III.Conclusão
Diante da inexistência de diferenciação nítida entre o homem e a natureza, onde este se apresenta como uma transposição do humano para o cósmico, surge a primeira preocupação com o todo social, que fez com que Platão elegesse a polis como o organismo completo, a unidade perfeita, "toda visão unitária da natureza".
O Homem é um ser racional que tem em si a vontade divina revelada, e por essa vontade o Homem se governa, nada mais é que o Direito Natural, que deverá estar presente no Direito positivado, porque a razão humana reflete a natureza divina, apesar de suas imperfeições.
Frente a este pensar, o Estado possuía a sua autonomia comprometida, porque vinculava-se à Igreja, como pregava Agostinho, porém, Tomas de Aquino concorda que o Direito deriva da divindade, mas não da interpretação dada pela Igreja, a força divina que está dentro do homem flui com a sua própria razão.
A conciliação do poder estatal com o cristianismo, idéia aceita pela sua popularização, foi rechaçada pelas seitas eréticas, que viam a autonomia do Estado em relação ao eclesiástico, idéias demonstradas por Dante Alighieri, e reforçadas por Marsílio de Pádua, para quem todo indivíduo, seja ele leigo ou clérigo, nobre ou não, está sob o poder do Estado, retratado pelo Direito, que tem na lei a sua maior expressão, a quem o próprio Estado se submete.
O homem, pouco a pouco, descobre-se como indivíduo, e os sofistas transportam do cosmo para o homem tudo que afeta a sua vida na sociedade. Essa descoberta transforma a educação do homem, que lhe dá maior conhecimento, com o qual amplia a sua participação política na sociedade, como nas atividades mercantis.
O contato com os estrangeiros chegados a Atenas e em outras cidades, mais difunde os conhecimentos, provoca a comparação das diferenças de costumes, de modo de viver e de pensar. Isso tudo provoca uma grande crise na aristocracia, as tradições começam a ruir, e o privilégio do berço é substituído pela conquista adquirida pela cultura e pelo conhecimento. O areté deixa de ser uma questão de sangue para ser fruto do conhecimento.
Revela Paulo que o homem não pertence ao Estado, mas, sim a Deus. Tal pensamento não possui um significado somente social, mas também político, que repercutirá no tempo, e será propulsor da descoberta do indivíduo contra o arbítrio do Estado.
É no liberalismo que a descoberta do indivíduo se completa, que se confronta com a realidade dialética do Estado, que por prescindir do poder, aterroriza o indivíduo, torna-se o maior inimigo da liberdade humana.
A teoria jusnaturalista limita os direitos inatos dos indivíduos, que são positivados perante o Estado, que exerce o negativum da liberdade, a fim de proteger a Sociedade em que vivem os indivíduos, fazendo do Estado apenas um guardião dessa liberdade, no chamado Estado gendarme de Kant.
O bem comum só será alcançado se o homem colocar a sua força criadora em favor do Estado, que deve surgir diante da vontade deliberada dos indivíduos que o compõe, a volunté générale dos contratualistas, que surge, mas que não prescinde do poder e da soberania, e que encerra a singularidade de revestir o poder de caráter jurídico, as quais acabam se voltando contra os seus criadores.
O Estado absolutista do monarca é tido como o primeiro Estado de Direito, é "a armadura de defesa e proteção da liberdade", no dizer de Kant. Essencialmente formalista, impera o despotismo contra a liberdade dos indivíduos, que lutam por esta, e a obtém no movimento revolucionário de 1789.
A burguesia, classe propulsora dessa revolta, é investida no poder, e cria um Estado pautado na liberdade, igualdade e fraternidade, apregoadas em favor de todos.
Os princípios filosóficos do liberalismo, que deveriam ser aplicados universalmente, abrangendo todas as classes sociais, não o são, só a classe burguesa, originária do terceiro estado, é quem se beneficia do poder. Todavia, o povo despertou a consciência de suas liberdades políticas, o que faz surgir um Direito novo na teoria política, capaz de transpor qualquer barreira.
O fim do Estado monárquico-absolutista é a primeira contribuição do liberalismo ao Direito, especialmente porque os seus princípios vão se incorporando ao constitucionalismo moderno.
Por ser também formal, ou seja, o princípio da igualdade de todos perante a lei, e das liberdades individuais frente ao Estado, apenas ser vivificado pela classe burguesa dominante, em detrimento das demais classes sociais, tal como o proletariado, cria uma antinomia entre a liberdade e a democracia.
A proteção dos direitos da liberdade exigia novas técnicas que a salvaguardassem, e a teoria da divisão dos poderes, aprimorada por Montesquieu, constituiu-se no vislumbre teórico à solução final do problema da limitação da soberania.
A tripartição dos poderes da soberania "como princípio de organização do Estado constitucional"(30), como idéia de "o poder deter o poder"(31), em Executivo, Legislativo e Judiciário, é outra contribuição do liberalismo para o Direito, pois o seu fim primordial é escudar os direitos do indivíduo, como o vem fazendo desde então, já sujeito a um novo repensar, frente à nova realidade social.
A liberdade primitiva transmuda-se em liberdade jurídica, os direitos naturais em civis. O princípio liberal avança para o princípio democrático, o governo de uma classe para o governo de todas as classes.
Liberdade e democracia nem sempre caminharam juntas, porque antinômicas. A liberdade representava a participação no poder de uma só classe, enquanto que na democracia todas deveriam dele participar. Mas para combater o absolutismo do rei, os filósofos do liberalismo conciliaram as duas teorias, e caminharam em direção do Estado liberal-democrático.
O princípio da representação defendido pela burguesia se agigante, e parte em busca do sufrágio universal. A contribuição de Rousseau para a sua implantação se fez sentir, pregava a universalização deste em favor da democracia, que via como a conciliação das classes.
De início, o sufrágio universal foi norteado por muitas limitações e privilégios de todas as ordens, inclusive econômicas, que impediam as classes menos favorecidas de participarem da formação do poder, e permitia aos burgueses pregarem a demagogia dos seus princípios formalmente garantidos.
Em 1848, com a vitória das armas revolucionárias, o sufrágio universal tomou corpo. Observamos, ainda em nossos dias, as dificuldades das classes menos esclarecidas ou abastadas em se fazerem representar diante do poder, em favor dos seus, mas percebemos a evolução por que passou o sufrágio universal, mais uma importante contribuição do liberalismo, não só para o Direito, mas também para o progresso da humanidade.
Muitas foram contribuições do liberalismo para o Direito, que emergiram da nova realidade social com o avanço do comércio e das navegações, o contato com novos povos e a descoberta de novos costumes, fazendo do conhecimento a verdadeira importância do indivíduo, e não mais o berço de onde nascia.
Porém, resumidas nestas singelas palavras o liberalismo, ensinou ao homem o ideal de justiça, de liberdade e de igualdade que possuem perante a força cósmica criadora, que se projeta para o seio da sociedade humana, e fez materializar no Direito, no constitucionalismo moderno, os seus postulados, que em muito já contribuíram à evolução da humanidade, que muita tem ainda que caminhar por outros rumos mais aperfeiçoados, mas que tiveram os seus primeiros passos decisivos dados pelo Liberalismo.
Notas
1. FALCÃO, Raimundo Bezerra, Hermenêutica. São Paulo, Malheiros, 1997.
2. Rodolfo Mondolfo, O Pensamento Antigo, v. Ip. 15. In. Falcão, ob. cit. p. 105
3. Falcão, ob. cit. pág... 106 - 107.
4. Suma, 1a parte da 2a, q. CXIII, art. I, in Falcão, ob. cit. p. 108.
5. Falcão, ob. cit. p. 111.
6. Falcão, ob. cit. p. 112.
7. Falcão, ob. cit. p. 132.
8. In Falcão, ob. cit. p. 132
9. Bataglia, (Curso de Filosofía del Derecho, p.168), in Falcão, ob. cit. p. 135
10. BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social. P. 40, 6. Ed. São Paulo, Malheiros 1996.
11. Ob. cit. p. 40
12. Bonavides, ob. cit. p. 44
13. Bonavides, ob. cit. p 45.
14. Johannes Althusius und die Entwickung des allgemeinen Staatsrechtes, p. 134, in Bonavides, ob. cit. p. 45
15. Montesquieu, De l’Espirit des Lois, em Oeuvres Complète, p. 395., in Bonavides, ob. cit. p.46
16. Gustav Seidler, in. Bonavides, Ob. cit. p. 46
17. Bonavides, ob. cit. p. 47
18. Treatise of Civil Government and a Letter Concerning Toleration, p.108, In. Bonavides, ob. cit. p. 48.
19. Bonavides, ob. cit. p. 49.
20. Bonavides, ob. cit. p. 49
21. Bonavides, ob. cit. p. 51
22. In Gerhard Leibholz, ob. cit. p. 136, In Bonavides, ob. cit. p. 53
23. Leibholz, ob. cit. p. 136, in Bonavides, ob. cit. p. 53.
24. Leibholz, ob. cit. p. 136 -137, in Bonavides, ob. cit. p. 53-54.
25. Lacambra, Derecho y Libertda, p. 87-88-89, in Bonavides, ob. cit. p. 54.
26. Bonavides, ob. cit. p. 55.
27. Vierkandt, in Bonavides, ob. cit. p. 55.
28. A Vierkandt, Staat und Gesellschatt in der Gegenwart, zweit verbesserte, Leipzig, 1921, p. 58. In Banovides, ob. cit. p. 56.
29. Vierkandt, ob. cit. p. 99, in Bonavides, ob. cit. p. 60
30. Bonavides, ob. cit. p. 45
31. Montesquieu, De l’Espirit des Lois, em Oeuvres Complète, p. 395., in Bonavides, ob. cit. p.46
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