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Pela (re)construção dos direitos humanos: em busca da legitimação das intervenções humanitárias

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26/03/2012 às 17:00
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O discurso dos direitos humanos não pode ser usado como uma arma de imperialismo moral, oprimindo outras comunidades e modos de vida, do mesmo modo que não deve servir de escudo para esconder práticas arbitrárias e violações de direitos.

1. Considerações Iniciais

O trabalho em tela é um recorte da dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, e, em sua essência aborda a necessidade imperiosa de se partir para a esfera da (re)construção dos direitos humanos como alternativa viável para a legitimação das chamadas intervenções humanitárias.

A questão envolvendo a ampliação da representatividade nos quadros das Nações Unidas, em especial no que se refere ao seu Conselho de Segurança vem ganhando, com o passar dos anos maior robustez.

No entanto, todo o processo de reestruturação não terá efeito algum, se, ao seu lado, de forma concomitante, não ocorrer uma alteração consistente no pensamento tanto dos atores que se querem fazer representar, quanto dos que hoje, já gozam de tal prerrogativa.

Fala-se neste momento de uma mudança vigorosa, e porque não afirmar, radical, naquilo que alguns Estados defendem como os seus valores humanos, ou melhor, as suas particulares formas de oferecer valor à dignidade humana.

A edificação de ideário que se propõe opta por reconhecer razão a todos os contendores, no entanto aponta os malefícios desta “múltipla razão”. Deste modo, tomando por sustentáculo a lição de Joaquín Herrera Flores, tem-se que:

 [...] o problema surge, quando cada uma dessas visões passa a ser defendida apenas por seu lado, [...] desdenhando outras propostas. O direito acima do cultural, e vice-versa. A identidade, como algo prévio à diferença, ou vice-versa. Nem o direito, garantia de identidade comum, é neutral; nem a cultura, garantia da diferença, é algo fechado.[1]

Partindo-se de tal revelação, não há dúvidas dos males colhidos ao se argumentar apenas analisando o núcleo de uma ou outra proposta acerca dos direitos humanos.

Igualmente, indo muito além de mera sugestão especulativa, a pesquisa propõe uma superação do confronto ideológico entre universalistas e relativistas, com o esvaziamento desta dicotomia, uma vez que por tal caminho não se vislumbra grandes soluções à problemática envolvendo a constituição de um padrão mínimo e comum de valores que, se agregados à dignidade humana, constituir-se-ão no alicerce moral das futuras intervenções humanitárias.

Sobre o tema em comento é conveniente o pensamento de Gisele Ricobom ao elucidar que “o universalismo hegemônico e o relativismo são incapazes de propor uma solução que inclua a compreensão das diferenças”.[2]

Mas, se a solução não se encontra nas teses relativistas ou universalistas, onde estará a chave de tão complexa questão?

Para achar tal resposta, em primeiro lugar é primordial desenvolver a compreensão de que isoladamente nenhuma cultura prospera. Nesta direção, para Jacques Derrida:

[...] não existe cultura alguma sem relação com o outro. Nenhuma cultura tem uma origem única: está na própria natureza da cultura explorar a diferença e desenvolver uma abertura sistemática em relação aos outros dentro de nossa cultura bem como em outras.[3]

Partindo da premissa acima é possível também entender que as perspectivas de avanço na esfera dos direitos humanos estão unidas às possibilidades de reconstrução cultural, dependendo sempre de um processo de comunicação que se encontre totalmente livre de qualquer interferência dogmática.

É preciso, ainda, reconhecer que qualquer exame que se pretenda realizar acerca das práticas culturais deve ser conduzido sob a certeza de que o discurso dos direitos humanos não pode ser usado como uma arma de imperialismo moral, oprimindo outras comunidades e modos de vida, do mesmo modo que não deve servir de escudo para esconder práticas arbitrárias e violações de direitos.

Tendo, portanto, em mente os postulados acima, parte-se para a compreensão do caminho a ser trilhado no sentido de superar a oposição entre universalistas e relativistas, e, a partir disto, reconstruírem-se os direitos humanos.


2. Do Multiculturalismo ao Interculturalismo

Antes de trilhar-se a estrada que levará este estudo ao possível esvaziamento do conflito entre patronos do universalismo e do relativismo em matéria de direitos humanos, algumas considerações precisam ser feitas no intuito de elucidar o teor da proposta a ser defendida logo mais adiante.

2.1 O multiculturalismo

Ao se aduzir sobre a necessidade do diálogo entre diferentes culturas, a abordagem em tela passa primeiramente pelo conceito de multiculturalismo, construção teórica que parte do pressuposto de que nenhuma cultura é suficientemente completa, partindo da hipótese de que não há graus de hierarquia entre elas, o que enseja a necessidade de um diálogo entre universos com significados culturais distintos.

Neste sentido, o chamado multiculturalismo, à primeira vista, aparece como elemento capaz de oferecer uma boa solução para a indagação proposta em linhas anteriores, superando a dicotomia universal vs. relativo, uma vez que tem o condão de agregar posicionamentos culturais distintos em torno de uma só doutrina.

Para Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes, o multiculturalismo aponta de forma simultânea ou alternativa para uma descrição e para um projeto. Como descrição, refere-se à “existência de uma multiplicidade de culturas no mundo”, “à co-existência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado-nação” e “à existência de culturas que se interinfluenciam tanto dentro como para além do Estado-nação.” E, como projeto, delimita um “projeto político de celebração ou reconhecimento dessas diferenças.”[4]

No entanto, embora a opção multicultural tenha se estabelecido como uma alternativa para a coexistência de diferentes culturas, logo passou a sofrer críticas, dentre as quais se destaca a afirmação de que multiculturalismo é um conceito etnocêntrico. Neste sentido lecionam Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes:

[...] criado para descrever a diversidade cultural no quadro dos Estados-nação do hemisfério Norte e para lidar com a situação resultante do afluxo de imigrantes vindos do Sul num espaço europeu sem fronteiras internas, da diversidade étnica e afirmação identitária das minorias nos EUA e dos problemas específicos de países como o Canadá, com comunidades lingüísticas ou étnicas territorialmente diferenciadas. Trata-se de um conceito que o Norte procura impor aos países do Sul como modo de definir a condição histórica e identidade destes.[5]

Slavoj Zizek, também em uma esfera crítica, afirma que o multiculturalismo se constitui em um modo de racismo negado, invertido e a distância, que respeita a identidade do “outro”, mas o concebe como uma comunidade autêntica e fechada. Segundo o autor, o multiculturalista prefere manter a distância em função de sua posição universal privilegiada. Desta forma, na visão multicultural, o respeito pela especificidade do “outro” denota, de forma precisa, uma forma de reafirmar a sua própria superioridade.[6]

Observa-se das críticas colhidas acima que o projeto de reconstrução dos direitos humanos pela superação do embate entre relativistas e universalistas não pode atingir grande êxito caso se opte pelo multiculturalismo.

Luis Villoro a esse respeito esclarece que o multiculturalismo:

Es solo la expresión de una postura ética, política y jurídica nacida del despertar de una ilusión: el sueño del pensamiento occidental moderno que creyo que su concepción de razón y del bien era la única válida y que podia imponerla al resto del mundo.[7]

Nesta senda, em virtude do fracasso da missão dialógica por parte da edificação multiculturalista, o surgimento de uma nova percepção que preencha o vazio, faz-se imperioso. Destarte, propostas versando sobre interculturalidade ou interculturalismo vêm sendo apresentadas para cumprir tal tarefa.

2.2 O interculturalismo

A proposta intercultural nasce, principalmente, a partir da lacuna deixada pelo multiculturalismo.

Pela lição de Gisele Ricobom “é preciso, portanto, uma visão que permita abarcar a complexidade das relações culturais sem desconsiderar os elementos que fazem parte da diversidade cultural [...]”.[8]

Ricardo Astrain ensina que a visão pautada na interculturalidade, diferentemente do multiculturalismo, não diz respeito simplesmente a duas culturas que se integram. A interculturalidade acena com a possibilidade de um tipo de sociedade onde as comunidades étnicas e os grupos sociais se reconhecem em suas diferenças, buscando uma recíproca compreensão e valorização. Segundo o autor, o prefixo “inter” passa a ideia de um intercâmbio positivo que se expressa de um modo concreto na busca da eliminação das barreiras existentes entre os povos, as etnias e os grupos humanos.[9]

Nesta mesma torre de idéias, Ana Maria D’Ávila Lopes aponta a diferença entre o multiculturalismo e a interculturalidade:

[...] enquanto o multiculturalismo propugna a convivência num mesmo espaço social de culturas diferentes sob o princípio da tolerância e do respeito à diferença, a interculturalidade, ao pressupor como inevitável a interação entre essas culturas, propõe um projeto político que permita estabelecer um diálogo entre elas, como forma de garantir uma real convivência pacífica.[10]

No intuito de traçar a exata dimensão das intenções da interculturalidade , traz-se à tona as reflexões de Vera Maria Candau, que em análise sobre a matéria, afiança que esta norteia processos que têm por alicerce o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social, tentando promover o diálogo igualitário entre pessoas e grupos pertencentes a diferentes universos culturais, e, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. A autora alerta que a interculturalidade não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais, destacando que o reconhecimento dos conflitos, e, a partir disto, a procura por estratégias mais adequadas para enfrentá-los são seus maiores méritos.[11]

Como solução ao embate, Boaventura de Sousa Santos apresenta uma proposta de reconceitualização dos direitos humanos como interculturais, nos termos seguintes:

[...] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, em abstracto, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemónica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como interculturais. Concebidos como direitos universais, como tem sucedido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento do “choque de civilizações” tal como o concebe Samuel Huntington [...], ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo [...], como cosmopolitismo do Ocidente imperial prevalecendo contra quaisquer concepções alternativas de dignidade humana.[12]

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Os escritos de Sousa Santos apontam o direcionamento do tema em comento, ao traçarem premissas capazes de fomentar uma transformação teórica e prática dos direitos humanos, no sentido de (re)conceituá-los e aplicá-los como valores interculturais.

Nesta esteira, segundo o sociólogo português, a reconstrução dos direitos humanos nos moldes acima somente ocorrerá com o preenchimento das seguintes condições: 1) a partir do esvaziamento do embate universalismo-relativismo; 2) com a constatação de que, não obstante todas as culturas possuam visões sobre a dignidade humana, nem todas elas a imaginam como direitos humanos, e, dentre as diversas versões de dignidade humana de determinada cultura, há que se buscar a que mais largamente aceita as particularidades das demais construções culturais; 3) mediante a constatação de que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana; 4) pela percepção de que sempre existirão diferenciadas concepções de dignidade humana, o que afasta da análise cultural qualquer tese monolítica. Há que se definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais amplo; e, finalmente, 5) com a comprovação de que todas as culturas adotam a igualdade e a identidade como critérios de distribuição de seus povos, neste sentido torna-se necessária a distinção entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim de travar ambas as lutas de maneira eficaz.[13]

Em trilha semelhante, a abordagem de Joaquín Herrera Flores sobre o assunto sustenta um universalismo de confluência, ou seja, um universalismo de chegada e não de partida:

Nossa visão complexa dos direitos aposta por uma racionalidade de resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há de se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. Falamos do entrecruzamento, e não de uma mera superposição de propostas. (grifo do autor)[14]

Do exposto especialmente por Sousa Santos e Herrera Flores, pode-se assinalar que a reconstrução dos direitos humanos irá suceder um processo que necessariamente precisará passar pelo desenvolvimento do diálogo entre as diferentes culturas pautado no reconhecimento do outro, figuras que serão analisadas nas linhas que se seguem.


3. Do Diálogo Intercultural ao Reconhecimento do “Outro”

A partir das premissas recém enumeradas onde Sousa Santos constrói a possibilidade do diálogo intercultural, utilizando, para tanto do mecanismo que convencionou nomear de hermenêutica diatópica.

Em conformidade com a explicação do próprio Boaventura de Sousa Santos:

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi  de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. [...] O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude [...] mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.[15]

Sobre o tempo em que deve ocorrer o diálogo intercultural, vale ressaltar, desde já, a advertência feita por Sousa Santos:

O tempo do diálogo intercultural não pode ser estabelecido unilateralmente. Pertence a cada comunidade cultural decidir quando está pronta para o diálogo intercultural. [...] quando uma dada comunidade se dispõe ao diálogo intercultural tende a supor que a mesma disposição existe nas outras culturas com que pretende dialogar. É este precisamente o caso da cultura ocidental, que durante séculos não teve qualquer disponibilidade para diálogos interculturais mutuamente acordados, e que agora, ao ser atravessada por uma consciência difusa de incompletude, tende a crer que todas as outras culturas estão igualmente disponíveis para reconhecer a sua incompletude e, mais do que isso, ansiosas para se envolverem em diálogos interculturais com o Ocidente.[16]

Relatando a enorme relevância dessa prática, Raúl Fornet-Betancourt a considera como:

[...] a única alternativa que promete nos conduzir à superação efetiva de formas de pensar que, de uma ou outra maneira, resistem ao processo da argumentação aberta, ao condensar-se em posições dogmáticas, determinadas somente a partir de uma perspectiva monocultural. Resumindo: o diálogo intercultural nos parece ser hoje a alternativa histórica para empreendermos a transformação dos modos de pensar vigentes.[17]

Para ilustrar a ocorrência cotidiana do diálogo entre culturas, cita-se o exemplo interessante fornecido por Rachel Herdy que, ao comentar a Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989, informa que:

A tradição islâmica não permite a adoção, pois a criança muçulmana tem o direito inalienável de ligação direta com a linhagem paterna. No entanto, em alguns casos, permite que uma família assuma a obrigação de cuidar de uma criança que não pertença à sua linhagem. Tal instituto chama-se Kafalah, que significa garantia. Não obstante as divergências, o documento que foi adotado demonstrou que foi possível, através do diálogo intercultural travado nessa esfera, dar voz às propostas dos países islâmicos presentes.[18]

Ante a ilustração trazida por Rachel Herdy pode-se afiançar que o diálogo intercultural se credencia no mundo hodierno como um agente de suma importância na árdua tarefa de se esvaziar a dicotomia entre universalistas e relativistas, contribuindo para a edificação de uma nova percepção de direitos humanos.

A esse respeito, notadamente após 2001, com a queda do World Trade Center, nos EUA, tornou-se incontroversa a urgência da necessidade de sua implantação. Nesta esteira, expõe Edgar Montiel:

Diante dos lamentáveis acontecimentos sucedidos em setembro de 2001, que tantas indignações e interrogações levantaram, de imediato, foi nas culturas onde se buscaram as respostas, as chaves para se entender o ocorrido. Os estudos culturais e a geopolítica das culturas subitamente mostram sua pertinência, colocando em evidência o empenho da Unesco em promover o diálogo intercultural, o fomento do pluralismo e da tolerância. Dever-se-ia indagar em relação a tudo isso se aqui não se trata, como se diz com insistência, de um choque de civilizações, ou melhor, como nos parece, de um conflito de indiferenças, de culturas que jamais dialogaram ou, ao menos, não o suficiente para se entenderem, e que agora, visivelmente, graças às tecnologias da comunicação, co-habitam num mesmo tempo e espaço.[19]

Destarte, emblematicamente logo após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) promoveu uma Conferência, que gerou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, tendo por fruto mais significativo a clara convicção de que o diálogo intercultural é o meio mais adequado para que a paz, a tolerância e o respeito ao outro sejam promovidos. O documento constatou também que a cultura se encontra no cerne dos debates contemporâneos sobre a identidade e consagrou a diversidade cultural como um patrimônio comum da humanidade.

Mais especificamente a um dos temas que motivam esta pesquisa, os direitos humanos, a declaração da UNESCO reza que na relação essencial entre diversidade cultural e direitos humanos, reafirma-se a obrigatoriedade da proteção às diferentes identidades culturais. Contudo, deixa evidenciado que a invocação da diversidade cultural para legitimar atos de violação aos direitos humanos não será permitida.

 O artigo 4º da Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, a esse respeito, dita:

A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.[20]

Do exposto retira-se a máxima de que a diversidade cultural, principalmente com os acontecimentos do início do século XXI ganha um espaço que jamais havia ocupado no cenário em que se insere a proteção internacional dos direitos humanos. Situação que é bem refletida pelo Relatório Mundial da UNESCO intitulado: Investir na diversidade e no diálogo intercultural, de 2009, quando este afirma que:

[...] essa evolução reflete um duplo movimento: um conduz ao reconhecimento de um patrimônio comum que a comunidade internacional deve salvaguardar como expressão de uma herança comum; o outro leva ao reconhecimento das características próprias das culturas que, embora flutuantes e transitórias por natureza, devem valorizar-se e reconhecer-se como tais.[21]

A partir, então, deste novo pensamento, os diálogos entre as culturas ganham um papel essencial no sentido de confirmarem as incompletudes existentes na busca de concepções interculturais de direitos humanos.

Entretanto, faz-se cogente a construção de diálogos capazes de alterar o quadro de intolerância percebido ainda nos dias atuais, e, para atingir tal nível, o Relatório da UNESCO aponta que:

A chave para um processo de diálogo intercultural frutífero está no reconhecimento da igual dignidade dos participantes. Pressupõe reconhecer e respeitar as diferentes formas de conhecimento e os seus modos de expressão, os costumes e tradições dos participantes e os esforços por estabelecer um contexto culturalmente neutro que facilite o diálogo e que permita às comunidades expressar-se livremente. Isso é especialmente verdade no caso do diálogo interconfessional, dimensão crucial da compreensão internacional e, por conseguinte, da resolução de conflitos.[22]

Na mesma direção do elucidado acima, Joaquín Herrera Flores afiança em seus ensinamentos que:

[...] torna-se relevante construir uma cultura dos direitos que recorra, em seu seio, à universalidade das garantias e ao respeito pelo diferente. [...] Com essa visão queremos superar a polêmica entre o pretenso universalismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas.[23]

E, conclui aduzindo ser imprescindível promover:

[...] um universalismo de contrastes, de entrecruzamento, de mesclas. Um universalismo impuro que propõe a inter-relação e não a superposição. Um universalismo que não aceita a visão microscópica que parte de nós mesmos, no universalismo de partida ou de retas paralelas. Trata-se de um universalismo que nos sirva de impulso para abandonar todo tipo de visão fechada, seja cultural ou epistêmica, a favor de energias nômades, migratórias, móbiles, que permitam deslocarmo-nos pelos diferentes pontos de vista sem a pretensão de negar-lhes, nem de negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana. (grifo do autor)[24]

Assim, o desenvolvimento do diálogo, dotado primordialmente do respeito ao outro, parece ser a fórmula mais eficiente para a superação do conflito entre civilizações, anunciado por Samuel Huntington, ao mesmo tempo em que a dignidade humana, aparece como o critério comum mais apropriado para orientar todas as culturas neste processo que se perfaz em numa visível luta por reconhecimento.

Gisele Ricobom a esse respeito leciona que:

[...] a violação da dignidade humana ocorre quando se impedem os processos de luta dos indivíduos para que tenham acesso aos bens necessários para uma vida digna, desconsiderando a riqueza humana, ou seja, todos os elementos que fazem parte dessa luta, do contexto que está inserido o indivíduo ou o grupo de indivíduos. (grifo nosso)[25]

Aqui, objetivando aclarar os supra mencionados processos de luta e reconhecimento, trazem-se à baila alguns esclarecimentos acerca do que o mundo coevo passou a denominar de luta por reconhecimento.

Cumpre, porém, ab initio esclarecer que o termo “reconhecimento” é a tradução do alemão Anerkennung, entretanto, a vocábulo estrangeiro possui um sentido mais estrito do que o seu equivalente em português.

A expressão utilizada pela língua portuguesa abrange algo a mais. Bethânia Assy e João Feres Júnior, sobre a palavra em comento, esclarecem:

[...] o conceito filosófico de reconhecimento não significa simplesmente a identificação cognitiva de uma pessoa, mas sim, tendo esse ato como premissa, a atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito.[26]

Dentro da filosofia política contemporânea, o vocábulo “reconhecimento” tem sido utilizado para indicar um parâmetro normativo de justiça, com significação que remonta à filosofia de Hegel que, em seus escritos de Jena, usou tal conceito com o propósito de descrever a composição interna da relação ética que ocorre entre dois sujeitos.

Na visão de Hegel, o conflito capaz de ativar a “luta por reconhecimento” passa a existir quando o “Outro” não atende a expectativa normativa de seu companheiro de interação, negando-lhe, inclusive, a reciprocidade de tratamento.

A ideia original de Hegel foi retomada por autores contemporâneos, e, nos dias atuais, impulsionado principalmente pela contribuição de Axel Honneth, pode-se afirmar que o reconhecimento se constitui no alicerce de diferentes movimentos sociais, que buscam evidenciar como os modelos dominantes de representação, interpretação e comunicação implicam em uma situação de inequívoca dominação cultural, não-reconhecimento e desrespeito.

Tomando por base os estudos hegelianos sobre os três padrões de reconhecimento recíproco: o reconhecimento através do amor, o reconhecimento jurídico e o reconhecimento pela estima social; Honneth encontra e exterioriza três espécies de reconhecimento recusado, sendo que a primeira delas teria como sustentação os maus-tratos corporais que “destroem a autoconfiança elementar de uma pessoa”, a segunda se construiria por meio das “experiências de rebaixamento que afetam o autorrespeito moral”, ou seja, através da exclusão do indivíduo do sistema de garantias de direitos e, por último, a terceira espécie, que diz respeito à “depreciação de modos de vida individuais ou coletivos”, com o uso de práticas ofensivas ou degradatórias.[27]

Pela lição de Axel Honneth pode-se aferir que todos os conflitos sociais guardam correspondência com uma das formas de reconhecimento recusado trazidas logo acima. Nesta direção observa-se que o grande avanço teórico de sua obra é a edificação da hipótese fundamental de que a experiência herdada do desrespeito - pelo não-reconhecimento - “é a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos”.[28]

Em igual estrada o autor defende que “as reações negativas que acompanham no plano psíquico a experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base motivacional afetiva na qual está ancorada a luta por reconhecimento”. [29]

Pelo exposto, a chamada luta social pode ser compreendida como:

[...] o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento.[30]

Em uma correlação com a realidade hodierna infere-se que como plano de fundo dos debates envolvendo as lutas sociais por reconhecimento encontra-se a existência de sociedades globalizadas cada vez mais complexas, onde o convívio instável de múltiplas culturas, com visões de mundo diferenciadas, vem colocando em xeque os grupos sociais mais tradicionais.

Destarte, quando se faz um exame dessas relações de reconhecimento utilizando para tanto o ponto de vista de Honneth, ganha relevância efetuar uma ponderação que considere tanto a presença quanto a ausência dos fundamentos morais nas relações de conflito social. Tal processo tem o condão de revelar, mormente para os conflitos envolvendo distintas percepções culturais acerca dos direitos humanos, um problema gravíssimo: a construção de horizontes antidemocráticos e imperialistas observados a partir de uma suposta proteção aos direitos humanos, ancorada em um modelo ocidental que se diz ideal e universal, mas que na realidade, como o já exposto em linhas pretéritas, não o é, e, com isto, acaba por frear brutalmente qualquer prática de acesso aos direitos, ceifando, desta forma a luta pela dignidade humana.

Igualmente, ao se fazer uma incursão pelos estudos honnethianos, retira-se a máxima de que as relações de respeito entre os membros da sociedade, e aqui pugna-se pela ampliação de sua lição, alcançando também a comunidade internacional, somente se estabelece com êxito a partir do reconhecimento da inclusão de cada um de seus componentes, como indivíduos, no sistema de direitos, em uma posição de manifesta igualdade e que se opere reciprocamente entre todos. Por conseguinte, nos dizeres de Axel Honneth, a conquista do autorrespeito envolve o nascimento de uma:

[...] consciência de poder se respeitar a si próprio, porque ele merece o respeito de todos os outros. No entanto, só com a formação de direitos básicos universais, uma forma de auto-respeito dessa espécie pode assumir o caráter que lhe é somado quando se fala da imputabilidade moral como cerne, digno de respeito, de uma pessoa; pois só sob as condições em que direitos universais não são mais adjudicados de maneira díspar aos membros de grupos sociais definidos por status, mas, em princípio, de maneira igualitária a todos os homens como seres livres, a pessoa de direito individual poderá ver neles um parâmetro para que a capacidade de formação do juízo autônomo encontre reconhecimento nela.[31]

E, mais:

É o caráter público que os direitos possuem, porque autorizam seu portador a uma ação perceptível aos parceiros de interação, o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorrespeito; pois, com a atividade facultativa de reclamar direitos, é dado ao indivíduo um meio de expressão simbólica, cuja efetividade social pode demonstrar-lhe reiteradamente que ele encontra reconhecimento universal como pessoa moralmente imputável.[32]

Pela elucidação acima se tem a certeza de que somente com o reconhecimento e o respeito mútuo pode-se almejar uma igualdade de direitos entre os indivíduos ou grupos que integram uma sociedade.

Outra contribuição relevante da Teoria do Reconhecimento de Honneth pode ser observada a partir de sua concepção normativa da luta pelo reconhecimento. Ao empreender tal visão, o autor firma um processo de transformação moral da sociedade, no sentido evolutivo, compreendendo tanto a perspectiva universalista quanto a relativista dos valores morais, uma vez que a luta por reconhecimento representaria sempre, segundo ele, um elo entre a negativa do reconhecimento e o seu posterior reconhecimento normativo, passível de universalização. Pelas palavras do próprio Honneth:

A abordagem da teoria do reconhecimento, na medida em que a desenvolvemos até agora na qualidade de uma concepção normativa, encontra-se no ponto mediano entre uma teoria moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha com estas a orientação pelo fim da auto-realização humana.[33]

Ante a constatação feita pelo autor em análise, deduz-se que a reconstrução dos direitos humanos alicerçando-se na luta por reconhecimento ampliará a cobertura jurídica dispensada à dignidade humana, critério comum, capaz de unir as diferentes culturas, razão pela qual uma teoria intercultural dos direitos humanos, reconhecedora da universalidade de sua reciprocidade, poderá alcançar os vários particularismos sem, contudo, torná-los absolutos; ou, em esteira oposta, poderá reconhecê-los em suas especificidades, não os rejeitando.

Na percepção de Flávia Piovesan:

A abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um universalismo de confluência. Este universalismo de confluência, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil internacional, a partir de suas demandas e reivindicações morais, é que assegurará a legitimidade do processo de construção de parâmetros internacionais mínimos voltados à proteção dos direitos humanos.[34]

Desta forma, a perspectiva intercultural parece ser a mais comprometida com a busca de alternativas e práticas de convivência harmoniosa entre as distintas culturas, sobretudo pelos questionamentos que levanta sobre os conceitos etnocêntricos vigentes, implicando na confirmação de que o viés humanitário ocidental não se constitui na única expressão da verdade.

A defesa dos direitos humanos, mais detidamente da dignidade humana, deve ser a opção de largada para o estabelecimento de diálogos entre variados grupos sobre as diversas concepções de Filosofia e de Direito que cada cultura possui, construídos a partir do reconhecimento recíproco, pressupondo a aceitação consciente das diversidades culturais, abrindo, com isto, as portas para o diálogo mais do que necessário sobre os direitos humanos.

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Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Pela (re)construção dos direitos humanos: em busca da legitimação das intervenções humanitárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3190, 26 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21365. Acesso em: 22 nov. 2024.

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