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Arte, Literatura e Direito: a subjetividade e a lei

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19/03/2012 às 17:03
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O que pode significar o conhecimento jurídico produzido na intercessão das disciplinas de Direito e Literatura? Trata-se de fazer da Arte e da Literatura objetos de estudos jurídicos sob o signo da subjetividade e a lei? Mas o que significa isso?

A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui”.

PROUST, Marcel, “Sobre a leitura

Tenho me perguntado: o que pode significar o conhecimento jurídico produzido na intercessão das disciplinas de Direito e Literatura? A única coisa que me vem à consciência é a imagem da história do “Sr. Keuner e o desenho de sua sobrinha”, de Bertold Brecht. O Sr. Keuner é o personagem através do qual Brecht, de prosa curta e de forma clara, expressa sua experiência moral. Foram escritos entre 1934 e meados de 1950. O Sr Keuner é o Sr. Brecht, um dos poetas, dramaturgos e literatos mais determinantes do século XX. A história é a seguintes:

“O Sr Keuner observou o desenho da sua sobrinha pequena. Representava uma galinha voando sobre um pátio. “Por que a sua galinha tem três pernas?”perguntou ele: “As galinhas não voam”, respondeu a pequena artista, “por isso precisei de mais uma perna para dar o impulso”. Oh! “Estou contente por ter perguntado”, disse o Sr. Keuner” (BRECHT, 1989).

Ri muito pensando nisso: que o “programa de Direito e Literatura” não seria uma galinha de três pernas. Evidentemente eu estava informado do que se trata, mas não convencido, de que:

(1) a Literatura pode, hipoteticamente, ter um papel essencial ao provocar a ciência Jurídica a olhar para si mesma (?), “revendo as suas posturas formalistas e tradicionais” (?) (OST, 2004); de que

(2) através da Literatura poderia ser realizado, hipoteticamente, “um trabalho de interpelação do jurídico (?), fragilizando os pretensos saberes positivos sobre os quais o Direito tenta apoiar sua própria positividade” (?) (OST, 2004); de que

(3) a Literatura permitiria, hipoteticamente, “aos juristas enfrentarem questões éticas e morais (?), cujas respostas não se encontram nos manuais e muito menos nos Códigos” (?) (TRINDADE e GUBERT, 2008) etc.

Mesmo assim, a coisa é tão paradoxal que uma suspeita indefinida ocupava (e ainda ocupa) meu espírito (como isso seria possível?) provocando-me uma espécie salutar de dúvida e certa gagueira de idéias. A Literatura? Por isso, posso fazer minhas as seguintes palavras de George Bataille: “só posso dar uma expressão obscura de minhas idéias”. Mas o que pode acontecer com o espírito do Direito com a imposição de dobrar-se a Literatura, ou priorizar a sua área de intercessão? Como muito bem observou Arthur Schopenhauer, sobre a erudição inútil, em “Sobre livros e leituras”:

“Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pelo peso contínuo de um corpo estranho, o mesmo acontece com o espírito pela imposição ininterrupta de pensamentos alheios. E assim como o estômago se estraga pelo excesso de alimentação e, desta maneira prejudique o corpo todo, do mesmo modo pode-se também, por excesso de alimentação do espírito, abarrotá-lo e sufocá-lo” (SCHOPENHAUER, 1994).

Evidentemente, Schopenhauer advogava a importância do ato de ler, mas advertia sobre os seus excessos e desvirtuamento. O mal terrível que seria confundir as esferas do saber; seria tirânico ou ridículo (Spinoza). O fato é que no dia seguinte, com bom-humor, já me divertia imaginando livremente, antes do café da manhã, com a quantidade de bobagem que era possível dizer a propósito (obscurecendo o jurídico), sem sair do campo hermenêutico da Literatura, fazendo da Arte (no caso, teatral e televisiva) a terceira perna, a perna de impulso para o vôo da galinha. Trabalho de merchandising! É que me ocorreu pensar no programa semanal de Direito e Literatura, produzido pelo INSTITUTO DE HERMENÊUTICA JURÍDICA (IHJ), em parceria com a TVE/RS, apresentado pelo Procurador de Justiça Lenio Luís Streck e patrocinado pelo PPGDireito da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS). Assisti a maioria dos programas, por isso devo dizer que eles não serviram para balizar minhas reflexões, já que não as faço por divertimento artístico ou erudição inútil. Dobrei-me, é verdade, a enorme, inesperada e superficial fertilidade do tema ao ler na “Revista VIDERE” (Revista da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados), o artigo do professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal), Paulo Ferreira da Cunha, “O Direito e o Principezinho”, que se propunha “tomar a obra de Saint-Exupéry como a grande metáfora para o Direito e as coisas jurídicas” (DA CUNHA, 2009). Sem comentário! – Mas o que se revelou é que o “Principezinho” português ainda não conhecia o seu reino e não sabia reinar e vivia no mundo da Lua, e, no entanto, vinha maroto nos dar lição. A nós, que temos a lição saudável de Maquiavel!... Bom!

NA VERDADE QUALQUER PROGRAMA de Direito & Literatura não passa de reflexões estéticas sobre a recepção do Direito na obra de Arte (no caso, literária), e geralmente superficiais em relação à contribuição do Direito ou para o Direito. Encontramos em todos os tempos algumas visões críticas duras, e somente isso. Por exemplo, Aristófanes, em sua obra cômica teatral, “As vespas”, ridiculariza os Tribunais de Atenas, imputando aos juízes comportamento venais e irresponsáveis. Thomas More, em “A utopia”, baniu os advogados, reputando-lhes como espertalhões que manipulam os processos e distorcem leis. Rebelais, em “Gargântua e Pontagruel”, cogitou de um juiz que decidia pleitos pelos dados. Gregório de Matos Guerra (1636-1695), o maior poeta barroco do Brasil, criticou asperamente a Justiça de seu tempo. Dizia ele:

Que falta nesta cidade?

Verdade

Que mais por sua desonra?

Honra

Falta mais que se lhe ponha?

Vergonha

(...)

E que justiça a resguarda?

Bastarda

É grátis distribuída?

Vendida

Que tem que a todos assusta?

Injusta.

E vai por aí... Martins Pena, em picante peça teatral, “O juiz de Paz na Roça”, descreve um juiz que “amava presentes como bananas e ovos”... Cada um crítica a Justiça de seu tempo, com humor e contundência... Atualiza-se, sempre, a suspeita e o desprezo de Saint-Simon pelo Direito, considerado por ele como obra “de legistas e metafísicos”, cujo único objetivo seria camuflar a sua “sede insaciável de poder”, ou de Augusto Comte que, sob influência provável de De Maistre e de Bonald, vê apenas no Direito um “vestígio metafísico (...), tão absurdo como imoral”. E romances como “O processo”, de Kafka, “O estrangeiro”, de Camus, ou “Zero e o infinito” de Koestler, entre tantos outros, atestam a angústia do século em relação, por exemplo, a um Direito Penal que a razão não parece mais atingir (Cf. VALADÃO, 2008).

O QUE TENHO PRESENCIADO NOS PROGRAMAS de Direito e Literatura, é que, em regra, deixa o Direito a deriva e limita-se a olhar a genialidade da obra e do autor do Romance, e a divertir-se com o seu senso de humor crítico a tripudiar os “profissionais do Direito”. Uma espécie de auto-emulação! O Direito é subsidiário, coadjuvante, figurante! Neles o Direito, no que difere da Literatura, apresenta-se com a espessura de uma carta de baralho, susceptível, portanto, a maneira de um blefe, a todas as visões críticas ingênuas ou volúveis e às vezes cruéis e verazes que o embaralha e descarta... No sentido contrário, a Literatura avoluma-se, torna-se substancial, e o Direito, apenas acessório. Simples erro de perspectiva? Talvez! É verdade que a distância que separa a obra de um Shakespeare, Cervantes, Balzac, Proust, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha etc., da obra de um Jurista, é incomensurável, do ponto de vista da obra de Arte e de seu papel social poético e estético. E além daí, que dizer?

QUE SÃO OS DIGESTOS, OS PANDECTAS, OS CÓDIGOS?” a pergunta é de Erasmo, encontra-se no “Elogio da Loucura”. E a resposta também: “Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência” (ROTTERDAM, 1979). A resposta de Erasmo faz justiça a realidade? Sim e não! A verdade é que a intersecção do Direito e Literatura está sendo vista pelo avesso, e não a maneira de Stendhal... Stendhal, segundo Zola, ao trabalhar em um romance procurava, para obter o tom, ler “todas as manhãs algumas páginas do Código Civil, antes de se por ao trabalho”. Mas segundo Zola, tratava-se para Stendhal de que o grande charme da narrativa, qualquer que seja, era “colocar em pé criaturas vivas, representar diante dos leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível” (ZOLA, 1995). O Romance perscruta seu enredo no espelho do Código Civil, que como o espelho mágico do “Conto do Escudeiro” do poeta britânico Geoffrey Chaucer, torna a quem o consulta capaz de premonição:

Esse espelho

Tem tal poder, que nele podem os homens ver

Quando está para lhes ocorrer alguma adversidade.

A vós e a vosso reino também,

E revelar quem é seu amigo e quem é inimigo.

Mais do que isso, se alguma bela dama

Por algum cavaleiro se enamorar,

Se falso ele se mostrar, sua traição ela enxergará.  

E assim o rei Cambinskan pode governar com justa energia, graças ao espelho mágico dado de presente pelo rei da Arábia e da Índia! (Cf. COLBERT, 2001). Então, é claro, que encontraremos, em Stendhal personagens envolvidos em questão de Direito; para ele o Direito era o espelho de nossa realidade mais viva, mais problemática, e nela, mesmo através da transgressão, todos os personagens deveriam necessariamente nele caminhar para não afogar-se em irrealidade. Na verdade um romancista não precisa ler o Código Civil; na trama e nas ações normais, transgressivas ou omissas dos seus personagens estarão presentes, (em inter, ou meta texto), naturalmente, questões jurídicas. Nada mais fácil do que observá-las, destacá-las e tagarelar sobre a sua descoberta por reversão, inversão, afirmação ou negação... Subversão! E podemos dizer que num Romance o Direito transparece na força operativa dos sentimentos dos personagens em demanda dos seus interesses, sejam eles justo ou injusto, moral ou imoral, generosos ou cruéis...  E assim se produz este lugar que é o campo de intersecção entre Direito e Literatura. Mas, é verdade, alguns textos literários permitem que se mantenham sobre eles conversas interessantes que, sem dúvida, entretém e, às vezes, quando vistos no espelho mágico do Direito (ora dogmático ora zetético), auxiliam a investigação jurídica. Alguns já de reconhecida referência, tais como: “Antígona”, de Sófocles (c.496 a.C – 406 a.c), “Cães de Província”, Luís Antônio de Assis Brasil (1945-); “Germinal”, de Emile Zóla (1840 – 1902); “1984”, de George Orwell (1903 – 1950); e, “Na Colônia penal”, de Franz Kafka (1883 – 1924) etc. A lista é interminável! Enfim,...

Propus-me a falar sobre “A Subjetividade e a Lei”, por que me ocorreu pensar no grande jurista Orlando Silva e em sua obra-prima, “A crise do Direito” (SILVA, 1955), que hoje é uma raridade bibliográfica. Orlando Silva, nos anos 1950, questionava tudo e, sobretudo, diz Luís Fernando Cabeda, em seu excelente ensaio “A Justiça Agoniza” (CABEDA, 1988):

- “o Direito Positivo e a sua relação com a realidade social efetiva, sua elaboração e sua aplicação frente a esta”. E mais:

- “Orlando Silva revisou o quadro de insuficiência e de descrença na Legislação, levantando a tese da decadência do jurista francês Georges Ripert, e mais especialmente a anomia denunciada por Léon Duguit”,

-“ele questionou ponto a ponto (no Brasil) os temas da força geradora dos direitos”;

- “o declínio da interpretação imanente as Normas” (...);

- “a formação de regras heterônomas em relação ao Estado cuja efetividade era crescente”; “(...);

- “a desmoralização da teoria da vontade, diante do molde do contrato de adesão (ou outras formas em que a manifestação da vontade é acessória e não substantiva) etc.;...”

Pois bem! O tema, “A subjetividade e a Lei”, insere-se no escopo das reflexões sobre a situação terminal do Direito; depois da crise, depois da agonia, portanto, em sua própria normalidade e insensatez, ou seja, indaga radicalmente: vivemos em um tempo em que podemos falar de flores sem nos calar as injustiças? Neste sentido, talvez possamos utilizar Stendhal, Balzac, Machado de Assis etc.: na busca de captar a “realidade social efetiva” onde se cria e aplica o Direito, isto é, a ficção, sem dúvida, pode nos oferecer uma grande contribuição para conhecermos o “Sujeito de Direito” que são os personagens em movimento, em ação e em situação de experimentação no enredo de um romance... Por exemplo:

(1) Georges Orwell, em “1984”, seu romance mais impactante e visionário em que a decência humana desapareceu com a memória, e as emoções que unem as pessoas foram transformadas em medo. A liberdade de pensamento se torna impossível, como demonstra a malfadada luta do protagonista em busca de contato humano e de expressão própria. A idéia dos defensores da intersecção necessária entre Direito e Literatura, portanto, me parece esdrúxula, ou seja, tendo como referência “1984”, de Orwell, abordar temas relacionados ao Estado, o Poder, a Sociedade etc., no âmbito de disciplinas como “Teoria do Estado”, “Teoria Geral do Direito”, “Língua Portuguesa”, “Filosofia do Direito”, “Ciência Política”, “Introdução ao Estudo do Direito” e “Direito Constitucional” (MARASCHIN et alii, 2009). Vejo que assim, a relação Direito e Literatura tornar-se desmedida, hiperbólica, falseada... Foge do sujeito e vai a encontro de um objeto. Eis o que Karl Otto Apel chama de contradição performativa. Ora, em “1984”, a Linguagem e a Literatura estão submetidas à política, o perigo agora, que começa a se manifestar com inocentes programas de Direito e Literatura, não seria subordiná-las ao Direito?

(2) Outro exemplo: em “Cães de Província”, de Luís Antonio de Assis Brasil, encontra-se, dizem, não somente “a influência dos costumes sobre os comportamentos”, mas, também, “a marginalidade do Mundo em relação à violência, ao adultério, a crueldade, as mentiras e a criminalidade” (Cf. MARASCHIN et alii, 2009). E assim, é verdade, quem sabe, se esta “marginalidade do Mundo” em “Cães de Província” não nos permita ver os paradoxos indomáveis e volúveis da afetividade tão cara ao Direito das Famílias? Seria importante! Ora, na verdade, não estamos construindo a marginalidade do Direito em relação aos mesmos temas? A “Ciência do Direito” não se torna o Mundo cuja marginalidade se constrói à margem da Literatura (e outras contribuições zetéticas) com todos os seus paradoxos, metáforas, metonímias, heterologos etc.? Ou seja, a Ciência do Direito à luz da Literatura, parafraseando Sampaio Bruno, “não será sempre menos para medir o que é demais”?...

(3) Neste sentido, temos “A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono”, de Sófocles, (diante das quais advogam os defensores do Programa de Direito e Literatura), que serve de apoio para as disciplinas de “Direito de Família e Sucessões”, e, “Psicologia Aplicada ao Direito”. E mais, com a Trilogia os alunos serão estimulados, segundo os defensores do Programa, a discutir o papel do Cidadão, o conflito entre Religião e Estado, e as relações de Poder no âmbito familiar etc. (MARASCHIN et alii, 2009). É possível! Mas em que base objetiva? E ainda, em que base subjetiva? Com qual medida política? Que paradigma histórico?... O risco é a roupa ser larga ou estreita demais! Enfim, como já disse, é evidente que, no caso da Trilogia de Sófocles, estamos em face de mais uma falsa projeção do Pequeno (a polis grega) sobre o Grande (a megalópolis moderna), ou seja, que os defensores do Programa de Direito e Literatura, ao considerarem a obra literária de uma sociedade antiga, pequena e agrária como o lugar de onde “retiramos as exigências constituídas de toda política” e do Direito moderno, não consideraram que talvez ela não passe de uma prótese-simbólica, ou seja, não se apresentam dispostas a aceitar a tese de Peter Sloterdjik, de que na sociedade contemporânea “a política do industrialismo” (que lhe é própria se destacou e) se destaca, sobretudo por não ter ela mesma conseguido inicialmente entender sua própria modernidade – motivo por que por muito tempo fez perdurar (e ainda o faz) as categorias políticas da era agrária (e política) nas épocas pós-agrária, transclássica e hiperpolítica, – daí certas transposições históricas poderem ainda ocorrer e, podemos concluir, favorecendo um certo irracionalismo e o imperialismo”, no caso, respectivamente, em e de certas idéias literárias (Cf. VALADÃO, 2010). Enfim,...

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4) Émile Zola. Sua carreira de escritor foi dominada por uma série de 20 romances de alcance impressionante, registrando uma época de grandes mudanças na França. A série “Os Rougon-Macquart” acompanhava duas famílias durante o Segundo Império francês (1852-1870). O objetivo de Zola era estudar como a hereditariedade e o ambiente influenciava o comportamento. A série “Os Rougan-Macquart” (1871-1893), inclui; “L’Assommoir” (1877), “Nana” (1880), “Germinal”(1855), “L’oeuvre” (1886), “A besta humana”(1890) e “A derrocada”(1892). Pois bem! Os defensores do programa Direito e Literatura, vêem em “Germinal” a possibilidade ou a oportunidade de “ser analisadas questões relativas às relações de trabalho, ao modo de produção capitalista, a super exploração da mão-de-obra” etc. (MARASCHIN et alii, 2009). Quer dizer: “Germinal” no lugar de, por exemplo, “A riqueza das Nações”, de Adam Smith (1723-1790), ou dos “Princípios de economia política e de tributação”, de David Ricardo (1772-1823), ou mesmo, e quem sabe, principalmente, de “O capital”, de Karl Marx (1818-1883), entre outras centenas de obras e autores importantes sobre a Economia Política, e, entre elas, no caso, a imprescindível “Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda” (1936) do economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946)... Que doideira!  Que dizer? Chegam mesmo a afirmar: “A leitura de “Germinal” permite analisar”, vejam bem:

“o processo de reprodução do trabalho no modelo capitalista,

- o processo de expansão do capital e as conseqüências para os trabalhadores,

- superexploração da mão-de-obra,

- trabalho infantil,

- seguridade social,

- despersonalização da empresa como fator de afastamento da responsabilidade sobre o empregado,

- papel dos intelectuais,

- papel da violência no contexto da luta de classes, Estado policial (greve tratada como caso de polícia),

- opacidade do direito (barreira que separa o direito de seu destinatário),

- relações interpessoais tratadas como negócio lucrativo,

- situação dos trabalhadores estrangeiros,

- relação entre homem e máquina,

- reflexo da greve na relação entre homens e mulheres, questão sindical” (MARASCHIN et alii, 2009).

O que não deixa de ser surpreendente, mesmo porque o núcleo fundamental de “Germinal” é a história de duas famílias, os Rougon-Macquart, e o objetivo de Zola era mostrar que o ambiente social exerce efeitos diretos e imprevisíveis sobre os laços de família, sobre os vínculos de amizade, sobre as relações entre os apaixonados, que deveriam interessar, justamente, os estudiosos de Direito de família (porque muito ilustrativo dos padrões e dilemas familiares e culturais), então, que dizer? O fato é que, é verdade, é fácil, instrutivo e prazeroso ler “Germinal”, e também que é difícil, científico e trabalhoso ler os autores clássicos e modernos da Economia Política. Mas o perigo reside, justamente, na promoção da preguiça, da superficialidade e da presunção no espírito dos “Bacharéis de Direito”. Neste sentido, ocorre-me o que disse o genial escritor Marcel Proust sobre a leitura (o que talvez explique porque os profissionais de Direito se voltam para a Literatura para enriquecer as reflexões jurídicas). Diz ele: “A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constituí”. E no parágrafo seguinte conclui:

“Há, contudo, certos casos, certos casos patológicos, por assim dizer, de depressão espiritual para os quais a leitura pode tornar-se uma espécie de disciplina curativa e se encarregar, por incitações repetidas, de reintroduzir perpetuamente um espírito preguiçoso na vida do espírito. Os livros desempenham então um papel análogo ao dos psicoterapeutas para certos neurastênicos” (PROUST, 1991).

Em outras palavras, a busca do atalho, do gosto pela leitura, do prazer estético, da forma mais fácil, do “jeitinho” e do pedantismo já são características extremamentes acentuadas dos universitários brasileiros em geral, por que promovê-las ainda mais? Literatura sim, muito, nunca é demais, não faltam escritores geniais, obras imprescindíveis, mas ela não constitui a vida espiritual, nem o espírito do Direito...

ARTE, LITERATURA, DIREITO: A SUBJETIVIDADE E A LEI. A problemática exige um pensamento complexo, diria Edgar Morin. Então...??? Não sei bem o que eu tinha na cabeça para propor-me a tarefa de desenvolver aqui, hoje, na SEMANA JURÍDICA, o tema. Então, espero que Karl Marx tenha razão: “O homem só se propõe tarefas que é capaz de cumprir”. O fato é que, tão logo aceitei o tema, volto a falar, deu-me um branco de idéias diante do que eu tinha em mente, e mesmo agora, gagueira de idéias... Difícil falar! Encontro-me como que engasgado pela tarefa: o tema anuncia a dominância da retórica sobre a lógica, da metáfora sobre o conceito, da interpretação sobre a representação e a diluição das fronteiras entre a Arte, a Literatura e o Direito na realidade da argumentação jurídica? Apresenta-se, então, um novo discurso jurídico que podemos definir inspirados em Maria Helena Varela, como portador de um “logos mais edificante do que sistemático, mais poético do que noético”? (Cf. VARELA, 1996). Bom, como o dito espanhol: “Não acredito em bruxas, mas que elas existem, elas existem”. O que significa que é preciso cautela! Mas devemos observar, en passant, que não se trata de raciocinar, essencialmente, em termos de ruptura e de liquidação, mas apenas constatar que a existência de um novo discurso jurídico e que ele é um discurso atópico, isto é, sem vínculo com uma posição pré-estabelecida (o que no Direito é paradoxal!) e, portanto, livre para engajar-se em qualquer parte? E eis o que é interessante: o nosso tema o engaja na “Arte, na Literatura, na Subjetividade e na Lei”. Temos então quatro engajamentos. 1) na Arte; 2) na Literatura; 3) na subjetividade; 4) na Lei. Por quê? Vejamos! Em sinopse, como dizia Platão.

(Ad hoc 1) Na Arte, porque assistimos ao desaparecimento político do homem em Auschwitz, em Hiroshima, nos Bálcãs, na Palestina etc. e, paradoxalmente, a partir daí assistimos a negação não só do homem, mas de toda representação, o que podemos observar, por exemplo, no desaparecimento do rosto humano na pintura ou no desvanecimento da paisagem depois do impressionismo etc. E, segundo Jean-François Mattei: “Só podemos subscrever essa constatação que ilumina o paradoxo constitutivo da Arte Moderna: o desaparecimento da figura do homem à medida que irrompe a subjetividade” (Cf. MATTEI, 2002). Que dizer mais? Não indicaria assim a proximidade do Direito com a Arte Moderna uma tendência para o suicídio? É possível! O suicídio, diria Albert Camus, é a verdadeira resposta filosófica, talvez a única, a questão da existência. Vale a pena viver? Eis a resposta: Bam! – Um tiro na cabeça! Quer dizer, não! Quais as intersecções possíveis entre Direito e Arte Moderna? É possível imaginar, por exemplo, um juiz com a face artística de Orlan? Ou uma sentença que reproduza a arte de Piero Manzoni? Explico-me: Orlan é o artista plástico que deformou “com silicone a testa e o rosto durante operações cirúrgicas que são performances artísticas; a escatologia. Piero Manzoni põe em conserva, em 90 latas, sua Merda d’artista e as vende em gramas pela cotação de ouro”...  (MATTEI, 2002). E mais: inevitavelmente e “sem fôlego, o niilismo estético exprimirá enfim o aniquilamento da vida: um jovem pintor japonês se suicida jogando-se do alto de um prédio sobre uma tela posta na rua.” E assim, “a morte do japonês acedeu ao estatuto de “obra de Arte” póstuma pela doação da tela ensangüentada ao Museu de Arte Moderna de Tóquio” (MATTEI, 2002). Em Direito, tais interpretações da obra de Arte aplicada as Leis seria catastróficas; mas não é difícil imaginar um juiz com performances jurídicas escatológica, ou uma sentença ser exposta como “Merda d’juiz”. A diferença é que existe a “Corregedoria da Justiça” e não existe a “Corregedoria da Arte”... Uma diferença fundamental.  Por outro lado, é muito difícil imaginar um juiz, em busca de glória póstuma ou de afirmação de seu poder, se suicidar jogando-se do alto do Tribunal de Justiça em cima de um “Vade Mecum”... Mas sem dúvida, considerando “o processo exacerbado de subjetivação em curso”, a atrofia da obra de Arte, assim como no Direito a atrofia do Processo, ou a atrofia da Sentença, ou a atrofia da Hermenêutica etc., fazem eco à hipertrofia do Eu... Ai!Ai!

(Ad hoc 2) Na Literatura, estamos sempre diante de mais um heterologos? Ou seja, esclarece Cleonice Berardinelli, no Prefácio do livro “O heterologos em língua portuguesa”, de Maria Helena Varela: “O discurso literário que estabelecendo seu corpus nos séculos XIX e XX ela começa a captar em Sampaio Bruno, passando a Fernando Pessoa, em Portugal, e vai encontrar aqui (no Brasil) em Euclides da Cunha e Guimarães Rosa”. Este último, aliás, tão impreciso, que marca o próprio discurso de Maria Helena, ao definir o termo usado; a saber: “À margem e entre as margens dos sistemas ortodoxos, na travessia dos códigos e inclusão das diferenças, ousamos designá-lo como heterologos, a terceira margem do logos” (Cf. BERADINELLI, 1996, apud, VARELA, 1996). Corpos discursivos, portanto, subversores, nos quais, por exemplo, devolver os golpes recebidos e os erros passa a ser incluído e englobado como fator de criação. Ora, a terceira margem não se daria somente em uma encruzilhada que marca o encontro do fluxo com uma “Ilha deserta” fazendo-o bifurcar-se? Então, na ousadia de Varela, “ousamos designar de heterologos esse pensar heterodoxo e mestiço, tolerante e impuro, entre o mythos e o logos, o filosófico e o literário, o poético e o profético” (VARELA, 1996). Qual o heterologos do Direito que constitui a margem correspondente do logos jurídico? Qual sua encruzilhada? Que é o Robinson Crusoé? Em outras palavras, quem na Ciência do Direito teria, no Brasil, a mesma presença que Machado de Assis, Euclides da Cunha ou Guimarães Rosa na Literatura?...  Não faço a mínima idéia! Rui Barbosa? Pontes de Miranda? Orlando Silva? Miguel Reali...? Roberto Lyra Filho?... Quem? Se as pessoas buscam cada vez mais e mais “orientar a sua conduta profissional no âmbito da vida jurídica por interrogações sobre fundamentos”, como ensina Aquiles Côrtes Guimarães, em suas “Cinco lições de Filosofia do Direito”, evidentemente que, diz ele: “essas interrogações só podem produzir efeitos fora da órbita da estrutura do Poder, uma vez que este existe em função da obrigatoriedade da coexistência, como um artifício absolutamente necessário, numa coexistência que implica a existência do Mal, esse fantasma que até hoje não foi explicitado, nem mesmo pela teologia” (GUIMARÃES, 2003). Não representaria, portanto, a proximidade do Direito com a Literatura uma sedução pelo Mal, logo, da Transgressão, do Crime? O fato é que, quando pensamos no Mal e em Literatura nos vem logo à memória “A Literatura e o Mal”, de Georges Bataille, que nos apresenta a Literatura como expressão de uma forma penetrante de Mal, justamente porque “é a infância reencontrada”. E com o título “A Literatura e o Mal” faz desfilar diante de nossos olhos atentos a obra de Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blake, Sade, Proust, Kafka e Genet. De uma forma tão interessante que o aproxima da problemática do Direito de Família... A questão para Bataille era saber se a infância que dominou esses autores geniais teria uma verdade além do bem e do mal? Neste sentido, foi muito interessante a leitura de “Os desastres de Sofia”, de Sophie Feodorovna Rostopchim, a Condessa de Ségur (1799-1874), que Patrick Vignoles em seu livro “A Perversividade”, resume mais ou menos assim:

“Sofia pegou o sal, colocou-o em sua salada; ainda sobrou uma grande quantidade. Se houvesse alguma coisa para salgar? – ela disse – Eu não quero salgar o pão; eu queria carne ou peixe... Oh! Que boa idéia! Eu vou salgar os peixinhos da mamãe; cortarei alguns em fatias com minha faca e salgarei outros inteiros; como vai ser divertido! Que lindo prato isso tudo dará!” (...) Sofia corre para o salão onde se encontram os peixinhos, aproxima-se do aquário, pesca todos, coloca-os em um prato, retorna a sua mesinha, pega alguns desses pobres peixes e estende-os em uma travessa. Mas os peixinhos, não se sentiam à vontade fora d’água, mexiam e saltavam tanto quanto podiam. Para que ficassem quietos, Sofia derrama sal sobre suas costas, sobre suas cabeças, sobre suas caudas. Com efeito, eles ficavam imóveis: os pobrezinhos estavam mortos. Quando a travessa ficou cheia, ela pegou outros e pôs-se a cortá-los em fatias. Ao primeiro golpe da faca, os infelizes peixinhos retorciam-se desesperadamente, mas logo se tornavam imóveis, porque morriam. Depois do segundo peixe, Sofia percebeu que os estava matando, ao cortá-los em pedaços. Ela olhou com inquietação os peixinhos salgados; vendo que não se mexiam, examinou-os atentamente e viu que estavam todos mortos. Sofia tornou-se vermelha como uma cereja: “Que mamãe vai dizer? – perguntou-se. Que vai ser de mim, pobre infeliz! Como fazer para esconder tudo isso?”. (VIGNOLES, 1991).

O que ligaria O Direito a Literatura seria buscar se essa verdade se assenta na Família ou em outro lugar que suportaria a subjetividade, mas não a objetividade da necessidade das ações que constituem “Os desastres de Sofia”?... De fato, nada é pior do que fazer o mal por brincadeira, por divertimento. Crianças fazem isso! E o problema, me parece, reside justamente ai. Os pais não sabem mais dizer “Não!”, logo, não sabem a que dizer “Sim”. Então, o mundo está cheio de crianças grandes e velhas, de adultos que nunca deixaram de ser crianças, de serem infantis, não se tornaram adultas por desconhecerem regras sociais da qual depende o processo de emancipação da pessoa humana e a afirmação de sua dignidade. Então, chafurdam no limbo da infância, incapazes de maioridade (Kant) tornam-se crianças grandes... As conseqüências? Sofia fez isso com os peixinhos da mãe, mas crianças grandes o fazem ateando fogo em mendigos ou em animais etc. A objetividade das ações de Sofia situa-se no fato de que, diz a Condessar de Ségur: “Sofia freqüentemente fazia coisas más sem pensar nelas...”

(Ad hoc 3) Na subjetividade, porque, nas palavras de Mattei, “a subjetividade, Marx observava ironicamente, não é senão o predicado do Sujeito de Direito, ela se reduz definitivamente ao indivíduo empírico que é o sujeito de fato. O subjectum júris conservava ainda seu vínculo poderoso com a idéia de pessoa moral submetida à lei natural, ou seja, à autoridade de Deus, em Pufendorf, e com a idéia de substância racional submetida a Deus, “sujeito de direito supremo”, em Leibniz; ele se torna um puro subjectum facti, “um estado de fato inalienável”, reconhece Zarka (Yves Charles Zarka). E desde então a facticidade, e não a juridicidade, que desenha os contornos do homem aplicando-lhes as diferentes máscaras da contingência, a fim de transformar essa paixão inútil, segundo as palavras de Sartre, em pura autonomia” (MATTEI, 2002). Por esta razão, dado o olhar crítico e a percepção aguda de Jürgen Habermas, seu livro intitula-se “Direito e democracia: entre a facticidade e validade”, e não entre a juridicidade e validade, nem entre a facticidade e a juridicidade... O fato é que, se a autoridade da tradição se desfaz; só se desfaz submetendo o indivíduo (subjectum júris) aos ditames do ciclo quase biológico (e explorado no nível sócio-econômico) das necessidades e de sua satisfação. Em suma, diz Alain Renaut: “a pretensa emancipação do indivíduo (subjectum facti) seria, na realidade, um despersonalização, a destruição da pessoa que está em nós em benefício da reanimalização do homem que, ao reinscrever o humano no biológico, parece negar em si a cultura em benefício da natureza. Efetivamente, o que é cultura, senão precisamente, conforma insistira Hannah Arendt, o processo pelo qual um ser da natureza dela se distancia, ultrapassando o simples ciclo da vida?” (Cf. RENAUT, 1998). No mais, se considerarmos que Kafka, por exemplo, é o que lemos em Bataille, diante da necessidade da ação, não concedia a verdade da infância nenhum Direito, a questão agora seria se ao conceder-lhe Direito, o Direito não estaria empenhado em construir o homem sem qualidades? E finalmente:

(Ad hoc 4) Na Lei, porque na observação de Foucault, em “O pensamento exterior”:

“Se estivesse no fundo de alguém, a Lei não seria já a Lei, mas a suave interioridade da consciência. Se ao contrário, estivesse presente num texto, se fosse possível decifrá-la entre as linhas de um livro, se pudesse ser consultado o registro, então teria a solidez das coisas exteriores: poderia obedecê-la ou desobedecê-la: onde estaria então o seu poder? Que força ou que prestígio a faria respeitável? De fato a presença da Lei consiste na sua dissimulação. A Lei, soberanamente, sitia as cidades, as instituições, as condutas, os gestos; faça-se aquilo que se faça, por maiores que sejam a desordem e o desleixo, ela já desenvolveu seus poderes: “a casa está sempre e a cada momento no estado que lhe convém”” (FOUCAULT, 1990).

Qual, então, a utilidade do diálogo do Direito com a Arte e a Literatura? Em resumo, e em outras palavras: se nosso problema é a compreensão ou o esclarecimento do novo discurso jurídico (desde que ele exista), fazendo-o transparecer na dialética das relações pós-modernas (se deixamos de ser modernos) entre a Arte, a Literatura e o Direito sob o signo da subjetividade e da Lei, quatro problemáticas se impõem a luz do sol;

1)                 A proximidade do Direito com a Arte Moderna e a Literatura não indica a sua tendência para o suicídio ou para o crime?

2)                 A necessidade de saber: quais os heterologos do Direito que se constituem a margens correspondentes ao logos jurídicos?

3)                 O Direito ao assumir um discurso atópico empenha-se em construir o homem sem qualidade?

4)                 Qual a utilidade do diálogo do Direito com a Arte e a Literatura ou é, justamente, a utilidade o que se transcende?

Que dizer?

UMA OBSERVAÇÃO DE JÜRGEN HABERMAS, logo nas primeiras linhas de “Direito e filosofia I: entre a facticidade e a validade”, ocorreu-me: “E o fato de a filosofia do direito - quando ainda busca o contato com a realidade social – ter emigrado para as faculdades de direito é bastante sugestivo” (HABERMAS, 1997). Tal emigração deu-se depois da II Grande Guerra. Talvez a gênese de nossa proposta (intuitiva) esteja aí! Mas na verdade, talvez o diálogo que se anuncia com o tema “Arte, Literatura, Direito” se deva a necessidade da experiência do Direito, a exemplo da experiência filosófica, reconhecer seus limites heurísticos e metodológicos. Deve-se isso ao diálogo produtivo que se deu com da emigração da Filosofia para as Faculdades de Direito? Não sei! Talvez. O fato é que a interpretação tecnizada do Direito encontra na Arte e na Literatura a interpretação destecnizada que se constituí uma questão propriamente filosófica. Isso significa, simplesmente, apenas uma tentativa de formular com o maior rigor possível a resposta que o confronto e o desconforto com o texto jurídico (que funda sua legitimidade no saber especializado) desperta em nós. Mesmo porque, na compreensão de Hans Georg Gadamer: “A principal qualidade da hermenêutica consiste em subordinar tudo à intenção do próprio texto” (GADAMER, 1990). Quer dizer, o heterologos seria produzido por autores que “surgem como defensores de uma lógica sem exclusões, em que tudo se inclui e recria na plasticidade da língua e no retorno do mythos” (VARELA, 1996). Mas há problemas ai. Não há entre a Arte, a Literatura e o Direito uma autonomia epistemológica, uma independência ontológica, uma diferenciação deontológica que funda um abismo heurístico aquém ou além de suas margens impossível de se transpor? Perderam elas (a Arte, a Literatura, o Direito) na “batalha do sentido” a significação que lhes eram próprias e imanentes e as definiam com maioridade (Kant) em relação a uma transcendência e por isso são atraídas para o pensamento exterior, para as margens e entre as margens dos sistemas dogmáticos ou ortodoxos, o heterologos? Ou seja, não há mais fronteiras entre as disciplinas? Em nome de que princípio holístico, de que vitalismo, de que unidade? Se não, como poderíamos a partir das Normas de Direito sermos juízes da humanidade de Sócrates ou de Epiteto, ou da barbárie de Átila ou Gengis Khan? Mas talvez o questionamento correto seja: há uma saturação dos sentidos em relação à Doutrina do Direito e mesmo aos Princípios Gerais do Direito que leva ao desgaste das significações, e que exige novos recursos culturais para revitalizá-los ou reinventá-los, então, buscamos na Arte e na Literatura recursos culturais que revitalize ou reinvente a interpretação do Direito? Não sei! O fato é que o bloco histórico de nossa civilização (a civilização Ocidental) está perdendo “a batalha do Sentido”, o que, segundo Jean-François Mattei, “levou Georges Steiner a perseguir as metástases da barbárie, não apenas nos conflitos armados, mas nas obras de arte e de pensamento que renunciou a toda transcendência” (MATTEI, 2002), e neste sentido, a atrofia das obras de Arte e a atrofia das obras de Literatura é perseguida pela atrofia das obras jurídica e todas fazem eco a hipertrofia do eu. E assim estamos diante de uma situação verdadeiramente esquizofrênica!... E não aconteceria com o Direito o mesmo que aconteceu com a Literatura, ou seja, “a Literatura brasileira dos últimos trinta anos oscila, por exemplo, entre a imitação e a rejeição de Guimarães Rosa, cujo gênio acabará por produzir tantos herdeiros lamentáveis, pretensiosamente sofisticados, que nenhum remédio poderá salvar-nos do tédio e do esnobismo dos escritores das mesas de bar da moda” (MACHADO DA SILVA, 2000). Quantos jurisconsultos lamentáveis, pretensiosamente sofisticados serão gerados na intersecção do Direito com a Literatura?

COM EFEITO, PARTO DO PRINCÍPIO QUE A escolha do tema, inconscientemente, deu-se com o objetivo de examinar questões relativas às diversas manifestações do Direito no contexto contemporâneo, [pós-moderno, dizem], como resultado dos processos de aculturações ou mesmo de colonizações guiados pela diversidade epistemológica, e, em penúltima instância, deontológica, e em última, ontológica, que se desenvolvem no âmbito do mundo acadêmico globalizado, e que se traduzem em múltiplas concepções de ser e estar no mundo, que pode acarretar profundas rupturas na Doutrina do Direito e mesmo nos Princípios Fundamentais do Direito... Daí que o diálogo que aqui se propõe entre a Arte, a Literatura e o Direito, que se tornou inevitável para nós, diante da base de uma preocupação que sustenta a integridade do Direito vis-à-vis a fragmentação e a subjetivação dos saberes e das leis, e, de nossa curiosidade a respeito do fato de que, mesmo em um contexto considerado pós-moderno, em que o reconhecimento da diversidade e da diferenciação é um dos componentes da Weltanschauung com que imaginamos o século XXI, é bom observar, logo no ponto de partida que os pensadores clássicos do Direito continuam indispensáveis, mais indispensáveis do que nunca, mesmo porque o Direito não se tornou “Ciência” apenas reproduzindo velhos modelos, mas transformando-os dialeticamente, como a terra transforma a semente de uma árvore. Sim, como a terra transforma a semente de uma árvore. Razão pela qual nas Faculdades de Direito a existência de múltiplas vertentes sempre foi e continua sendo uma das características mais marcantes e angustiantes na formação de novos bacharéis. Mesmo porque observamos, nas Faculdades de Direito modificações consideráveis na vizinhança dos autores clássicos. Assim, por exemplo, em vez de Arqueologia, Biologia, Sociologia ou Lingüística de décadas passadas, os acadêmicos, hoje, os anos 2000/2010, encontram-se mais próximos das “antidisciplinas” (produções ideológicas indicadas pela presença do termo “Estudos”: “Estudos Culturais”, “Literários”, “Artísticos”, “Estudos Feministas”, “Estudos da violência urbana”, ”Estudo do Homossexualismo”, “Estudos da violência contra a mulher”, “Estudo do Racismo” etc.) que dão origens a diversas leis discricionárias e excludentes da maioria e, evidentemente negando valores Republicanos, e muitas vezes fundamentados numa falsa-consciência. O que pretendo aqui, portanto, é indicar o poder e o perigo associados a essas novidades e “modas culturais”, produtos da vanguarda dos anos 50, 60, introduzidas, na década de 1970, pelos programas de “História da Consciência”; nos anos 1980 pela abordagem dos Estudos Culturais, e nos 1990, pelos programas de “Ciência, Tecnologia e Sociedade” (designados STS programs), e agora os “programas de Direito e Literatura”, que foram, cada um em seu tempo, incorporados na formação nos novos bacharéis e especialistas não só de Direito... O fato é que conceitos como “Rede”, “Paradoxo”, “Simulação” e “Interatividade” advindos dessas “novidades e modas culturais” invadem a reflexão:

- a “Rede” ergue-se contra a árvore;

- o “Paradoxo” contra o princípio de não-contradição;

- a “Simulação”, contra a ontologia, e,

- a “Interação” contra a causalidade e o sujeito Todo-Poderoso.

Isso muda, sem dúvida, a nossa forma de pensar, de analisar e de escrever, as regras do jogo, e, sem dúvida, se explorarmos esse quadrilátero perceberemos que tipos de solução seus elementos podem exercer sobre a “desconstrução” do Direito. E em cada década a impressão era que os autores clássicos em Direito estavam fora de lugar, migrados para outras áreas ligadas ao arquivo ou ao museu... Uma Ciência do Direito seria justamente o impossível? Em conseqüência, com a metamorfose do termo Ciência, o termo “Ciência do Direito” compreenderia, ao mesmo tempo, conhecimento, crença, crítica e miscelâneas, e, além disso, surpresa maior, disciplinas tradicionais foram renomeados ou desapareceram – lingüística, por exemplo, é hoje categoria inexistente (ou apenas adstrita a estudos gramaticais ou gramatológicos), porque se transformou, na última década, em Ciência Cognitiva. É compreensível, portanto, apesar de equivocada, a preocupação de Hans Kelsen (apoiando-se em Gerber, Laband e Jellinek) de lançar as bases da ciência do Direito através de uma “Teoria Pura do Direito”, em 1934, reagindo contra a ausência de pureza que ele encontrava na construção teórica de seus predecessores, advogando que o Direito seja depurado de toda consideração ético-política etc. Foi o erro de Kelsen, não do positivismo. Conseqüentemente, a questão crítica para nós é: o Direito perdeu a especificidade de seu enfoque? Podemos escrever um romance do Direito ou o Direito enquanto romance? Elaborar o Direito enquanto obra de Arte? Ver num quadro de Salvador Dali, de Picasso etc., questões dogmáticas ou zetéticas de Direito? Podemos defender o Direito do romance que não seja o do autor? Podemos levar a julgamento o autor de um delito de ficção? Então, como vemos, é muito difícil trabalhar com o tema “Arte, Literatura, Direito: a subjetividade e a lei”. Talvez até seja um trabalho de Sísifo. Na correta observação de Juvenir Machado da Silva: “Adeus aos anos 60! O escritor do século XXI para existir precisará romper com a ditadura marxista, libertária, literária, pop, teórica, espiritualista, afetada, orientalista, cinéfila, noir, pseudo-sofisticada, quase-joyceana, concretista, pós-rosiana... das mil faces de uma época que, em nome da libertação total, não pára mais de dominar os que vieram depois dela” (MACHADO DA SILVA, 2000). E o Jurista do século XXI nascido no século XX, sabe com o que deverá romper?

TRATA-SE, PORTANTO, DE FAZER DA Arte e da Literatura et alii objetos de estudos jurídicos sob o signo da subjetividade e a lei? Mas o que significa isso? Simplesmente, nas palavras de Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino, professor Universitário em Florianópolis, SC, em artigo publicado no site JUS NAVEGANDI (considerando que deixamos de ser modernos e nos tornamos pós-modernos): “A produção normativa na pós-modernidade propõe-se a dialogar com a ambigüidade, a incerteza, a fabilidade, como elementos necessários para se (re)pensar a produção e a aplicação do Direito”(AQUINO, 2012). Pode ser! Com efeito, os usos dos conceitos de Arte, de Literatura, e de Direito podem justamente não acarretar em verdade objetiva, mas somente efeitos de verdade, e, como o de Lei em Foucault, apenas dissimulação... Mas também simulação. Espectros... Em outras palavras, com os aviões supersônicos, a internet etc., vivemos, segundo Paul Virilio, a “era da velocidade” e do stress. E parece ocorrer com o Direito o que ocorreu com a geografia, ou seja, não vivemos o “fim da história”, como declarou Francis Fukuyana, mas podemos falar no “fim da geografia”, observa Paul Virilio, ou seja, esclarece Zygmunnt Baumann: “As distâncias não importam mais, ao passo que a idéia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de se sustentar no “mundo real” (BAUMANN, 1999). Parece claro de repente que as divisões dos continentes e do globo como um todo foram função das distâncias, outrora impositivamente reais devido aos transportes primitivos e às dificuldades de viagem” (BAUMANN, 1999). E as fronteiras do Direito se expandem ou se contraem? Elas se globalizam ou se reduzem cada vez mais a localidades? O que acontece com a pós-modernidade da Arte e da Literatura tem reflexo psicoplástico e psicogenético na Esfera Jurídica? O fato é que [e aqui parafraseio Juremir Machado da Silva (Cf. MACHADO DA SILVA, 2000)]:

1)- A modernidade acreditava no efeito domesticador da referencialidade, da representação, da compreensão, e, assim, Literatura era fragmento, olhar, risco, instante, diversidade, regras, modelos, gêneros. O resto era sonho, vontade de ser demiurgo, imposição, luta pela hegemonia num tempo e num campo fadado ao desaparecimento.

2)- A pós-modernidade sublinha o efeito de relação da comunicação, a experimentalidade; nega o privilégio da denotação, condena a compreensão, para assegurar pelo esvaziamento dos sentidos banalizados pela mídia, o renascimento do “palateísmo”: degustação do verbo pluralista, pagão, herético, panteísta. O que temos, então, como Literatura? O horror, o segredo, o hermetismo, o insondável, a fé etc. E como fonte de inspiração para a mediocridade elitista, a beleza... E como fonte de inspiração para a mediocridade popular, a religião... Enfim,

3)- Em Literatura “todos os materiais são nobres” (MACHADO DA SILVA, 2000). E assim, por exemplo, para Jean-Yves Tadiê, no fim do século XX, “será preciso considerar romance um “conjunto de formas que não correspondem mais as regras, nem aos modelos”... Fim das fronteiras de gênero! De Proust a Cortázar, de Mann a Musil, de Robbe-Grillet a Milan Kundera, todos praticaram o ensaio na ficção, sem ceder à defesa de tese, mas também sem temer as digressões, as idéias, a filosofia. Só o positivismo literário ainda crê na forma pura, tal qual o positivismo jurídico. O romance assumiu-se como mosaico, o direito também... Fora disso, impera a pobreza estética e a indigência de conteúdo” (MACHADO DA SILVA, 2000). A problemática é o que acontece com o Direito no século XXI enquanto feito de textos, fenômeno literário? Caracterizar-se-á por, digamos, reflexões literárias, fundamentalmente a margem dos sistemas dogmáticos, ou seja, construído por julgamentos influenciados por “uma literatura narrativa, ancorado no cotidiano, em busca da complexidade, voltado para o vitalismo social, capaz de recorrer a procedimentos radicais de estranhamento, de singularização, de ruptura e de transfiguração de maneira a aumentar o tempo da percepção e a evitar as simplificações do reconhecimento”? (MACHADO DA SILVA, 2000). Faço minhas, portanto, as seguintes palavras de Immanuel Kant:

“No es por cierto exigência alguna entregarse a semejantes investigaciones, o jugar con fantasmagorias de ese tipo; es más bien simple curiosidad petulante que no lleva a outra coisa que a ensoñaciones” ( KANT, 2006).

“Não é por certo exigência alguma entregar-se a semelhantes investigações, ou jogar co fantasmagorias desse tipo; é simplesmente curiosidade petulante que não leva a outra coisa senão a encenações” (KANT, 2006).

(WALTER AGUIAR VALADÃO; Venda Nova do Imigrante, ES, março/ 2012)

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Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. Arte, Literatura e Direito: a subjetividade e a lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3183, 19 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21316. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Palestra elaborada para a Semana Jurídica do Centro Acadêmico do Curso de Direito da UFES, dia 27 de março de 2012.

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