Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) morreu sem ver publicado aquele que certamente foi o maior produto de sua produção literária: Il gattopardo, de 1958. No ano de 1959 o livro foi agraciado com o Prêmio Strega, existente desde 1947 e que premia livros publicados na Itália entre 1° de abril do ano precedente e 31 de março do ano da premiação. Meteoricamente alçado ao patamar de “obra-prima”, o livro de Lampedusa tornou-se filme em 1963. Dirigido por Luchino Visconti e estrelado por Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale, a “fita” – como diriam os mais antigos, minha nonna Vitória Ferracini Gumerato, inclusive – ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cinema Cannes, o mesmo prêmio que um ano antes, em 1962, ganhara o nosso Anselmo Duarte com o filme O pagador de promessas.
Romance publicado postumamente, Il gattopardo (O Leopardo) descreve o declínio da aristocracia monárquica siciliana durante a segunda etapa do Risorgimento, período histórico no qual as forças políticas de antanho estruturaram a unificação da Itália, até então dividida em vários pequenos reinos submetidos à soberania de potências estrangeiras.
No livro há uma passagem antológica onde está radicada a etimologia da palavra gattopardismo, ou lampedusiano, que inclusive faz parte do glossário da ciência política. Eis a frase: - “Se queremos que tudo fique como está então tudo deve ser mudado” (Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi). Ou, em outros termos, “é preciso que tudo mude para que nada mude”.
O processo civil brasileiro da atualidade vive uma crise de identidade, um verdadeiro gattopardismo estrutural. Após várias leis da década dos noventa do século passado, somadas a outras tantas já positivadas nesta primeira década corrente, repaginamos o Código Buzaid que hoje, em verdade, não mais existe. A base legal é a mesma (Lei n° 5.869/73). Mas o modelo de processo nela contido é bem outro. Elogiável sob alguns aspectos; criticável quando se lho mira por outro ângulo.
Mas um fator preponderante continua a lhe marca o perfil e isso a despeito do ambiente democrático e republicano estabelecido pela Constituição de 1988: continua sendo um CPC “do juiz”, um CPC autoritário, um CPC viabilizador das mais perversas arbitrariedades. Ou seja: mudou-se muito, mas nada – ou muito pouco – mudou. Na essência, as matizes metodológicas do nosso CPC continuam a movimentar uma engrenagem na qual o processo civil se desenvolve como categoria jurídica a serviço da jurisdição (Poder), e não como estrutura democrática e republicana viabilizadora da dialética que caracteriza o devido processo legal (Garantia). E a prova de que pouco mudou está no fato de que atualmente tramita na Câmara dos Deputados um anteprojeto de novo CPC. Eis aí o “processo civil gattopardista” a que me refiro no título acima. Queremos mudar novamente, mas pouco será mudado!
A atuação do prático diante do Poder Judiciário “civil” nos mostra isso, apesar de a dogmática (doutrina) continuar a nos seduzir com um discurso legitimador desse “poderoso juiz” que tudo pode em nome da “verdade”, da “justiça” e da concretização de um “processo justo”. O processo civil dos livros (law in books) é romântico; o processo civil da prática (law in action) é assustador, ao menos na perspectiva dos artífices da postulação (advocacia, MP, defensoria pública). Estes são testemunhas do ultraje que a garantia do devido processo legal sofre no dia-a-dia do foro cível – além do penal, é claro! – nas mãos desse “juiz redentor” dos males da sociedade, tão decantando em verso e prosa nas lições da grande maioria dos nossos processualistas e que tanta influência exerce sobre nossa jurisprudência. Ignoramos que de nossa Constituição da República transborda um modelo semântico-processual garantista e nos deixamos levar por um arbitrário e equivocado modelo pragmático-processual de viés ativista, onde avulta a figura de um juiz comprometido com a própria “justiça subjetiva” que melhor lhe ocorrer diante do caso concreto[1]. Não é incomum que na cena processual nos deparemos com justiceiros – e não com juízes – agigantados sob o sacrossanto manto da toga.
Venho pensando e cada vez mais tenho para mim que a falta de sintonia entre o modelo semântico que se projeta da Constituição e o modelo pragmático do processo que praticamos, tem boa parte de sua etiologia radicada nos exatos 356 anos (1478-1834) que durou no mundo iberoamericano a fantasmagórica Inquisição Espanhola – “mãe regente” da Inquisição Portuguesa –, que certamente introjetou em nosso “DNA social” esse temor reverencial que a sociedade externa diante da figura da autoridade judicial. Apesar de não ser disso que trato aqui, deixo o ponto em suspenso para possível reflexão de quem assim o queria.
O processo dos Juizados Especiais padece da mesma patologia. O “devido processo legal” nele praticado muitas vezes nos revela diante dos olhos um processo anti-democrático e anti-republicano que, por isso mesmo, acaba por ser um não-processo, um arremedo de devido processo legal, um faz de conta de imparcialidade, de impartialidade[2], de ampla defesa, de contraditório.
Veja-se, por exemplo, o que ocorre no âmbito das Turmas Recursais dos JECs estaduais. É tamanho o descalabro que o STJ, após autorização do Pleno do Supremo Tribunal Federal, acabou por fazer editar a Resolução n° 12, de 14 de dezembro de 2009, para viabilizar a reclamação constitucional contra acórdãos das Turmas Recursais dos Juizados Especiais que sejam contrários à jurisprudência, súmula ou orientação adotada em julgamento de REsp repetitivo pelo STJ[3].
A Resolução n° 12, contudo, deu a essa reclamação natureza jurídica de recurso a ser interposto no prazo de 15 (quinze) dias contados da ciência do acórdão a ser impugnado (Res. n° 12/09, art. 1°, caput), contrariando o regramento constitucional que lhe concebe como uma ação de impugnação autônoma. E já que se trata de remédio “inventado” pela jurisprudência, que tenha, então, natureza recursal...
Mas o fato é que através dela o jurisdicionado ganhou um novo alento diante das inúmeras surpresas e perplexidades que algumas Turmas dos JECs espalhadas por este “brasilzão” – verdadeiros oásis de arbitrariedade – geram àqueles que se vêem obrigados a sujeitar-se ao respectivo modelo de processo, surgido sob o argumento retórico da viabilização do acesso à justiça. Paradoxalmente, contudo, presencia-se todos os dias a consagração das mais ululantes “injustiças” e as mais desbragadas rupturas das garantias processuais no âmbito dos JECs estaduais.
O STJ, infelizmente, e rigorosamente contra o texto da Resolução n° 12/2009, acabou por sedimentar o entendimento de que a reclamação contra acórdãos das Turmas Recursais dos JECs só é possível se tiver por fundamento questão de direito material, não servindo, portanto, em situações nas quais as Turmas Recursais estaduais ignoram importantíssimas regras de garantia contidas no CPC [4]-[5].
O art. 1° da Resolução n° 12 não faz qualquer ressalva quanto a caber reclamação contra acórdão que tenha malversado direito material ou processual, já que o respectivo enunciado prescritivo afirma que o cabimento é para “dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual” e aquilo que é praticado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tal fenômeno restritivo é fruto da denominada jurisprudência defensiva deste tribunal de superposição, forte em buscar argumentos retóricos para impedir a – de fato existente – arribada tsunâmica de processos para sua análise.
No que toca aos Juizados Especiais Federais a abertura para o arbítrio judicial é equivalente, até porque o regramento procedimental é o da Lei 9.099/95, conforme determina o art. 1° da Lei dos JEFs.
Contudo, os JEFs têm uma característica que é praticamente ignorada pela legislação processual brasileira e pode ser identificada em dois atributos bem particulares de seu funcionamento que, a rigor, são os mesmo da Justiça Federal comum: i) é processo onde, na grande maioria das vezes, será a Administração Pública Federal – direta ou descentralizada – que estará num dos pólos da relação processual; ii) é processo onde, indistintamente, haverá a presença daqueles que podemos chamar de grandes litigantes, que são a União – Administração direta e indireta – e a Caixa Econômica Federal. Atente-se para o ponto: o processo civil no âmbito dos JEFs, na grande maioria das vezes, terá uma pessoa jurídica de direito público e sempre será um processo onde uma das partes é um grande litigante.
Diante dessas duas relevantíssimas peculiaridades de caráter prático eu pergunto: será que a utilização do mesmo modelo de processo dos JECs nos JEFs estaria correta? Será que não seria o caso de termos um modelo de processo próprio e adequado às demandas que envolvam os grandes litigantes como o são as pessoas jurídicas de direito público federal? Será que as regras do CPC e as da Lei 9.099/95, tão próprias à Justiça Estadual em razão das questões privadas de que cuida, devem ser indistintamente utilizadas nos JEFs e na Justiça Federal comum?
Levanto estes questionamentos após algumas conversas que tive com um caro amigo juiz federal e mestre em processo civil pela PUC/SP, o professor Eduardo Costa, um dos processualistas da nova geração mais originais que conheço[6]. O exemplo foi-me dado por Eduardo e diz respeito às demandas perante os JEFs nas quais o INSS integra o pólo passivo.
Sabemos todos – ainda que intuitivamente – que as demandas de beneficiários do INSS em face da respectiva autarquia pululam aos borbotões perante os JEFs.
Nessas demandas é comum que o procedimento judicial seja bastante flexibilizado em razão de se tratar de um grande litigante e da matéria que em juízo será debatida. Mas essa flexibilização, todavia, não ocorre como imposição unilateral e arbitrária do juiz federal, mas como consenso havido entre os sujeitos processuais que postulam tecnicamente em favor do autor (advogado) ou do réu (procurador federal).
Inclusive, corre à boca pequena entre os advogados dos beneficiários que existe uma tal “contestação casada”, que seria uma contestação genérica em nome do INSS que é juntada aos autos, após o ajuizamento da ação, pela própria serventia dos Juizados. Incontinenti, determina-se a perícia judicial a ser realizada conforme agendamento e, com o respectivo laudo, os autos seguem ao juiz federal para a sentença.
Note-se que é um procedimento absolutamente fora das regras processuais formais a que estamos acostumados. Mas o fato é que por contingências do plano pragmático esse tipo de trâmite acaba sendo aceito por todos, não como imposição vertical e arbitrária por parte do juiz, mas sim como decorrência de um consenso entre as partes, criando um modelo pragmático de processo civil muito afeiçoado ao denominado sistema adversarial próprio dos Estados reativos do qual nos fala DAMASKA, que respeitam os direitos sociais e individuais dos cidadãos não viabilizando a utilização do Poder de forma arbitrária, inclusive – e acima de tudo – do poder jurisdicional[7].
Portanto, observa-se nos Juizados Especiais Federais um modelo de processo criado pelo plano pragmático que em muitos de seus aspectos passa ao largo do modelo “oficial” de processo civil que se lhe quer impor. E isso, a mim parece, fundado e legitimado na característica do modelo de processo que acaba sendo implementado quando na relação processual tem-se um grande litigante envolvido, como é o caso típico das demandas que tramitam perante os JEFs.
Concluo, pois, chamando a atenção para o fato de que nosso processo civil deve ser repensado na perspectiva garantista que a Constituição da República nos assegura e isso passa, também, pelo processo civil praticado nos Juizados Especiais.
Se não redimensionarmos nossa perspectiva de análise do direito processual, prosseguiremos na toada gattopardista de Tomasi di Lampedusa. Mudando tudo, para que nada mude.
Notas
[1] Tomo a liberdade de remeter o leitor ao meu “Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate”, veiculado originalmente na Revista MPMG Jurídico, n. 18, dez/2009, pp. 8-15, publicação oficial do Centro de Estudos do Ministério Público de Minas Gerais. Posteriormente também publicado na RBDPro 70/83, abr-jun/2010. Neste texto apresento uma resenha da evolução histórica desse debate, indicando alguns de seus principais protagonistas no processualismo iberoamericano.
[2] Não ter atitude própria de parte, determinando prova de ofício, por exemplo, já que o ônus probatório é do demandante e do demandado. Nesse sentido, cf. o meu Repensando a prova de ofício, RePro 190/315, dez-2010.
[3] Para uma rápida visão dos antecedentes, tanto no STF, como no STJ, que geraram a edição da Resolução n° 12/2009, cf. o meu Reclamação no Superior Tribunal de Justiça, RePro 192/369, fev-2011.
[4] STJ – 1ª Seção – Rcl 4701/MT – Rel. Min. CASTRO MEIRA – j. 10/08/11 – DJe 13/09/11. PROCESSO CIVIL. RECLAMAÇÃO. RESOLUÇÃO STJ 12/2009. MATÉRIA PROCESSUAL. DESCABIMENTO. CONTRARIEDADE À JURISPRUDÊNCIA DO STJ. AUSÊNCIA. 1. Cuida-se de reclamação fundamentada na Resolução STJ 12, de 14.12.2009, na qual se alega que a 2ª Turma Recursal Cível de Mato Grosso desrespeitou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade dos arts. 475-J, 739-A, §§ 1º, 2º e 6º, 128,do CPC, bem como o art. 6º, da LICC e art. 93, IX, da CF. 2. A reclamação disciplinada pela Resolução STJ nº 12/2009 deve seguir a mesma sistemática dos demais procedimentos de uniformização aplicáveis aos juizados especiais, cingindo-se a solucionar os dissídios pretorianos acerca da aplicação do direito material, não se prestando a uniformizar a interpretação das normas processuais. Precedentes. 3. Ademais, a reclamante não demonstrou que o aresto impugnado contrariou a jurisprudência pacificada pelo STJ. A Turma Recursal entendeu ser indevida a multa cominatória porque não houve o descumprimento da decisão judicial. Os precedentes indicados pela reclamante, por seu turno, não trataram da peculiar situação ocorrida no acórdão combatido, o que afasta a alegativa de descumprimento do entendimento jurisprudencial desta Corte. 4. Reclamação improcedente.
[5] STJ – 2ª Seção – AgRg na Rcl 4916/SP – Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – j. 23/02/11 – DJe 04/03/2011. AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. ADMISSIBILIDADE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NO CURSO DE AÇÃO SUBMETIDA AOS JUIZADOS ESPECIAIS. QUESTÕES PROCESSUAIS QUE REFOGEM DO ÂMBITO DA RECLAMAÇÃO. RESOLUÇÃO Nº 12/2009. 1. O Superior Tribunal de Justiça, desde a decisão do STF nos EDcl no RE 571.572-8/BA, Rel. Min. Ellen Gracie, passou a admitir o uso da reclamação para "dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a [sua] jurisprudência..." (art. 1º da Resolução n.º 12/2009, do STJ). 2. A divergência exigida, nos termos do art. 1º da Resolução n.º 12, deve ser verificada em face de jurisprudência consolidada do STJ acerca de temas de direito material, excluindo questões processuais (art. 14, "caput" e § 4º da Lei n.º 10.249/01). 3. A admissibilidade de agravo de instrumento no curso de ação submetida aos Juizados Especiais configura questão processual, que não pode ser analisada pela via da reclamação. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
[6] Cf., dentre outros textos verdadeiramente originais de Eduardo Costa, por exemplo, Uma arqueologia das ciências dogmáticas do processo, RBDPro 61/11, jan-mar/2008. Cf, também, sua extraordinária dissertação de mestrado cuja versão comercial é intitulada O direito vivo das liminares, São Paulo : Ed. Saraiva, 2011.
[7] Cf. DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado – Análisis comparado del proceso legal (Título orginal em inglês The Faces of Justices and State Authority: A comparative approach to the legal process), Santiago de Chile : Editorial Juridica de Chile, 2000, p. 128: “Un Estado reactivo se limita a proporcionar el marco de apoyo dentro del cual los ciudadanos persiguen los objetivos que han elegido. Sus instrumentos deben liberar las fuerzas espontâneas de la autogestión social. El Estado no contempla ninguna noción de interes separado, aparte de los intereses sociales e individuales (privados): no existen problemas que son inherentes al Estado, sólo problemas sociales e individuales”.