5-CRIMES ANTECEDENTES E O PROBLEMA DO CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA
Como se verificou acima, a legislação brasileira de combate à lavagem de dinheiro, a Lei Federal n.º 9.613/98, apesar de editada já sob a terceira geração de legislações de combate a esse crime, adotou a fórmula da segunda geração, enumerando, taxativamente, o rol de crimes antecedentes ao crime de lavagem. E isso ocorre, como ensina CESAR ANTONIO DA SILVA[10], porque o crime de lavagem de dinheiro tem em sua base a existência de outro crime autônomo. Não existirá sem que se tenha realizado outra conduta delituosa anteriormente, até porque, a lavagem pressupõe a existência de dinheiro “sujo”, obviamente advindo de uma conduta delituosa, pois se assim não fosse tratar-se-ia de recursos monetários ganhos com atividades lícitas e, portanto, sem objeto de sustentação para a reprimenda do Direito Penal.
A Lei n.º 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de “lavagem”ou ocultação de bens, direitos e valores, enumera, no seu artigo 1.º, os crimes antecedentes que dão origem ao produto que servirá de objeto ao crime de lavagem, que são, pela ordem dos incisos: I- tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II- terrorismo e seu financiamento[11]; III- contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV- extorsão mediante seqüestro; V- contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI- contra o sistema financeiro nacional; VII- praticado por organização criminosa; VIII- praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal).[12]
Diz o texto legal (nos §§ 1.º e 2.º) que incorre ainda na mesma pena do citado artigo 1.º quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes, os converte em ativos lícitos; os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros; utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes dos crimes antecedentes referidos; e participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos na Lei n.º 9.613/98.
No entanto, muito se tem criticado a respeito do rol taxativo de crimes antecedentes ao crime de lavagem, uns dizendo que alguns crimes importantes ficaram de fora e outros afirmando que algumas condutas típicas não necessitariam estar previstas. Isso se dá, fundamentalmente, em razão do bem jurídico protegido pelo crime de lavagem de dinheiro que é a ordem socioeconômica[13] (segurança econômica e do sistema financeiro)[14], uma vez que toda a ação típica está voltada para a causação de uma situação de perigo ou lesão a bens jurídicos protegidos penalmente. O limite material da intervenção estatal, no direito de punir, só nos parece possível e necessária quando se tratar de proteger determinados bens jurídicos.
Uma das críticas lançadas é a de que crimes como estelionato[15] e a contravenção do chamado “jogo do bicho”, assim como o crime de sonegação fiscal (Lei n.º 8.137/90) ficaram de fora do rol taxativo do artigo 1.º da Lei n.º 9.613/98, muito embora movimentem elevadas somas de dinheiro ilícito, afetando negativamente a economia nacional e são responsáveis, no caso especial da sonegação fiscal, pela considerável diminuição das receitas públicas, debilitando o mercado econômico-financeiro e trazendo sérios prejuízos à sociedade, no que diz respeito à possibilidade de melhor prestação de serviços públicos. No caso do “jogo do bicho”, se tem afirmado que além de carrear grandes fortunas para o bolso dos contraventores, induz à corrupção de funcionários públicos e alguns políticos, notadamente no financiamento de campanhas políticas, como as manchetes dos jornais vêm estampando na história recente da República.
Também se afirma que, levando-se em conta que o bem jurídico tutelado é a ordem socioeconômica, alguns crimes previstos no rol do artigo 1.º da Lei n.º 9.613/98 (condescendência criminosa, abandono de função, resistência, desacato, dentre outros, previstos como crimes contra a Administração Pública e, em tese, antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro) não geram acréscimo patrimonial, sendo muito menos prejudiciais ao sistema econômico-financeiro do que o crime de sonegação fiscal, por exemplo.
Uma outra crítica lançada contra o rol taxativo de crimes trazidos pela Lei de Lavagem de Dinheiro diz respeito à inexistência de tipificação, na legislação brasileira, do crime de terrorismo, apesar de esta figura estar prevista no inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição da República, não tendo sido objeto de ocupação, no entanto, até o presente momento, pelo legislador penal, incidindo aí o princípio previsto também no já citado artigo 5.º, inciso XXXIX, o qual prevê que não há crime sem lei anterior que o defina (princípio da reserva legal). Citando a Lei n.º 7.170/83, a qual define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, MARCO ANTONIO DE BARROS[16] adverte que esta lei não tipifica o crime de terrorismo, mas, tão-somente, faz alusão a atos de terrorismo, sem, contudo, tipificá-los como crime, esvaziando, assim, por ora (até que o legislador se ocupe da tarefa de tipificar dito crime), o mandamento contido na Lei n.º 9.613/98.
No que concerne ao crime antecedente praticado por organização criminosa, deve-se registrar, utilizando-se do ensinamento de CESAR ANTONIO DA SILVA[17], que não existe uma legislação definindo o que seja organização criminosa. “Existe a Lei n.º 9.034, de 3.5.1995, que pretendeu definir a ‘ação de organização criminosa’ no Capítulo I, porém assim não o fez. Trata-se de mera alusão à organização criminosa sem, no entanto, trazer em seu contexto um tipo penal definidor e delimitador dessa ‘organização’.”.
Assim, para que se possa responsabilizar, penalmente, os integrantes de uma organização criminosa, se terá de saber, de antemão, a qual organização pertencem e quem a compõe, não sendo essa uma tarefa nada fácil. Parece-nos que para a definição de organização criminosa, de lege ferenda, aspectos econômicos e institucionais devem ser levados em consideração. É necessário que se identifiquem, inicialmente, quais são as características que um determinado grupo de indivíduos que pratica atos ilícitos possa ser considerado como “organização criminosa”. ADRIANO OLIVEIRA[18] aduz que dentre estas características devem ser observados o modus operandi dos atores na operacionalização dos atos criminosos, as estruturas de sustentação e ramificações do grupo, as divisões de funções no interior do grupo e o seu tempo de existência. Refere, também, que tais organizações devem ser analisadas, igualmente, por intermédio de suas dimensões de atuação, pois existem organizações que atuam apenas em nível local, sem conexão com outros grupos no âmbito nacional ou internacional, e outras que são nacionais, ou transnacionais, que criam uma cadeia de iteração nas esferas local, nacional e internacional.
O autor esclarece que o FBI (Federal Bureau of Investigations – EUA) define como organização criminosa qualquer grupo que tenha uma estrutura formalizada cujo objetivo seja a busca de lucros através de atividades legais. Tais grupos se utilizam da violência e da corrupção de agentes públicos. Já a Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil, ainda segundo o citado autor, enumera 10 características das organizações criminosas, a saber: planejamento empresarial, antijuridicidade, diversificação de área de atuação, estabilidade dos seus integrantes, cadeia de comando, pluralidade de agentes, compartimentação, códigos de honra, controle territorial e fins lucrativos.
A doutrina, tanto nacional como estrangeira, ainda considera como características destas organizações a corrupção do Judiciário e do aparelho político, presença da lei do silêncio e monopólio da violência, entre outras.
Com base em tais colocações, nos parece possível que o legislador brasileiro possa se ocupar de tão importante tarefa, até porque, por intermédio de tal definição legal poder-se-ia estender o leque de crimes antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, a fim de se incriminar o processo de “limpeza” do dinheiro “sujo” advindo de atividades ilegais praticadas por organizações criminosas especializadas no roubo de cargas, tráfico de órgãos e/ou de seres humanos, fraudes em licitações, apenas para citar algumas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessas linhas finais, gostaríamos de consignar que é pela grandiosidade que encerra que a incriminação das condutas que visam a ocultar e dissimular as consideráveis quantias de dinheiro obtidas por intermédio de atividades criminosas, é, hoje, um dos temas mais caros, atuais e, porque não dizer, problemáticos da ciência penal moderna, que requer mecanismos capazes e eficazes no combate e esta forma de criminalidade que ganha corpo em todos os cantos do planeta, representando uma lesão altamente danosa à ordem econômica e financeira das nações, sendo um fenômeno de caráter socioeconômico, gerando conseqüências negativas para o sistema financeiro do País, uma vez afeta a liberdade de concorrência, estimula o aparecimento de grupos dominantes, gerando monopólios, concorrência desleal, estimulando a corrupção em todas as escalas de poder, dando margem ao abuso do poder econômico por determinadas classes, sonegando impostos e toda a sorte de malefícios que têm o condão de debilitar a economia da nação, afetando sua manutenção segura e regular.
É de se reconhecer que a incriminação trazida pela Lei n.º 9.613/98 veio em boa hora, todavia é igualmente pertinente reconhecer que o ideal para a boa saúde do sistema econômico-financeiro do País seria aquele caminho adotado por nações que já possuem legislação da chamada terceira geração, em que todo e qualquer crime cujo objeto seja o assenhoramento de bens, direitos e valores é considerado como crime antecedente apto a tipificar a conduta de lavagem de dinheiro.
Entretanto, pode-se concluir que algumas condutas delituosas poderiam ter sido incluídas no rol dos delitos antecedentes, como o chamado “jogo do bicho”, a sonegação fiscal, o estelionato, entre outras, permitindo-se um combate mais eficaz ao crime de lavagem de dinheiro. Por outro lado, urge que se tipifique o crime de terrorismo, muito embora nossa nação não seja alvo de ataques desse jaez. Importante, igualmente, que o legislador penal se ocupe, o quanto antes, da definição de “organização criminosa”, a fim de que outros delitos, praticados dessa forma, possam ser alvos da legislação em comento.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
[1] GOMES INIESTA, Diego J., El delito de blanqueo de capitales en Derecho Español, Cedecs, Barcelona, 1996, p.21.
[2] FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo, El Delito de Blanqueo de Capitales, Colex, 1988, p.76.
[3] In El blanqueo de capitales procedente del tráfico de drogas. La recepción de la legislación internacional en el ordenamiento penal español, Actualidad penal, n.32, 11 de septiembre de 1994, p. 609.
[4] In Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 39-45.
[5] In Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos....pp.cit.
[6] Alguns doutrinadores preferem o termo ocultação para definir a segunda fase do processo de lavagem de dinheiro.
[7] CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos....p.48.
[8] Fase também chamada por alguns doutrinadores como de OCULTAÇÃO.
[9] CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos....p.60.
[10] SILVA, Cesar Antonio da. Lavagem de dinheiro: uma nova perspectiva penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.57.
[11] Nova redação dada a este inciso pela Lei n.º 10.701, de 9.7.2003.
[12] Inciso incluído pela Lei n.º 10.467, de 11.6.2002.
[13] Vide a respeito do tema a excelente digressão trazida por André Luís Callegari em seu Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos....pp.79-93, onde o autor discorre sobre a importância, no Estado Democrático de Direito, para fins de política criminal, da definição do bem jurídico protegido quando o legislador penal se dispõe a tutelar determinado bem, valendo como um axioma a afirmação de que é a tutela do bem jurídico que simultaneamente define a função do Direito Penal e marca os limites da legitimidade de sua intervenção.
[14] Posição contrária tem TIGRE MAIA, Rodolfo, in Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p.57, quando ensina que o bem jurídico protegido pela norma é a Administração da Justiça, uma vez que as condutas descritas no tipo penal atacam a Justiça como instituição e função, prejudicando-a em sua realização e diminuindo seu prestígio e confiança. Ainda, conforme o autor, as condutas incriminadas vulneram o interesse do Estado em identificar a origem dos bens e também os sujeitos ativos que os geram, o que afeta o regular funcionamento da Justiça.
[15] A doutrina tem citado como exemplo o caso de construtor estelionatário que vende apartamentos inexistentes, gerando grandes prejuízos e ocultando tais valores no sistema financeiro, causaria um abalo a este, assim como uma concorrência desleal no setor, pois se valeria de venda fictícia de imóveis a preços mais baixos que o mercado.
[16] In Lavagem de dinheiro: implicações penais, processuais e administrativas. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 15.
[17] In Lavagem de dinheiro: uma nova perspectiva penal...p.68.
[18] In Crime organizado: é possível definir? Revista Espaço Acadêmico – N.º 34 – Março/2004 – Mensal – ISSN 1519.6186, obtido através do site http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm, em 7.11.2006.