituição de 250 para 70 e do ADCT de 96 artigos para 1! Para conseguir tal façanha, o autor da PEC sugere retirar da Constituição qualquer assunto que não diga respeito à estrutura dos três poderes e aos direitos e garantias individuais dos cidadãos. Ademais, além de alterar várias normas constitucionais – inclusive na questão de direitos sociais e políticos –, a proposta pretende excluir do texto da Constituição os dispositivos referentes à política urbana, agrícola, fundiária e reforma agrária, sistema financeiro nacional, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente, família, criança e adolescente, idosos e índios.

Dentre os vários argumentos – citados entre aspas no presente artigo – do deputado e jurista Régis de Oliveira, esse parece ser o mais emblemático: o de que o texto de 88 foi fruto de uma mentalidade segundo a qual todos os temas deveriam estar na Constituição. “Para impossibilitar outra ditadura, decidimos colocar tudo na Constituição. Todo mundo está na Constituição. Esse momento histórico não existe mais. As instituições estão funcionando regularmente. Os direitos e garantias individuais estão preservados”. Isso faz com que seja imprescindível a exclusão dos “excessos”, retomando, assim, o diálogo sobre a “pureza do conteúdo constitucional”, isto é, sobre o que seria a “essência constitucional”.

Para o parlamentar, o fato da Constituição de 1988 ser excessivamente detalhista proporciona uma série de incômodos, como o ativismo judicial e a pressão de movimentos sociais e profissionais pela inclusão de dispositivos que sejam do seu interesse, o que favorece uma avalanche de propostas de mudança constitucional pelo legislativo. Assim, o ideal seria uma constituição sintética, enxuta, que contenha apenas os princípios básicos da convivência social. O resto ficaria para o legislador que daria “vida às normas”.

Mas, indagado se tal proposta não demandaria a convocação de uma assembléia constituinte, o que pareceria óbvio, responde o deputado Regis de Oliveira: “não haveria necessidade, já que não se está alterando nada, mas apenas tirando o que não é constitucional para que seja confirmado em leis complementares”. Para ele, a lógica da reforma constitucional seria simples, até aritmética, pois “se é possível mudar um, dois, três artigos, por que não 200? Não se pode medir isso com uma trena”.

O que pareceria um devaneio de um determinado membro do Congresso Nacional transformou-se em uma possibilidade concreta. Além de ter sido assinada por mais de um terço dos membros da Câmara dos Deputados, a PEC 341/09 teve parecer favorável do relator da matéria, o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA). Para o relator, além de não atentar contra as cláusulas pétreas, a proposta vem ao encontro dos “anseios” de vários segmentos da sociedade, pois o inchaço na Constituição “diminui sua importância, relativiza a força de seus dispositivos, impede a sua adequação à realidade”. Para tanto, a Constituição deveria deixar de ser um “catálogo telefônico” – expressão utilizada no parecer – para se tornar um documento “tecnicamente enxuto”, na medida em que essa seria a medida mais acertada para evitar o seu “fracasso”.

Não obstante a força desse senso comum, o relator reconhece que a tarefa não será fácil, pois “quem fez a Constituição e ainda está na Casa vai tentar preservar sua obra”. Então, lança a sedutora proposta: “será preciso vencer o debate dizendo que eles vão reescrever essa obra de forma contemporânea. Longe de desmerecer aquela obra de 21 anos atrás, vamos renová-la e reciclá-la”.

Tais argumentos são de causar espanto, especialmente porque reproduzem uma determinada semântica que se desdobra em três vertentes: a crença no poder dos textos, a compreensão do público como estatal e a completa desconsideração do caráter democrático e plural do processo de elaboração da atual constituição brasileira.

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O primeiro desdobramento é a crença, a ingenuidade, de acreditar que o “enxugamento” do texto possibilitará o controle do sentido da Constituição. Ora, texto nenhum tem esse poder, quanto mais a falta dele. Ao contrário, devemos assumir o risco da indeterminação da linguagem. Observar que uma constituição é, por essência, um documento aberto ao/no tempo, suscetível de ser abraçado pelos mais diversos movimentos sociais e que para ser aplicado necessita ser interpretado.

Em segundo lugar, ao separar, de forma quase absoluta, o conteúdo constitucional em poder/resistência ao poder, os defensores da PEC 341/09 acabam por desconsiderar o sentido de uma democracia constitucional, em que público nem sempre é sinônimo de estatal. O constitucionalismo e, assim, a própria Constituição de um Estado Democrático de Direito, não pode ser mais compreendido em termos meramente liberais, como a defesa de uma esfera privada enquanto liberdade negativa, naturalisticamente concebida. Logo, só pode ser qualificado de constituição o documento que for construído de maneira democrática; por outro lado, só é democrática a prática institucional que respeite os direitos previstos constitucionamente.

 Por último, pretender excluir, ainda mais de uma vez só, quase 200 artigos do texto constitucional é, no mínimo, fraude. Querer reescrever a constituição, minimizando a importância do processo constiuinte de 87-88, denuncia uma certa fobia democrática, onde impera o velho e batido argumento de que a elaboração de uma constitução é um problema técnico; de que a extensão da nossa carta cidadã tornou o país ingovernável.

Longe de tratamentos estéticos, o que a Constituição de 1988 realmente precisa é de respeito. Respeito pelo que ela foi, é e ainda pode ser. Fruto de um processo democrático como jamais visto na história constitucional brasileira, a atual Constituição vive um momento de celebração da tradição que constituiu em 88, o que de forma nenhuma acaba com a necessidade de uma permanente reflexão e afirmação do seu significado. Afinal, parodiando o arquiteto Mies Van Der Rohe, pelo menos nesse caso, “menos nem sempre é mais”.

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Sobre o autor
Raphael Peixoto de Paula Marques

acadêmico de Direito da Unipê, em João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Raphael Peixoto Paula. A PEC 341/09 e o “enxugamento” da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3158, 23 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21146. Acesso em: 24 abr. 2024.

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