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Inconstitucionalidade da lei estadual do Amapá que cria subsídio sob o nome de vencimento

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A Lei estadual nº 0618/01 é flagrantemente inconstitucional, pois ela não altera o Regime Jurídico Único instituído pela Lei Estadual nº 066/93, e cria disfarçadamente o subsídio como forma de remuneração para oito categorias profissionais do Estado do Amapá.

Uma lei estadual tem poder de revogar o direito adquirido, de revogar (mesmo que indiretamente) vantagens previstas na Constituição Federal, e ainda criar o SUBSÍDIO utilizando-se da nomenclatura de VENCIMENTO?

A Lei Estadual nº 0618/01 dispõe sobre o Plano de Cargos e Salários do Estado do Amapá. Além de imprecisa em suas disposições, a referida Lei revoga expressamente direitos garantidos pela Constituição Federal, em especial, o direito adquirido (Cláusula pétrea em nosso ordenamento constitucional).

Vejam o que diz a Lei n° 0618/01 do Estado do Amapá:

LEI N.º 0618, DE 17 DE JULHO DE 2001

Publicada no Diário Oficial do Estado nº 2488 de 23.07.01

(Alterada pelas Leis 0641, de 28.12.01; 0704, de 05.07.2002; 0779, de 30.10.2003; 0822, de 03.04.2004 e 0875, de 03/01/2005.)   

Reestrutura o Plano de Cargos e Salários do Estado do Amapá, aprovado pelo Decreto (N) nº 0319, de 18 de dezembro de 1991 e dá outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ,

Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Amapá decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º - O salário dos servidores públicos civis do Estado do Amapá, ora composto por gratificações e adicionais de caráter permanente e vencimento básico, ficam transformados em vencimento, conforme os anexos das categorias que integram o quadro de servidores civis da Administração Direta do Estado do Amapá, observadas as classes e os padrões respectivos, sem prejuízo das gratificações temporárias.

§ 1º - As gratificações temporárias manterão o seu valor nominal vigente em 31 de julho de 2001 e no caso de alteração serão calculadas sobre percentual do vencimento a ser estabelecido em regulamento.

§ 2º - Ficam mantidas da transformação de que trata este artigo as gratificações de regência de classe, de titulação, de desempenho, de produtividade fiscal e de Atividade de Auditoria, bem como a Parcela Compensatória e, o Programa de Remuneração Variável.

** o § 2º foi alterado pela Lei nº 0822, de 03.05.2004.

§ 3º - As vantagens nominalmente identificadas, de caráter individual, já incorporadas pelo exercício de função gratificada ou cargo em comissão, de que tratavam os §§ 3º, 4º e 5º, do artigo 80, da Lei nº 0066/93, revogados pela Lei nº 0420, de 25 de maio de 1998, não integrarão o valor do salário, de que trata esta Lei.

Art. 2º - Fica terminantemente proibida, na transformação de que trata o artigo 1º desta Lei, redução do salário vigente na data da publicação desta Lei.

Art. 3º - A quantidade de cargos por grupos que compõem a Administração são os constantes no Anexo XII desta Lei.

Art. 4º - Revoga-se o Decreto (N) nº 319, de 18 de dezembro de 1991.

Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos a partir de 01 de agosto de 2001.

Macapá - AP, 17 de julho de 2001.

JOÃO ALBERTO RODRIGUES CAPIBERIBE

Governador

A Lei, em seu art. 1º, revoga adicionais e gratificações. No entanto, ela não especifica quais gratificações e adicionais são extintos para compor o VENCIMENTO. Também, em nenhum momento a Lei fala, diretamente, em SUBSÍDIO. Portanto, ela não dá limites ao Estado-Executivo conferindo-lhe poderes sobrecomuns, pois, ao seu bel-prazer, ele pode escolher quais vantagens não serão concedidas aos seus servidores públicos (mesmo aquelas devidamente previstas em lei), indo além do poder discricionário e se tornando um verdadeiro poder arbitrário.

Tal dispositivo é, juridicamente, uma afronta ao ESTADO DE MOCRÁTICO DE DIREITO, pois, conforme o caput do Art. 37 da Constituição Federal, a Administração Pública deve obedecer ao Princípio da Legalidade. Ou seja, somente pode atuar nos limites estabelecidos pela Lei. Mas o que fazer quando a Lei não impõe limites à Administração Pública?

Com base na Lei Estadual nº 0618/01, o E. Tribunal de Justiça do Estado do Amapá entende que as espécies remuneratórias VENCIMENTO e SUBSÍDIO significam a mesma coisa e, ao arrepio da Constituição Federal, devem ser pagas aos servidores públicos em PARCELA ÚNICA, sendo-lhes vedado o acréscimo de quaisquer vantagens, ainda que devidamente previstas em lei.

A Lei Estadual n° 0618/01 não pode permanecer no ordenamento jurídico local por sua manifesta incompatibilidade com os preceitos decorrentes da Constituição Federal. Por isso, ela deve ser declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário.

Os servidores efetivos do Poder Executivo Estadual sofrem redução em seus vencimentos. Tal redução se dá por conta da aplicação da Lei nº 0618/01 a esses servidores. Por isso o presente estudo pretende demonstrar inconstitucionalidades contidas na referida Lei. É certo que a Administração Pública tem a prerrogativa de alterar a situação de seus servidores de maneira unilateral, em razão do princípio da Supremacia do Interesse Público. Todavia, tal modificação deve ser baseada em Lei que seja totalmente compatível com os preceitos decorrentes da Constituição Federal. Caso isso não ocorra (obediência aos princípios decorrentes da Lei Maior) de que vale, então, a Constituição Federal.

A Lei estadual nº 0618/01 é flagrantemente inconstitucional, pois ela não altera o Regime Jurídico Único instituído pela Lei Estadual nº 066/93, e cria disfarçadamente o SUBSÍDIO como forma de remuneração para oito categorias profissionais do Estado do Amapá, conforme se depreende do seguinte julgado do E. Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, in verbis

CIVIL E ADMINISTRATIVO –servidor público estadual do grupo magistério – Regime jurídico – Direito adquirido – Inexistência – Orientação pacífica do STF – Transformação do salário em subsídio – Extinção do adicional por tempo de serviço – Lei específica para diversas categorias – Ausência de ofensa aos princípios da igualdade , do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos – Lei posterior para o magistério – Referência genérica ao tempo de serviço – Necessidade de criação, por lei, de critérios para a concessão do benefício – Apelação – Improvimento. Omissis 2) Editada lei específica transformando o sistema de remuneração em subsídio, não há de se falar em ofensa aos princípios da igualdade, do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos, mormente quando o servidor público ingressou no serviço público após a vigência do novo diploma legal – omissis – 4) Apelação improvida. (APELAÇÃO CÍVEL. Número do processo 0006741-80.2009.8.03.00/02. Rel. Des. Mário Gurtyev. Câmara Única. Número do acórdão 16021. Votação unânime. Julgado em 20/04/2010. Publicado no D.O.E. nº 71, de 26/04/2010). (Sem grifos no original). (Disponível em www.tjap.jus.br).

O seguinte trecho do julgado acima comprova que o judiciário amapaense entende que as espécies remuneratórias SUBSÍDIO e VENCIMENTO são a mesma coisa, in verbis

Também é incontroverso que o Poder Executivo, ao editar a referida norma, transformou os salários dos servidores estaduais civis, dos grupos que especificou no anexo I, inclusive o grupo magistério, em subsídio, ainda que o legislador tenha se utilizado de outra terminologia (vencimento), visto que pela interpretação lógica e sistemática do texto legal, exsurge clara a ratio legis, no sentido de estabelecer a remuneração dos servidores públicos em parcela única, omissis (o V. Acórdão não contém os mesmos destaques)

Datissima venia, tal entendimento é um absurdo. É que VENCIMENTO e SUBSÍDIO são institutos jurídicos totalmente diferentes posto que, este é pago em parcela única e insuscetível de qualquer acréscimo, e aquele pode ser acrescido de vantagens devidamente previstas em Lei. É importante alertar o perigo que esse entendimento pode ocasionar ao país inteiro. Imagine um governador de qualquer unidade da federação que não queira mais pagar aos servidores públicos vantagens devidamente previstas em Lei. Ele pode dizer: “o Estado não deve mais nenhuma vantagem aos seus servidores, pois o VENCIMENTO que cada um recebe é SUBSÍDIO, na forma da EC 19/98. Portanto, VENCIMENTO deve ser pago em parcela única”. Isso inevitavelmente ocasionaria outra inconstitucionalidade: redução de vencimentos.

O renomado e internacionalmente respeitado constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA, com toda a sua simplicidade que lhe é peculiar, nos ensina em relação a SUBSÍDIO:

A proibição expressa de acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória reforça o repúdio ao conceito tradicional e elimina o vezo de fragmentar a remuneração com múltiplos penduricalhos, que desfiguram o sistema retributório do agente público, gerando desigualdades e injustiças. Mas o conceito de parcela única só repele os acréscimos de espécies remuneratórias do trabalho normal do servidor. Não impede que ele aufira outras verbas pecuniárias que tenham fundamentos diversos, desde que consignados em normas constitucionais. (SILVA, 2.008). (Sem grifos no original).

Com relação a VENCIMENTO, o constitucionalista é enfático:

Vencimento, no singular, é a retribuição devida ao funcionário pelo efetivo exercício do cargo, emprego ou função, correspondente ao símbolo ou ao nível e grau de progressão funcional ou ao padrão, fixado em lei. Nesse sentido, a palavra não é empregada uma só vez na Constituição. Vencimentos, no plural, consiste no vencimento (retribuição correspondente ao símbolo ou ao nível ou ao padrão fixado em lei) acrescido das vantagens pecuniárias fixas. Nesse sentido, o termo é empregado em vários dispositivos constitucionais. (Idem, Ibidem. Pág. 684/685) (O original não contém esses grifos).

Observe-se que a lição de José Afonso da Silva é sábia e, acertadamente, José dos Santos Carvalho Filho faz uma colocação bem ponderada ao se referir à REMUNERAÇÃO e ao VENCIMENTO do servidor público

O sistema remuneratório no serviço público, seja em nível constitucional, seja no plano das Leis funcionais, é um dos pontos mais confusos do regime estatutário. O grande choque de interesses, o escamoteamento de vencimentos, a simulação da natureza das parcelas estipendiárias, a imoralidade administrativa, tudo enfim acaba por acarretar uma confusão sem limites, gerando uma infinidade de soluções diversas para casos iguais e uma só solução para hipóteses diferentes. Vejamos o sistema normativo constitucional a respeito.

Remuneração é o montante percebido pelo servidor público a título de vencimentos e de vantagens pecuniárias. É, portanto, o somatório das várias parcelas pecuniárias a que faz jus, em decorrência de sua situação funcional.

Vencimento é a retribuição pecuniária que o servidor percebe pelo exercício de seu cargo, conforme a correta conceituação prevista no estatuto funcional federal (art. 40, Lei nº 8.112/90). Emprega-se, ainda, no mesmo sentido vencimento-base ou vencimento-padrão. Essa retribuição se relaciona diretamente com o cargo ocupado pelo servidor: todo cargo tem seu vencimento previamente estipulado. (CARVALHO FILHO, 2010) (O original não contém os mesmos destaques)

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Com relação à espécie remuneratória SUBSÍDIO, o eminente doutrinador ensina que

Com efeito, de acordo com o art. 39, §4º, da CF, introduzida pela EC nº 19/98, a remuneração pelo sistema de subsídios é fixada em parcela única, sendo, por conseguinte, vedada a percepção de acréscimos de qualquer natureza, como adicionais, gratificações, abonos, prêmios, verbas de representação e outros do mesmo gênero. Significa dizer que a remuneração hoje percebida, em várias parcelas, pelos agentes incluídos no sistema de subsídio deverá futuramente ser transformada em parcela única, sempre obedecido o teto remuneratório previsto no art. 37, X e XI, da CF. (Idem, ibidem. Pág. 800 e 801)(O original não contem esses destaques).

Outra violação à Lei Maior está inserta no Art.1º, §3º da Lei nº 0618/01

§ 3º - As vantagens nominalmente identificadas, de caráter individual, já incorporadas pelo exercício de função gratificada ou cargo em comissão, de que tratavam os §§ 3º, 4º e 5º, do artigo 80, da Lei nº 0066/93, revogados pela Lei nº 0420, de 25 de maio de 1998, não integrarão o valor do salário, de que trata esta Lei. (Sem grifos no original).

O dispositivo em tela está, claramente, revogando o constitucionalmente protegido direito adquirido. Pois vejam o que diz o Art. 6º, § 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (a LIDB foi recepcionada pela Constituição Federal, conforme sábia lição de Pontes de Miranda)

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Omissis

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Grifei.

Assim, vantagens nominalmente identificadas, de caráter individual, já incorporadas pelo exercício de função gratificada ou cargo comissionado devidamente previstos em Lei são direitos adquiridos que os titulares exercem em virtude de Lei. Ora, se essas vantagens não integram mais o valor do salário do titular, é porque elas foram revogadas. Isto incide em violação do disposto no Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Outrossim, não há como vantagens já incorporadas serem retiradas do salário do servidor público sem que haja redução deste, o que viola expressamente o disposto no Art. 37, XV, da Constituição Federal (Irredutibilidade de vencimentos),  posto que em nenhum momento a Lei Estadual nº 0618/01 disciplina como será procedido o pagamento das vantagens adquiridas por decisão judicial, em decorrência de decisão administrativa ou decorrentes de Lei.

Observe, também, que a Lei determina proibição de redução salarial. Porém, ela não diz como será garantida essa irredutibilidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23 ed. rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21 ed. São Paulo: atlas, 2.008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2010.

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Sobre o autor
Franck Gilberto Oliveira da Silva

Advogado. Professor da Faculdade de Macapá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Franck Gilberto Oliveira. Inconstitucionalidade da lei estadual do Amapá que cria subsídio sob o nome de vencimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3258, 2 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21898. Acesso em: 16 abr. 2024.

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