III – PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
É certo que pelo princípio da legalidade são postos limites ao arbítrio judicial, mas nada impede que o Estado, respeitada a reserva legal, crie tipos penais inócuos e comine sanções cruéis e degradantes, no dizer de BITENCOURT(1999). Denota-se, com isso, a necessidade de limitação do arbítrio do legislador.
Pelo Princípio da Intervenção Mínima busca-se essa delimitação do desiderato legislativo. Esse princípio assenta no pressuposto de que o Direito Penal somente deve intervir na vida social em ocasiões estritamente necessárias, ou melhor, para tutelar bens jurídicos relevantes para a vida do indivíduo e, por conseguinte, os da própria sociedade. Deixa-se para outros ramos do Direito a solução dos problemas sociais, somente quando estes falham entra em cena o Direito Penal, atuando como ultima ratio do ordenamento jurídico.
Como bem enfatiza LUISI(16), citado por BITENCOURT(1999), o Princípio da Intervenção Mínima, como meio de limitação da atividade punitiva estatal, tem origem com a declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao prescrever em seu art. 8º " a lei apenas deve estabelecer penas estrita e devidamente necessárias". Busca-se, desta forma, evitar o arbítrio do legislador e, consequentemente, a feitura de normas penais injustas e mesmo inócuas para alcançar o fim a que se destinam.
O Princípio da Intervenção Mínima decorre do caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal, constitui-se de uma forma de controle da atividade punitiva estatal.
A natureza subsidiária consiste em que a atuação punitiva somente é necessária quando todos os outros meios de controle social fracassaram em manter a ordem jurídico-social. O Direito Penal justifica sua intervenção na medida em que fracassaram as outras formas de proteção do bem jurídico, previstas em outros ramos do Direito.
Destarte, havendo outras alternativas extrapenais para a solução de um conflito, a incidência do Direito Penal, culminando uma pena, não se justifica e ofende, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, pois constitui o meio mais violento de coerção social. A "violência penal", neste contexto, surge como último meio de controle jurídico-social.
A feição fragmentária do Direito Penal, refere-se à restrição de sua atuação tão somente na tutela de bens jurídicos imprescindíveis para a vida em sociedade. A relevância do dano a certos interesses ou a bens é relativa, segundo os critérios de tempo e lugar, impondo ao estudioso e ao intérprete das leis penais constantes interrogações sobre a validade das normas incriminatórias. Em alguns desses casos, a intervenção estatal, mostra-se inócua e desvestida de qualquer função de tutela em virtude do desvalor do bem. É o que se denota no caso dos delitos contra a honra – calúnia, difamação e injúria – tiveram sua razão de ser ao tempo em que foram tipificadas tais condutas, nos idos anos de 1940, hoje é inócua a manutenção dessas condutas na seara de tutela do Direito Penal. Outro exemplo, que se pode enumerar é o crime de adultério, cuja norma presente no Código Penal Brasileiro, foi como que revogada pelos usos e costumes ou mesmo, pela utilização de outras esferas do Direito.
A fragmentariedade do Direito Penal, no entendimento de CONDE(17), citado por BITENCOURT(1999), apresenta-se sob três aspectos: em primeiro lugar defendo o bem jurídico somente contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punibilidade da prática imprudente de alguns casos; em segundo lugar, tipificando somente partes das condutas que os outros ramos do Direito consideram antijurídicas; e , finalmente, deixando, em princípio, sem punir ações meramente imorais, como a homossexualidade e a mentira.
É fundamental para a garantia das liberdades individuais, a observância aos limites traçados para a atuação do poder punitivo estatal, tendo em vista que, a pena, principalmente a privativa de liberdade, retira do indivíduo o direito à liberdade da pessoa, consagrado e fortemente protegido pela Constituição Federal de 1988, cuja restrição somente é cabível quando se trata de ofensa a bem jurídico compatível com este direito.
O Princípio da Intervenção Mínima foi consagrado pelo movimento iluminista, este culminou na elaboração da Declaração Universal do Homem e do Cidadão, porém hoje, a verdade é que, a partir da segunda metade do Século XIX, as normas incriminadoras cresceram desmedidamente, a ponto de alarmar os penalistas dos mais diferentes parâmetros culturais.
É latente que a ordem positiva brasileira faz parte dessa orientação, abusa-se da criminilização e da penalização, descarta-se o Princípio da Intervenção Mínima, editando-se normas penais em meio a um grande sentimento de inseguridade social, em decorrência do aumento da criminalidade.
Estas leis que ampliam o universo de condutas puníveis penalizando-as de forma mais rigorosa, em detrimento das sanções já existentes, levam o Direito Penal ao descrédito, por perder sua força intimidativa.
Acorda-se com HASSENER(18), citado por BITENCOURT(1999), na sua afirmativa que o " princípio da ultima ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução de conflitos; a resposta surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais freqüentemente como a primeira, senão a única saída par controlar os problemas".
Como se observa , o caminho trilhado pelo legislador brasileiro está na contramão da orientações dogmáticas correntes, estas sustentam um estudo mais apurado e seletivo dos bens que realmente devem ser tutelados pelo Direito Penal.
A evolução e sedimentação do Princípio da Intervenção Mínima, desde que, observado no momento das tipificações de condutas, será capaz de revitalizar todo o vigor e eficácia do Direito Penal, como meio extremo de pacificação social. Para tanto, é necessário uma reestruturação do sistema penal, quer dizer, extrair do Código vigente, figuras que claramente não se conformam à necessidade jurídico-social de intervenção do Direito Penal.
O legislador ao selecionar o bem jurídico sobre o qual deva recair a tutela penal, deve levar em consideração uma série de fatores, como as condições de tempo e espaço, a conjuntura social, o preparo dos órgãos cuja função é a aplicação da lei penal e principalmente a repercussão que a lesividade a esse bem possa provocar na corpo social.
Nesse entendimento, pode-se afirmar que a tutela concedida a cada bem jurídico deve ser diretamente proporcional à sua natureza. A proteção dada a bens disponíveis não pode ser equivalentes a dispensada aos bens indisponíveis. Contudo, isto quer dizer, que haja sobreposição de uns sobre os outros, mas sim que devem ser tratados de forma apropriada na medida que se desigualam por suas próprias características.
O bem jurídico honra, tutelado pelo Código Penal, nas descrições típicas de calúnia, difamação e injúria, deveria ser protegido por outro meios de tutela, levando-se em consideração a sua natureza de bem disponível, em que o consentimento do ofendido impede a atuação do Direito Penal.
Concedida a livre disposição do bem jurídico honra, o consentimento coloca-se em pé de igualdade com o poder soberano do Estado, impedindo a aplicação da Lei Penal por ele promulgada. Neste caso é descabida a continuação dos crimes contra a honra no rol de proteção penal, porque o Direito Penal faz parte do ramo do Direito Público, constituído de normas cogentes, em que a transação ou a sua disponibilidade da norma colocada, não tem espaço para existir afastando a aplicação do mandamento legal.
Com esse raciocínio e pelos argumentos já expostos, estabelece-se a correlação entre o consentimento do ofendido nos crimes contra a honra e o Princípio da Intervenção Mínima, na medida em que a aquiescência na lesão a esse bem jurídico tem o condão de repelir a atuação do Direito Penal. Com base nisso, ocorrendo o afastamento da tutela penal pelo livre desiderato do titular da honra, o Direito Penal não deve se ocupar de proteger esse bem, deixando este encargo para outras formas de proteção.
Desta maneira deve ser observada a aplicação do Princípio da Intervenção Mínima pelo legislador, descriminalizando as condutas tipificadas nos art. 138, art.139 e art. 140 do Código Penal. Uma vez que, antes de tudo, com a prática de tais crimes não é possível a volta ao status quo ante, de bem jurídico ileso, neste caso invoca-se a figura da tentativa de recolhimento de todo um maço penas lançadas ao vento do terraço de um edifício.
Acredita-se, porém, que com os usos e costumes da era atual, a lesividade à honra tem precipuamente reflexos econômicos, devendo ser buscado o ressarcimento no âmbito civil. Já que, os preceitos inclusos na própria Constituição Federal de 1988 é neste sentido, ex vi, do seu art. 5º, inciso V:
"Art. 5º - (.)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização pelo dano material, moral ou à imagem."
Pelo Direito Penal não tem como propiciar tal reparação, porque a função desta área do direito, não é promover a vingança em nome do cidadão, simplesmente por motivos morais e de dano à imagem. Porém, como já mencionado, persecução do Direito Penal visa a proteção de bens jurídicos com sentido social próprio em si decidido, para não se socorres desvalorações subjetivas.
A menor intervenção penal, antes de significar um corte radical do Direito Penal, é uma idéia de atuação sensata do Estado voltada a proteger penalmente os bens relevantes da comunidade.
Observa-se que quando a ordem jurídica concede ao titular de um bem, a disponibilidade da proteção a ele dirigida, que se materializa no consentimento das lesões, como no caso da honra, este bem não possui um proeminente importância social. Impõe-se desta forma a aplicação do Princípio da Intervenção Mínima descriminalizando as condutas que lesão tal bem.
Isto tudo, com base, na colocação de ponto central do Direito Penal, a tutela do bem jurídico, cujo conceito não é imutável, mas variável de acordo com os rumos e prioridades perseguidos pela comunidade, personalizada no Estado. Aquilo que em épocas passadas ostentava a categoria de bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, especialmente os crimes contra a honra, pode hoje prescindir dessa intervenção, na medida que outro meios sejam mais eficientes para corrigir os desvios sociais e garantir aquele valor ético-social.
CONCLUSÃO
De toda a explanação conclui-se que a função do Direito Penal é proteção dos bens jurídicos que fundamentam e orientam a sua própria atuação.
É reconhecido que bem jurídico não é todo bem, mas sim aquele que a lei elege como tal, e que, tampouco, todo bem jurídico está sob a tutela do Direito Penal, pois é impossível que se afaste todos os perigos de lesão ou lesão efetiva, somente com o Direito Penal e ainda, a sua atuação não se mostra necessária em todas as lesões.
Destarte, na seleção dos bens jurídicos pelo legislador, deve ser levada em consideração a danosidade social que a lesão a tal bem possa provocar. Coloca-se como outro pressuposto para a seleção a própria natureza da objetividade jurídica do bem. Visto que, ensejando a disponibilidade do mesmo, abre-se um campo para a justificação da conduta pelo consentimento do ofendido, funcionando este como causa supralegal de justificação nos crimes em que não seja elementar do tipo.
A honra é um bem jurídico disponível, ou seja, pode ser dispensada a tutela penal sobre tal bem pelo ofendido através do seu consentimento válido. Assim é de se ver que as normas penais que censuram as condutas lesivas à honra tornam se inócuas para o fim de pacificação social, pois o manejo delas é vinculado ao desiderato do titular desse bem.
Por razões de política criminal, afirma-se que as condutas puníveis com pena, elencadas nos arts. 138, 139 e 140 todos do Código Penal, deveriam deixar ser extirpadas de tal estatuto. Inclina-se para a descriminalização dos crimes de calúnia, difamação e injúria, pois pelo próprio consentimento do ofendido coloca-se uma barreira para a atuação do Direito Penal e mais, observa-se que tais normas forma como que revogadas pelos usos e costumes ou mesmo, pela utilização de outras esferas do Direito, para a sua satisfação de seu interesse.
Propugna-se pelo "enxugamento" do Código Penal, abrindo-se deste modo um caminho para a aplicação do Princípio da Intervenção Mínima pelo legislador penal, buscando a essência do bem, a danosidade social da lesão a ele, as causas que podem afastar a aplicação das normas penais que protegem tal bem, como o consentimento do ofendido, e por último a necessidade de atuação do Direito Penal, como ultima ratio para a proteção do bem e conseqüente pacificação social. Isto é colocado em especial para os crimes contra a honra que hodiernamente fazem parte do rol de interesses jurídicos tutelados pelo Direito Penal, que mesmo tendo características de Direito Privado estão insertos no âmbito do direito Público.
Notas
1. BETIOL, Diritto penale, p. 179
2. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafecht, p.4
3. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafecht, p. 05
4. Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal,1994, p. 16.
5. Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal,1994, p.19.
6. Damásio E. de JESUS. Direito Penal, Vol. II, 1999, p. 197.
7. RANIERI, Silvio. Manuale di diritto penale. Padova, Antonio Milani, 1956, p. 152.
8. MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Tomo I, trad. Jose Anturo Rodriguez Muñoz, Madrid, Editora Revista de Derecho Privado, 1955, p. 414.
9. BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967.
10.Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal,1994, p. 214.
11. TOLEDO, Francisco de Assis . Ilicitude Penal e Causas de sua exclusão, 1990, p. 129
12. Damásio E. de JESUS. Direito Penal, Vol. II, 1999, p. 205.
13. Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal,1994, p. 16.
14. Hans-Heinrich JESCHECK. Tratado de Derecho Penal; Parte General. 1993, p. 315.
15. Damásio E. de JESUS. Direito Penal, Vol. II, 1999, p. 197.
16. LUISI, Luisi. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p.27.
17.Muñoz CONDE. Introducion ao Derecho Penal. 1988, p. 72.
18. Winfried HASSENER. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre, Publicação Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.
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