“Hoje o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional” (HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 11/12).
O processo de globalização econômica, bastante acentuado após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo a ideia de eliminação de fronteiras nos mercados, o que se refletiu paralelamente no campo jurídico. Disso, questiona-se a tendência de flexibilização e de relativização da soberania do Estado em prol da universalização dos Direitos Humanos. Será isso possível?
Antes mesmo de responder a essa indagação, há que se expor uma conceituação rápida dos direitos humanos: Direitos Humanos são todos aqueles direitos ditos fundamentais (os individuais, os sociais, os econômicos, os políticos e um novo que é o ligado à democratização da informação). Fala-se aqui, resumindo, de direitos ligados à dignidade humana, sendo, como bem coloca Norberto Bobbio, levado em conta a liberdade igualitária e a igualdade libertária. Numa conceituação mais abrangente, constate-se o ensinamento do jurista Antonio Enrique Perez Luño (1990, p. 48), quando diz que os direitos humanos são "um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional", como é o caso do Brasil, que aceitou na Constituição de 1988 diversos princípios basilares retirados dos fundamentos dos Direitos Humanos como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, proferidos no artigo 5° da CF.
Falando em plano nacional e internacional, necessário refletir um pouco sobre a história dos Direitos Humanos e sobre a dicotomia entre a universalidade e a particularidade de cada país, ou seja, sobre o alcance deles.
Os EUA foram o primeiro país a formular uma declaração de direitos do homem em 1776. Porém, é com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que podemos falar realmente de uma preocupação com os Direitos Humanos. "Liberdade e Igualdade!", falavam os franceses na revolução. Mas, foi após a Segunda Guerra Mundial que os Direitos Humanos ganharam um impulso estratosférico na agenda universal. Isso era porque, antes, a abordagem sobre esses direitos era mais filosófica, sem considerações materiais para a sua aplicação real. Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (e com as Conferências Mundiais de Teerã, 1968, e Viena, 1993), os Direitos Humanos são realmente incorporados no ordenamento jurídico internacional, sendo a pedra angular neste processo.
O alcance desses direitos aumenta de forma intensa, sobrepondo todos os Estados à observação de seus fundamentos. Assim, o relativismo cultural cede lugar ao universalismo, na medida em que se considera a pessoa humana, o ser humano em si mesmo dotado de necessidades universais e por isso dotado também de valores universais. O principio da dignidade humana supera o da autodeterminação das nações. Esses valores universais são, dessa forma, o objeto de Instituições Universais ligadas aos Direitos Humanos.
O problema, porém, não é, como postula Bobbio em seu livro "A Era dos Direitos" (1992), o da fundamentação dos Direitos Humanos, mas sim a questão de torná-los efetivos realmente. E efetividade desses direitos é uma palavra que adquire importância maior na medida em que se analisa o processo da globalização dita nefasta, a negativa. A mesma ordem econômica que favorece os países desenvolvidos é a que é responsável pelo extermínio de adultos e crianças diariamente, principalmente nos países de terceiro mundo ou subdesenvolvidos. A globalização negativa, ao contrário da positiva, gera fome e violência, além de injustiça social, onde a filosofia do lucro acima de tudo cega a visão do homem como bem supremo. É para combater em pé de igualdade essa "globalização da pobreza" gerada por um desenvolvimento às avessas que se criou e se cria cada vez mais condições para uma "globalização dos direitos".
No Direito Constitucional isso é sentido através daquilo que os autores, dentre eles Dirley da Cunha[1], chamam de relação transcendental permanente, onde a visão outrora somente local, restrita à base, ao Estado tão somente, lança seu foco para novos horizontes. É o Direito em permanente contato com outros sistemas, abrindo-se, sintonizando-se com os demais para identificar soluções que existem para o Direito.
Nesse contexto, inicia-se, historicamente, com uma ideia de Estado Democrático de Direito (centralidade da Lei), passa-se pelo Constitucionalismo contemporâneo (da pós-modernidade, neoconstitucionalismo) e hoje discute-se acerca do transconstitucionalismo.
O neoconstitucionalismo fincou bases para essa analise global. Foram três os seus marcos: temporal-histórico (reconstrução do continente Europeu pós-Guerra e reconstrução dos Direitos Fundamentais), filosófico (surgimento do pós-positivismo, associando o direito posto à ideia de justiça e moral – direito pressuposto mencionado por Eros Grau) e teórico (ideia de força normativa da Constituição, bem exposta por Konrad Hesse, dando plena normatividade e aplicabilidade ao seu texto).
No âmbito interno, portanto, mais e mais eficácia tinha se dado ao postulado da dignidade da pessoa humana, efetivando-se o texto constitucional. E no cenário mundial?
O fenômeno de expansão da jurisdição constitucional vem, nesse toar, a fim mesmo de fortalecer e afirmar os direitos da pessoa humana (eficácia positiva e negativa dos direitos fundamentais, relacionando-se com a promoção e proteção dos mesmos, respectivamente). Estes (os direitos fundamentais) devem transcender as fronteiras estatais, entrelaçando-se às outras ordens jurídicas estatais, internacionais e supranacionais. Enfim, a ideia do transconstitucionalismo é pegar os fundamentos do neoconstitucionalismo e difundi-los.
Nesse ponto, expressões como "Transconstitucionalismo", "Constitucionalismo Multinível", "Jurisdição Global" ou “Jurisdição Constitucional Internacional”, "Interjusfundamentalidade", "Estado Constitucional Cooperativo" dentre outras vêm surgindo no vocabulário jurídico-constitucional contemporâneo.
Em apertada síntese, Marcelo Neves (2009) aponta em livro homônimo que o “transconstitucionalismo” enseja a aproximar ordens constitucionais com o propósito sinérgico de proteção dos direitos humanos em patamar internacional, criando-se laços de diálogo entre países sem olvidar o respeito cultural e jurídico de cada realidade; a segunda nomenclatura ("Constitucionalismo Multinível") é de larga utilização nas teorias constitucionais que tratam acerca da proteção de direitos (inclusive, humanos e fundamentais) em diversos âmbitos de incidência normativa; a terceira expressão ("Jurisdição Global" ou “Jurisdição Constitucional Internacional”), consoante doutrina balizada, reafirma as colocações das duas anteriores do ponto de vista da aplicação das normas constitucionais em consonância com as observações do sistema protetivo dos direitos humanos internacionais, com a ajuda das Cortes Internacionais e Convenções eventualmente celebradas; já "Interjusfundamentalidade", cunhada por Canotilho, realça a linha de raciocínio que concerne à interação decisória de Tribunais Constitucionais, Cortes Internacionais, Comunidades e outros organismos do Judiciário interno que detêm o poder jurisdicional para efetivação e concreção dos direitos fundamentais e seus superprincípios, como o caso do Supremo Tribunal Federal no Brasil.
Por fim, a última expressão ("Estado Constitucional Cooperativo") traduz o pensamento de Peter Häberle, o qual tem influenciado o desenvolvimento do Direito Constitucional, principalmente aqui no Brasil pelas decisões recentes encontradas na jurisprudência do STF, o que assaz sintoniza o país no âmbito do Direito Judicial (Cf. PEREIRA, 2012):
a) abertura do processo constitucional a uma maior pluralidade de sujeitos – os intérpretes em sentido amplo da Constituição numa “comunicação entre norma e fato” (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt) –, através dos amici curiae (com possibilidade hoje de até fazerem sustentação oral) e das audiências públicas (art. 9º da Lei 9.868/99), propiciando maior legitimidade democrática às decisões proferidas, sendo relevante ainda destacar que tais audiências devem ser transmitidas pela TV Justiça e pela Rádio Justiça para conhecimento geral e imediato (art. 154 do RI/STF);
b) o pensamento das possibilidades ou indagativo (fragendes Denken), pelo que se revela que a Constituição não é norma fechada, mas sim um projeto (Entwurf) em contínuo desenvolvimento, tornando-se visível, segundo Häberle, “uma teoria constitucional das alternativas” a converter-se também em uma “teoria constitucional da tolerância”. Isso permite as perspectivas de novas realidades, numa “adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa”. No âmbito do STF, vale citar a sua influência na ADI 1.289;
c) dos seus estudos, retiram-se reflexões sobre a relação entre tempo e Constituição (Zeit und Verfassung) e, desse modo, sobre o fenômeno da mutação constitucional (Verfassungswandel). Afirma Häberle que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, colocando-a em seu devido tempo ou integrando-a na realidade pública. É o que ele passa a chamar conceitualmente de pós-compreensão (Nachverständnis), pelo que se compreende supervenientemente uma dada norma. Por outras palavras, é dizer que a norma, confrontada com novas experiências, transforma-se necessariamente em uma outra norma, por uma interpretação constitucional aberta situada num processo dialético, sendo mais defensável ainda que ocorra exatamente em matéria de defesa dos direitos fundamentais;
d) em uma visão de Häberle de Estado Constitucional cooperativo, no contexto atual de abertura a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos e fundamentais, destaca-se sua influência no âmbito do Supremo a partir do julgamento dos Recursos Extraordinários 349.703 (relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes) e 466.343 (relator ministro Cezar Peluso), defensável em conta do art. 4º, parágrafo único, e art. 5º, §§ 2º, 3º e 4º da CF/88, pelo que adotou-se a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos com eficácia jurídica paralisante de disciplina normativa infraconstitucional conflitante (Cf. MENDES; VALE, 2009).
Contudo, com o transconstitucionalismo não se prega a ideia de "Estado Mundial" ou "Constituição Mundial". Propõe-se, na verdade, que as ordens estatais, internacionais e supranacionais dialoguem, entrosem-se, persuadindo uma e outra pelas suas próprias decisões. Isso acontece com o próprio Supremo Tribunal Federal no Brasil, pois ele, em seus julgados, cita Tribunais Europeus e Americanos, com fim de fundamentar melhor suas teses.
Por certo a existência de Cortes Internacionais, tais como a Corte Interamericana, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos ou o Tribunal Penal Internacional, traz em seu âmago o direito à justiciabilidade internacional dos direitos humanos e a aceitação da jurisdição obrigatória dessas Cortes nesses casos (como no caso da aceitação pelo Brasil, no art. 5°, § 4°, CF), lançando as premissas basilares em prol do surgimento e do desenvolvimento da denominada “jurisdição constitucional internacional”, aplicada em seu sentido correto, ou seja, de não ofensa frontal e absoluta da soberania estatal, cunhada, destarte,
a partir da abertura normativa constitucional à ordem jurídica internacional de proteção dos direitos humanos, seja pela conjugação dos ideais inspiradores do constitucionalismo e da internacionalização dos direitos humanos, seja pela própria estrutura normativa e principiológica da Constituição Federal de 1988. (RAMIRES, 2006)
Tais Tribunais, inclusive, apõem condenações em hipóteses de descumprimento. Cite-se, por exemplo, o caso da princesa Caroline de Mônaco, flagrada em posições íntimas. A Corte Europeia de Direitos Humanos repudiou tal ato, decidindo de forma diversa do próprio Tribunal Federal Alemão, pelo que condenou a Alemanha por isso. Outro caso é a submissão do Brasil ao Tratado de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), já que, estando submetido aos seus termos, sujeita-se às sanções em caso de seu descumprimento.
Ainda no lastro da dignidade da pessoa humana, tem-se que em 25 de agosto de 2009 fora promulgada pelo Brasil a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. O efeito imediato disso é que tal assunto passa a ser integrado no sistema brasileiro com força de norma supralegal, conforme orientação do STF, pelo que as demais normas infraconstitucionais devem obedecer sob pena de revogação.
E nesse assunto específico isso se mostra relevante, pois, embora o Brasil apresente um rol amplo de Leis e Decretos Regulamentares em favor das pessoas com deficiência, estes não gozam de eficácia plena, seja porque os Decretos não trazem força cogente, não havendo sanção imposta aos transgressores, seja porque todo esse emaranhado normativo surge de forma desordenada, dificultando, ao aplicador, a apreensão e correta aplicação dos seus dispositivos.
Com a ratificação da Convenção, várias obrigações são, de forma sistemática, estatuídas, sendo que, ainda, conforme o seu texto, "qualquer Estado Parte do presente Protocolo ("Estado Parte") reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ("Comitê") para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção pelo referido Estado Parte". E continua dizendo que "o Comitê levará confidencialmente ao conhecimento do Estado Parte concernente qualquer comunicação submetida ao Comitê. Dentro do período de seis meses, o Estado concernente submeterá ao Comitê explicações ou declarações por escrito, esclarecendo a matéria e a eventual solução adotada pelo referido Estado", assegurando que "a qualquer momento após receber uma comunicação e antes de decidir o mérito dessa comunicação, o Comitê poderá transmitir ao Estado Parte concernente, para sua urgente consideração, um pedido para que o Estado Parte tome as medidas de natureza cautelar que forem necessárias para evitar possíveis danos irreparáveis à vítima ou às vítimas da violação alegada".
De todo o estudo, conclui-se que os Direitos Humanos de um lado vêm assegurar e defender, além de outros pontos, aquilo que a globalização positiva produz e, de outro lado, vêm negar veementemente e lutar contra o arbítrio e a exclusão social que a globalização negativa gera. Não se pode substituir a dignidade da pessoa humana pelo mercado ou uma noção defasada de Estado e soberania. Liberdade, Igualdade e Dignidade são princípios basilares de qualquer sociedade realmente democrática que almeja sempre o desenvolvimento.
BIBLIOGRAFIA
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PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. Direito judicial criativo: ativismo constitucional e Justiça instituinte. Análise de perspectiva do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3182, 18 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21310>. Acesso em: 20 mar. 2012.
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RAMIRES, Rosana Laura de Castro Farias. A Jurisdição Constitucional Internacional: o acesso à Corte Interamericana como garantia constitucional. PUC-SP, Mestrado, 2006. Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/3/TDE-2007-04-03T11:24:39Z-2864/Publico/DIR%20-%20Rosana%20Laura%20de%20C%20F%20Ramires.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2012.
Notas
[1] Palestra proferida no IV Congresso Jurídico Beneficente – Direito Público e Privado (novas perspectivas), 22 e 23 de setembro de 2011, Aracaju/SE, cujo tema apresentado em 23/09/2011 pelo professor Dr. Dirley da Cunha Jr. foi Do Neoconstitucionalismo ao Transconstitucionalismo: a Construção de um Sistema Constitucional Globalizado?