Emília (nome fictício), 13 anos, sempre foi muito sorridente, espontânea, fazia amizades com facilidade. Atendendo ao apelo do seu grupo de amigas, resolveu colocar o seu perfil em uma das chamadas “redes sociais”. Estavam todas entusiasmadas com a oportunidade de trocarem fotos, informações, ideias, fazer mais amigos. Tudo ia muito bem e as solicitações de amizade cresciam em progressão geométrica. As meninas nem davam mais conta de ler tantas mensagens, vindas de gente de todo lugar. Um belo dia começou a circular na rede uma montagem de foto, em que o rosto de Emília aparecia colado em uma imagem de mulher nua. Outras fotos se seguiram à primeira, cada vez mais constrangedoras. Na escola foi o maior rebuliço, não se comentava outra coisa. Ninguém sabia quem era o autor ou autora da “brincadeira”. A situação ficou incontrolável e Emília, envergonhada e sem saber o que fazer, não queria voltar à escola. Sequer queria mais sair de casa.
O fato é verdadeiro e, infelizmente, cada vez mais comum. Os casos de bullying – nome em inglês para a prática de intimidação, humilhação e/ou agressão, antes restritos ao âmbito da escola, tomaram dimensão extremamente maior e mais agressiva por meio da rede internacional de computadores (internet). O nome da doença agora é cyberbullying. Ela ocorre quando sítios eletrônicos, blogs ou redes sociais da web, como o orkut, facebook e twitter, entre outros, são usados para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial. Desse modo, o bullying aliou-se a uma ferramenta – a internet, que o tornou mais forte e, consequentemente, muito mais danoso. Com isso se tornou possível transportar a intimidação para além da escola, sem deixar, no entanto, de ter imediatos reflexos no comportamento e no rendimento escolar.
A médica e psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva afirma que o cyberbullying, ou bullying virtual, ocorre quando o agressor ou autor se utiliza dos recursos tecnológicos e dos “mais modernos instrumentos da internet e de outros avanços tecnológicos na área de informação e da comunicação (fixa ou móvel) com o covarde intuito de constranger, humilhar e maltratar suas vítimas”. Segundo a autora, a principal diferença entre a prática do bullying e do cyberbullying é que, no caso do bullying as formas de maus-tratos eram diversas; no entanto, todas, sem exceção, ocorriam no mundo real. Dessa forma, quase sempre era possível às vítimas conhecer e especialmente reconhecer seus agressores. No caso do cyberbullying, a natureza vil de seus idealizadores e/ou executores ganha uma “blindagem” poderosa pela garantia de anonimato que eles adquirem[1].
Há ainda outro fator importante que diferencia o cyberbullying: o fato de o agressor não estar visível fisicamente para a vítima e, portanto, não estar presente na hora em que ela recebe a provocação, que ocorre por meio eletrônico, não só encoraja condutas mais ousadas, como também libera qualquer inibição ou constrangimento que pudesse haver na sua presença. Alexandre Atheniense pontua que, dessa forma, “o agressor não vê de imediato o mal que causou, ou seja, as consequências dos seus atos, o que minimiza quaisquer eventuais sentimentos de arrependimento, remorso ou empatia para com a vítima que pudesse vir a sentir em resultado dessa constatação. Essa realidade cria, assim, uma situação em que as pessoas podem fazer e dizer coisas na internet que seriam muito menos propensas a dizer ou fazer presencialmente”[2].
Segundo ainda Ana Beatriz Barbosa Silva, qualquer pessoa submetida ao cyberbullying sofre com níveis elevados de insegurança e ansiedade. Quando as vítimas são crianças ou adolescentes, as reações são ainda mais intensas, e as repercussões psicológicas e emocionais podem ser infinitamente mais sérias. Mais que isso, os ataques de bullying virtual podem se constituir em um fator desencadeante de diversas doenças mentais[3].
Ainda não se sabe quais podem ser as consequências dessa prática no futuro das crianças e dos adolescentes vítimas de bullying, em qualquer das suas formas, muito embora os especialistas afirmem que o cyberbullying, assim como o bullying, traz uma espécie de marca, de mágoa, que ficará para sempre no inconsciente daquele que o sofreu. Quando praticados na adolescência as consequências tendem a ser piores. Isso porque nessa fase o cérebro humano passa por profunda modificação, ocasionando as repentinas mudanças de humor, “os questionamentos sobre regras e limites, os sentimentos de insegurança e insatisfação constantes, as distorções da autoimagem, a necessidade de pertencer a algum grupo, a sede insaciável de novidades, a irresponsabilidade e a inconsequência” [4]. Os sofrimentos causados por danos à honra ou à imagem, nessa fase, costumam ser irreversíveis e de consequências muitas vezes funestas[5].
O sentimento de impunidade e o anonimato que encobrem a abominável prática do cyberbullying, no entanto, precisam ter um fim. Já passa o tempo de se fazer uma ampla campanha de conscientização, liderada pelos organismos governamentais e não governamentais de proteção da criança e do adolescente, sociedade civil e mídia, sobre as consequências desses atos, não apenas para quem os sofre, mas fundamentalmente para quem os pratica. É preciso que esses jovens agressores sejam alertados de que essa prática virtual constitui-se em crime, e o fato de serem menores de idade, supostamente anônimos, não os isenta de penas e responsabilidade.
Pelas leis penais brasileiras, se o cyberbullying for praticado por maiores de idade, a conduta poderá se configurar em crime contra a honra (calúnia, difamação ou injúria), de ação penal privada e sujeito a penas que vão de seis meses a dois anos de detenção. Se o ato configurar ameaça, o crime passa a ser de ação penal pública, condicionada à representação da vítima, com previsão de penas que vão de um a seis meses de detenção. Caso a conduta seja praticada por menores de 18 anos, caberá ao Ministério Público (com atribuição na Vara da Infância e da Juventude) pleitear ao juiz competente a apuração do ato infracional. Este, por sua vez, poderá aplicar as medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No Brasil, em vários Estados já existem delegacias especializadas em crimes praticados pela internet.
No entanto, mais do que punir rigorosamente essas condutas, elas devem ser primeiramente evitadas. A dor da vítima não se cura com a punição do agressor. Esse é um trabalho a ser feito pelo governo, escola, meios de comunicação de massa, pela comunidade e, antes de tudo, pela família. É fato que a sociedade dita pós-modernista tem, em geral, cultivado e propalado o culto ao individualismo, ao sectarismo, à busca do prazer pessoal e, por que não dizer, à aceitação da violência. O cyberbullying não deixa de ser apenas um dos reflexos dessa cultura hedonista, embasada na insensibilidade e ausência de responsabilidade e solidariedade coletivas.
Notas
[1] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying; mentes perigosas nas escolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 126.
[2] ATHENIENSE, Alexandre. Disponível em http://www.dnt.adv.br/noticias/cibercultura/cyberbullying-o-que-e-e-como-se-proteger-desse-grave-problema/. (Acesso em 20 de abril de 2012).
[3] Silva, 2010, p. 138.
[4] SILVA, 2010, p. 134.
[5] Na Inglaterra, uma jovem de 15 anos se suicidou após ser vítima de bullying cometido por meio de redes sociais. Ver: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/09/090921_jovemsuicidio_ba.shtml