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Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido

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3. A SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS NAS LEIS Nº. 8.971/94 E 9.278/96.

Antes da regulamentação legal da união estável não era atribuído direito de herança aos companheiros, até então chamados de concubinos.

Segundo lição de Euclides de Oliveira:

Na ordem de vocação hereditária, conforme o art. 1.603 do Código Civil de 1916, aparecia apenas o cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam os colaterais, sem lugar, portanto, para chamamento de companheiro supérstite. (OLIVEIRA, 2005, p. 150)

Conforme entendimento consolidado na Súmula 380 do STF, a jurisprudência atribuía aos concubinos apenas o direito de partilha dos bens adquiridos por esforço comum, em sociedade de fato orientada pelo direito obrigacional. O direito de herança não era assegurado ao companheiro, que recebia apenas a participação no patrimônio em percentual variável, de acordo com sua efetiva contribuição.

A atribuição de herança aos companheiros só era possível através de disposição testamentária, vedada a outorga por homem casado à sua concubina, nos termos dos arts. 1.177 e 1.719, inciso III do Código Civil de 1916. (CAHALI; CARDOSO, 2008).

Em virtude do art. 226, §3º, da Carta Política de 1988, regulamentado pelas leis da união estável, a sucessão mortis causa entre companheiros foi, enfim, admitida, de forma análoga ao direito consagrado ao cônjuge sobrevivente pelo Código Civil de 1916, em seus arts. 1.603, III e 1.611, “com implícita alteração da ordem de vocação hereditária, uma vez que, existindo companheiro com direito à herança, afastava-se o chamamento dos colaterais sucessíveis”. (OLIVIERA, 2005, p. 151). 

Assim, nos termos do art. 2º, da Lei nº. 8.971/94, o companheiro participava da sucessão do falecido em condições muito semelhantes às do cônjuge:

1.                  enquanto não constituísse nova união, o convivente teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, se houvessem filhos deste ou comuns; ou ao usufruto da metade dos bens, se não houvessem filhos, embora sobrevivessem ascendentes; e

2.                  na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança.

Tais direitos não foram mencionados na Lei nº. 9.278/96, mas também não foram revogados expressa ou tacitamente. A nova lei da união estável limitou-se, em seu art. 7º, parágrafo único, a atribuir mais um direito sucessório ao companheiro supérstite, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, qual seja o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família.

Segundo Rainer Czajkowski (1999), para o reconhecimento do direito real de habitação não se exigia a coabitação, uma vez que esta não era elencada entre os deveres dos conviventes previstos no art. 2º, da Lei nº. 9.278/96.

Outrossim, o convivente supérstite poderia cumular os direitos de usufruto e de habitação, o que não acontecia com os cônjuges, que teriam direito a apenas um dos benefícios, dependendo do regime de bens adotado no casamento. E à semelhança do cônjuge, o companheiro não foi reconhecido como herdeiro necessário. (CARVALHO NETO, 2007).

Analisando a regulamentação legal da união estável, Euclides de Oliveira (2005, p.151-152) conclui “que houve um grande avanço em favor dos direitos do companheiro, por sua prática equiparação aos direitos do cônjuge no plano sucessório”. No entanto, o autor ressalta que não faltaram críticas ao posicionamento do legislador.

Como veremos, estes avanços foram ignorados pelo legislador quando da edição do Código Civil de 2002, que regulamentou a sucessão dos companheiros em seu art. 1.790, de forma, no mínimo, atécnica. 


4. A UNIÃO ESTÁVEL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002.

O Código Civil de 2002 não inovou ao conceituar a união estável, que foi disciplinada nos arts. 1.723 a 1.726. O legislador praticamente repetiu no art. 1.723 a definição inserta na Lei nº. 9.278/96: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família”.

Como se vê, não foi feita nenhuma referência às uniões homoafetivas, já que é exigida a diversidade de sexos, em conformidade com o disposto no art. 226, § 3º, da Carta de 1988.

Assim como a Lei nº. 9.278/96, o novo Código também dispensou a exigência de tempo mínimo de duração da convivência, requerendo, tão somente, que a união seja duradoura, o que deverá ser examinado no caso concreto.

Como destaca Euclides de Oliveira (2005, p. 153), uma inovação importante diz respeito aos impedimentos matrimoniais previstos no art. 1.521 do Código Civil, que, por força do § 1º, do art. 1.723, do mesmo diploma legal, se aplicam à união estável. Desta forma, “a convivência entre parentes em linha reta, colaterais até o terceiro grau, afins em linha reta e o envolvimento com pessoas casadas desfiguram a união estável, podendo enquadrar-se como simples concubinato (art. 1.727 do mesmo Código)”. Frise-se que o Código Civil excepcionou o inciso VI, do art. 1.521, reconhecendo como entidade familiar a união estável constituída por pessoa casada, mas separada judicialmente ou de fato.

O art. 1.726 do Código Civil trata da possibilidade de conversão da união estável em casamento, “mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”.

Dentre os deveres dos companheiros previstos no art. 1.724 do Código Civil, destaca-se o dever de assistência mútua, do qual decorre a obrigação de prestar alimentos, que será mensurada de acordo com a necessidade do reclamante e a capacidade financeira da pessoa obrigada, nos termos do art. 1.694 do Código Civil.

No âmbito patrimonial, a união estável assemelha-se ao casamento em muitos aspectos, pois sujeita-se, no que couber, ao regime da comunhão parcial de bens, conforme o disposto no art. 1.725, do Código Civil. Por conseguinte, os bens adquiridos onerosamente durante a convivência são de propriedade comum, exceto os adquiridos com o produto da venda de bens particulares. Além disso, as partes podem estipular a incomunicabilidade dos bens através de contato escrito.

Em caso de falecimento de um dos companheiros, o sobrevivente terá direito à meação, de acordo com o regime de bens, e à participação nos bens adquiridos onerosamente na constância da união, em concorrência com os descendentes, ascendentes e colaterais do falecido. O convivente supérstite apenas receberá a totalidade da herança na ausência de parentes sucessíveis.

Observe-se que o tratamento sucessório dos companheiros é bem diverso e, em muitos aspectos, inferior ao conferido ao cônjuge viúvo. Nesse sentido, vale anotar que ao cônjuge é assegurado o direito real de habitação sobre o imóvel residencial deixado pelo de cujus, direito não estendido ao companheiro, num manifesto retrocesso em face da previsão do art. 7º, parágrafo único da Lei nº. 9.278/96.

Entretanto, autores como Sílvio Venosa, Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Aldemiro Rezende Dantas Júnior e Eduardo de Oliveira Leite defendem a manutenção do direito real de habitação em favor do companheiro, argumentando que não houve revogação expressa da Lei nº. 9.278/96. Já Maria Helena Diniz entende que o dispositivo do art. 7º, parágrafo único, da referida Lei é norma especial, prevalecendo sobre as normas gerais insertas no Código de 2002.  (CARVALHO NETO, 2007).

De outra banda, Inacio de Carvalho Neto (2007) afirma a revogação tácita da Lei nº. 9.278/96, baseado no art. 2º, § 1º, da LICC, argumentando que o novo Código regulou por completo a sucessão do companheiro, sem conceder-lhe o direito real de habitação.

Sobre o tema, note-se que no julgamento do Recurso Especial nº. 175.862-ES, o Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar considerou que o art. 7º da Lei nº. 9.278/96 não foi revogado, tendo, portanto, o companheiro sobrevivente direito real de habitação sobre imóvel destinado à moradia da família. (ARAÚJO, 2005).

Nesse sentido, dispõe o Enunciado nº. 117, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002:

ENUNCIADO 117 – Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88.

Por outro lado, ao cônjuge foi atribuído status de herdeiro necessário, enquanto inexiste disposição semelhante em favor do companheiro, que poderá ser afastado da sucessão por testamento, sem necessidade de qualquer justificação, assim como ocorre com os colaterais.

Para muitos autores o companheiro não pode ser alçado à condição de herdeiro necessário em respeito à sistemática do Código, razão pela qual Maria Berenice Dias (apud HIRONAKA; PEREIRA, 2004, p. 440) assevera que a “inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como herdeiro necessário tem levado ao questionamento sobre a constitucionalidade da diferenciação, que não constava da legislação pretérita nem é desejada por ninguém. Trata-se de um retrocesso odioso”.

Verifica-se, portanto, que o regime sucessório do companheiro é flagrantemente discriminatório se comparado ao do cônjuge. Corroborando tal assertiva, Euclides de Oliveira (2005, p. 154) conclui que “nada justifica essa diversidade de tratamento legislativo quando todo o sistema jurídico à luz da Constituição recomenda proteção jurídica à união estável como forma alternativa de entidade familiar, ao lado do casamento. Foi apenas na sucessão hereditária que isso se deu”.

Zeno Veloso (2003, p. 236-237), comentando esse injustificável tratamento discriminatório, sustenta que “a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais”.

Também nesse sentido é a lição de Rolf Madaleno (2008, p. 141), enfático ao dizer que “o art. 1.790 é ofensivo ao texto constitucional, porque agride a igualdade de proteção que a lei deve deferir a todas as espécies de família, uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais”. O autor salienta que a referida inconstitucionalidade também está presente nos casos em que a lei beneficia o companheiro em detrimento do cônjuge.

Outros efeitos jurídicos da união estável subsistem em leis especiais e em dispositivos avulsos do Código Civil, especialmente no que respeita à afinidade que se estabelece entre o companheiro e os parentes do outro, no direito ao bem de família e na possibilidade de adoção por companheiros.

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4.1. Sucessão legítima pelos companheiros.

A sucessão do companheiro sofreu profundas mudanças no novo Código, muitas negativas, verdadeiros retrocessos diante do tratamento dispensado à matéria na legislação pretérita, que havia equalizado os direitos conferidos aos cônjuges e aos companheiros na seara sucessória.

Num primeiro momento, insta salientar que o Anteprojeto de Código Civil datado de 1972, bem como o Projeto apresentado para discussão em 1975 e aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, por óbvio, não mencionavam a união estável, que veio a ser definida como entidade familiar somente em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã. 

Foi o Senador Nélson Carneiro, considerado um dos grandes nomes da luta pela modernização das relações familiares, quem apresentou emenda no sentido de garantir direitos sucessórios aos companheiros.

Segundo Euclides de Oliveira (2005, p. 158), isso pode explicar a ”má alocação do tema no Código Civil e seu tratamento diferenciado em relação aos dispositivos que cuidam do direito sucessório do cônjuge”.

O art. 1.790, que prevê a sucessão dos companheiros, foi inserido no capítulo que versa sobre as disposições gerais da sucessão, fora, portanto, do capítulo que disciplina a ordem de vocação hereditária, um equívoco muito criticado por autores renomados, dentre os quais estão Rolf Madaleno (2004, p. 113) e Zeno Veloso (2006, p. 1.484).

O legislador poderia ter evitado esta impropriedade, que consubstancia uma discriminação injustificável frente à nova axiologia constitucional, mencionando o companheiro, juntamente com o cônjuge, nos arts. 1.829 a 1.832, 1.836 a 1.839 do Código Civil.

Além de ser um evidente erro de técnica legislativa, a inserção do art. 1.790 entre as disposições gerais do direito das sucessões “também significa um manifesto desleixo no trato do direito sucessório de quem participa de uma entidade familiar, ainda que sem o pálio do casamento, e nessa qualidade estaria a merecer adequada proteção jurídica assegurada em plano constitucional, sem distinções quanto ao modo de formação da família assim originada”. (OLIVEIRA, 2005, p. 159).

Feitas tais observações, verifica-se que, uma vez caracterizada a união estável, o chamamento dos conviventes para suceder ocorrerá nos seguintes termos:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Fora as críticas feitas à terminologia utilizada no supracitado artigo, para grande parte da doutrina e jurisprudência, as suas disposições são retrógradas e discriminatórias, dando ensejo a lamentáveis injustiças. (SANTOS, L., 2003)

O artigo em comento, já no caput, revela seu cunho discriminatório, ao restringir a participação dos companheiros aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, vedando o acesso aos demais bens, ainda que faltem herdeiros sucessíveis.

Na ausência de contrato escrito sobre o regime de bens, prevalece o regime da comunhão parcial (art. 1.725, CC). Assim, vejamos o absurdo da norma inserta no art. 1.790 do Código Civil:

1.quanto aos bens adquiridos onerosamente no curso da união o companheiro terá direito à meação, bem como à sucessão em concorrência com os descendentes, ascendentes e colaterais do falecido. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).  

Ao comentar essa possibilidade, Euclides de Oliveira (2005) critica a concessão ao convivente do direito à meação, em conjunto com o direito à sucessão sobre os bens adquiridos onerosamente durante a união livre, lembrando que em situação semelhante, o cônjuge teria apenas a meação, sem nenhuma participação na herança, salvo o direito de habitação.

Para Inacio de Carvalho Neto (2007, p. 185-186), apesar da relativa confusão entre meação e sucessão, “prevalece ainda a distinção, já que o art. 1.725 é claro em falar do regime de bens na união estável”. O autor não vê incompatibilidade entre as duas disposições, considerando que “nada impede que o companheiro tenha direito à meação e à herança. Mas esta será sempre [na sucessão legítima] sobre os bens adquiridos na constância da união a título oneroso”.

2. “não tendo o de cujus deixado nenhum outro herdeiro sucessível, o companheiro recolherá todos os bens adquiridos na constância da união a título oneroso, e os demais bens serão considerados vacantes” (CARVALHO NETO, 2007, p. 185), passando ao domínio do Poder Público, conforme disposto nos arts. 1.790 (caput e inciso IV) e 1.819 a 1.823, todos do Código Civil.

3. inexistindo parentes sucessíveis e bens adquiridos onerosamente ao longo da convivência, o companheiro não terá direito à meação, nem à sucessão sobre os bens particulares do falecido, que serão declarados vacantes e outorgados ao Poder Público, conforme disposto nos arts. 1.790 (caput e inciso IV) e 1.819 a 1.823, todos do Código Civil.

Analisando estas hipóteses, Luiz Felipe Brasil Santos (2003) fala em antinomia entre o caput e o inciso IV do art. 1.790. Para o autor seria necessária uma “interpretação construtiva” para entender que, no caso do inciso IV, não há limitação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união e que a expressão herança, utilizada nos incisos III e IV do prefalado artigo, deve ser interpretada em seu sentido próprio, indo além dos bens descritos no caput.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2002), além de criticarem a falta de técnica legislativa, sugerem uma interpretação do art. 1.790 que favoreça os interesses do companheiro, em busca do que teria sido a real intenção do legislador.

Os autores lembram que, segundo o art. 1.844 do Código Civil, inexistindo cônjuge, companheiro e parentes sucessíveis, ou tendo eles renunciado à herança, esta será devolvida ao Poder Público.

Salientam que quando o convivente não concorre com parentes sucessíveis, a própria lei se apressa em dizer que o mesmo terá direito à totalidade da herança (art. 1.790, inciso IV), fugindo ao comando do caput, ainda que de forma atécnica. 

Ao final, afirmam que, por força do art. 1.819 a abertura da herança jacente apenas se dá quando não há herdeiro legítimo. Com isso conferem status de herdeiro legítimo ao companheiro, ainda que não haja previsão nesse sentido no art. 1.829.

Apesar da justiça do critério interpretativo empregado pelos ilustres autores, a melhor doutrina recomenda uma exegese sistemática dos incisos, observados os mandamentos do caput. Nas palavras de Luís Paulo Cotrim Guimarães (2003, p. 53):

(...) o art. 1.790 do NCC, ao explicitar as regras sucessórias daqueles que vivem em união estável, vinculou os quatro incisos, sistematicamente, ao conteúdo de seu comando central, o caput, que restringe, assim, a entrega do monte hereditário aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência.

Inacio de Carvalho Neto (2007, p. 191-192) conclui que, neste caso, “a herança será parcialmente vacante se, mesmo havendo companheiro, não tiver o de cujus deixado outros herdeiros, deixando, contudo, bens anteriores à união ou adquiridos a título gratuito. Não socorre a redação do art. 1.844, que deve ser interpretado também em consonância com o caput do art. 1.790”.

As críticas da doutrina são veementes, a ponto de Luís Paulo Cotrim Guimarães (2003, p. 53) e Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2004, p. 539) afirmarem a inconstitucionalidade do dispositivo por ofender ao princípio constitucional da isonomia e promover o enriquecimento sem causa do Estado.

Em que pese a divergência doutrinária acerca do tema, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assim decidiu:

EMENTA:  União Estável. Direitos sucessórios da companheira. Não possuindo o companheiro falecido descendentes e nem ascendentes, a companheira tem direito à integralidade da herança, independentemente de os bens inventariados terem sido adquiridos antes ou depois da união estável. Inteligência do art. 2º da Lei 8.971-94, aplicável à espécie. Negado provimento ao apelo. (TJRGS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº. 70016506693, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 08/11/2006, apud ISMAEL, 2008)

É preciso esclarecer, também, que a celebração de um contrato escrito entre os conviventes para a alteração do regime patrimonial da convivência não afeta a regra sucessória prevista no art. 1.790 do Código Civil. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

Feitas estas observações, passaremos à análise das normas relativas à concorrência sucessória do companheiro com os descendentes e ascendentes do falecido, relativamente aos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, sendo que a concorrência com os parentes colaterais será objeto de capítulo específico.

Nos termos do inciso I do art. 1.790, concorrendo com descendentes comuns, o companheiro terá direito a uma quota equivalente à de cada um daqueles, em oposição ao tratamento conferido ao cônjuge, cuja concorrência com descendentes diferencia-se de acordo com o regime de bens (art. 1.829, I) e cuja quota parte não pode ser inferior a ¼ (art. 1.832).

Já o inciso II, do mesmo artigo, dispõe que, se concorrer com descendentes exclusivos do autor da herança, caberá ao companheiro a metade do que couber a cada um daqueles.

Como se vê, os referidos incisos I e II reproduzem a equivocada distinção entre descendentes exclusivos do autor da herança e descendentes comuns, prevista no art. 1.832 do Código, relativo à sucessão do cônjuge. Não existe razão para diferenciação de quotas da herança pela origem dos filhos concorrentes na sucessão. (OLIVEIRA, 2005).

Além disso, “a diversidade de critérios de atribuição da herança conforme sejam os filhos descendentes comuns ou exclusivos do autor da herança, constitui fator de complicação no momento da partilha. (...) quando houver filhos de híbrida origem”. (OLIVEIRA, 2005, p. 166).

Neste caso, surge a problemática do cálculo da quota devida ao convivente. Inexistindo critério legal aplicável, Giselda Hironaka (apud OLIVEIRA, 2005, p. 167-169) apresenta as seguintes possibilidades para a partilha da herança:

1.                  identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil, conferindo ao companheiro quota igual à atribuída àqueles;

2.                  identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil, restringindo a quota do companheiro à metade do que couber aos descendentes;

3.                  composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente sobrevivente;

4.                  composição dos incisos I e II pela subdivisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

Os Professores Gabriele de Tusa e Fernando Curi Peres aperfeiçoaram o cálculo proporcional, considerando o número de filhos de origem diversa e propuseram a adoção de uma fórmula matemática, baseada na leitura conjunta dos incisos I e II do artigo em análise.

Francisco José Cahali e Fabiane Domingues Cardoso (2008, p. 138-139) citam a referida fórmula nos seguintes termos: 

Onde:

X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.

C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.

H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.

F = o número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

Para facilitar a intelecção desta fórmula vejamos a sua aplicação numa situação hipotética (apud CAHALI; CARDOSO, 2008, p. 139):

H = R$ 100.000,00.

F = oito filhos comuns.

S = dois filhos exclusivos.

Cada filho receberá:

X =            2 (8 + 2)          . R$ 100.000,00

        2 (8 + 2)2 + 2 (8 + 2)

X =   20  . R$ 100.000,00

       218

X = R$ 9.174,31

O companheiro sobrevivente receberá:

C =     2 (8 + 2)   . R$ 9.174,31

           2 (8 + 2)

C =  18  . R$ 9.171,31

        20

C = R$ 8.256,88

Como se vê, cada filho herdará R$ 9.174,31 (nove mil, cento e setenta e quatro reais e trinta e um centavos), enquanto o companheiro sobrevivente receberá R$ 8.256,88 (oito mil, duzentos e cinquenta e seis reais e oitenta e oito centavos).

Após refletir sobre tamanha diversidade de posicionamentos, o mestre Euclides de Oliveira (2005, p. 171) conclui “que a interpretação mais consentânea e que poderá vingar no tumulto interpretativo da disposição em comento será a de atribuir ao companheiro quota igual à dos descendentes apenas quando seja ascendente de todos habilitados na herança. Na situação inversa, subsistindo filhos de outra origem, ainda que concorrendo com filhos em comum entre o autor da herança e o companheiro, a este tocaria somente metade de cada quota hereditária”.

Em sentido contrário, defendendo a prevalência do inciso I do art. 1.790, Aldemiro Rezende Dantas Júnior (apud OLIVEIRA, 2005, p. 171-172) pondera que, havendo concorrência sucessória do companheiro com descendentes comuns e com exclusivos do falecido, “o companheiro deverá receber quota igual à que será atribuída a cada um dos descendentes”.

É certo que tal polêmica poderia ter sido evitada pelo legislador, bastando para isso elidir esta equivocada distinção de critérios, limitando-se a deferir ao convivente determinada quota em concurso com os descendentes, à semelhança do que seja devido ao cônjuge, impedindo litígios quanto a atribuição de bens em concurso com os descendentes, qualquer que seja sua origem.

Ainda com relação ao regime de concorrência sucessória, passemos à análise do disposto no inciso III do art. 1.790 do Código Civil. O referido inciso determina que o companheiro receberá um terço da herança quando concorrer com outros parentes sucessíveis, sendo que estes compreendem os ascendentes e os colaterais.

Este inciso consubstancia “mais uma injustificável discriminação do companheiro em relação ao cônjuge, e, mais ainda, uma injustificável redução no direito hereditário do companheiro”. (CARVALHO NETO, 2007, p. 190).

Conforme esclarece Euclides de Oliveira (2005, p. 172):

Havendo pai e mãe sobrevivos ao autor da herança, o concurso do companheiro é igual ao direito que teria o cônjuge, ou seja, um terço da herança para cada um dos três herdeiros concorrentes. Mas sendo pré-morto um dos ascendentes, ou sobrevivendo apenas avós do autor da herança, o companheiro continua tendo apenas um terço, enquanto, se fosse casado, perceberia metade dos bens (art. 1.837 do Código Civil).

Como a concorrência sucessória do companheiro limita-se aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, se o de cujus não deixou bens desta natureza, mas tão-somente patrimônio particular, o companheiro nada receberá, uma vez que não terá direito à meação e tampouco à participação na herança.

Outra impropriedade da sucessão do companheiro no Código Civil decorre do disposto no art. 1.830, que autorizaria a concorrência sucessória entre o companheiro e o cônjuge sobrevivente, desde que este comprove estar separado de fato há menos de dois anos, ou, em caso de separação fática superior ao referido prazo, demonstre que a convivência se tornou impossível por culpa exclusiva do de cujus.

É grande a polêmica a esse respeito, daí por que invocamos a lição precisa dos mestres José Francisco Cahali e Giselda Hironaka (2003, p. 236):

Existe um conflito entre as normas, na medida em que duas pessoas, pela análise fria dos textos, seriam titulares da mesma herança. Para a convivência das regras, caracterizada a união estável, há que se prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge, integrante formal de matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil. Mas, à evidência, não se privará o cônjuge de eventual meação sobre o patrimônio adquirido na constância do casamento, bens estes a cuja comunhão o companheiro não terá direito, pois adquiridos anteriormente à união estável.

Além das inúmeras impropriedades, equívocos e retrocessos já apontados, causa ainda mais espanto o fato da nova legislação ter instituído a concorrência sucessória entre o convivente supérstite e os parentes colaterais do falecido, conferindo a estes privilégio há muito extinto, em prejuízo daquele que contribuiu na construção do patrimônio do autor da herança.

Razão pela qual, no próximo capítulo, dedicaremos especial atenção à análise da concorrência sucessória do companheiro sobrevivente com os parentes colaterais até o quarto grau.

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Sobre a autora
Joyce Keli do Nascimento Silva

Advogada atuante em causas cíveis e de família, Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Penais, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Joyce Keli Nascimento. Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3299, 13 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22210. Acesso em: 19 nov. 2024.

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