6- A denúncia no Direito Interno brasileiro
A questão da denúncia de Tratados Internacionais no direito brasileiro é cerne de imensa discussão.
A ausência de normas constitucionais sobre o instituto, a inexistência de leis procedimentais e as divergentes posições doutrinárias, causam situações de insegurança jurídica, violações de preceitos constitucionais as quais atribuíram ao Poder Legislativo as funções de fiscalizar e regular os atos do Poder Executivo, assim como o desprezo pelo princípio do Ato Contrário.
Iniciando pela análise do artigo 49, I e 84,VIII, vejamos:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;
A atribuição remetida ao Congresso Nacional para resolver e fiscalizar o Poder Executivo sobre tratados, acordos ou atos internacionais, reflete a essência da Democracia. A necessidade de sua participação é uma forma de manifestação da vontade popular. É a exteriorização do exercício do Poder pelo seu titular, qual seja, o povo. Nesse diapasão entendemos porque o Tratado Internacional, após a assinatura é submetido a apreciação do Poder Legislativo para referendo parlamentar e somente após a expedição do Decreto Legislativo o Chefe do Poder Executivo está autorizado a ratificá-lo.
A celeuma jurídica consoante a denúncia, iniciou-se justamente com a ocorrência de casos acontecidos no Brasil onde o Presidente da República denunciou dois Tratados Internacionais sem a participação do Congresso Nacional.
A denúncia ocorreu no Pacto da Sociedade das Nações Unidas e na Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho. No primeiro, Clóvis Beviláqua foi chamado para emitir parecer. O jurista pronunciou-se a favor da denuncia sem a participação do Congresso Nacional por entender que sua participação só se faz necessária na ratificação dos Tratados. Vejamos:
Se há no tratado uma cláusula, prevendo e regulando a renúncia quando o Congresso aprova o tratado, aprova o modo de ser o mesmo denunciado; portanto, pondo em prática essa cláusula, o Poder Executivo apenas exerce um direito que se acha declarado no texto aprovado pelo Congresso. O ato da denúncia é meramente administrativo. A denúncia do tratado é o modo de executá-lo, portanto, numa de suas cláusulas, se acha consignado o direito de o dar por extinto. (...) Se prevalecesse o princípio da necessidade de deliberação previa do Congresso para ser declarada a retirada do Brasil da Sociedade das Nações, logicamente, deveria ser exigida a mesma formalidade para o cumprimento das outras cláusulas do Pacto,e então seria o Congresso o executor do tratado e não o Poder a quem a constituição confia essa função.2
Pontes Miranda, negando a tese de Clóvis Beviláqua preceitua que:
aprovar tratado, convenção ou acordo, permitindo que o Poder Executivo o denuncie, sem consulta, nem aprovação (do Parlamento), é subversivo dos princípios constitucionais”, de forma que o Presidente da República, do mesmo modo que faz na ratificação, deve “apresentar projeto de denúncia, ou denunciar o tratado, convenção ou acordo ad referendum do Poder Legislativo.3
No mesmo sentindo, Valério de Oliveira Mazzuoli, diz:
o que não nos afigura razoável é o Presidente da República denunciar, sozinho, tratados internacionais para cuja ratificação necessitou de autorização do Congresso Nacional. Perceba-se que, no caso da denúncia por ato do Parlamento (por meio de lei ordinária) o Presidente da República participa da formação da vontade da Nação, sancionando ou vetando o projeto de lei em causa; o Congresso Nacional, em caso oposto (denúncia do Tratado por ato exclusivo do Presidente), pela tese defendida por Resek, permanece em absoluto silêncio, sequer tendo ciência da vontade presidencial de denunciar o tratado, aí estando o nosso ponto de discordância com a tese exposta. (MAZZUOLI P.284)
O segundo caso que foi submetido a denúncia unilateral, refere-se a ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e a Central Única dos Trabalhadores almejando a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 2.100/96 que tornou pública a denúncia da Convenção 158 da OIT.
Na petição inicial foi arguida a inconstitucionalidade da denúncia de Tratados Internacionais sem a participação do Congresso Nacional fundamentado na violação do artigo 49, I, da Constituição da República, o qual, segundo alegação dos autores remetia ao governo brasileiro a obrigação de submeter ao Congresso Nacional qualquer denúncia de tratado internacional.
A interpretação do dispositivo constitucional considera a existência do princípio chamado “Ato Contrário”. Tal princípio defende a ideia de que se a ratificação do Tratado Internacional dependeu de prévia manifestação do Congresso Nacional através da expedição de Decreto Legislativo, não obstante, para a denúncia, ou seja, para a retirada do Tratado do ordenamento brasileiro, o Congresso Nacional deve autorizar o Poder Executivo denunciar o Tratado. Em outros termos, se a vigência do Tratado no território brasileiro dependeu de Decreto Legislativo, a retirada necessariamente requer a participação do Congresso Nacional. Apesar da Constituição não ter nenhum preceito que trate do instituto da denúncia de Tratados Internacionais, essa é uma interpretação lógica obtida após a análise dos artigos 49, I e art.84,VIII da Constituição conjuntamente com as funções históricas atribuídas ao Poder Legislativo.
Partindo do conceito e dos fundamentos da democracia, o Congresso Nacional deve analisar se a denúncia de determinado tratado é vantajosa ou não para a Nação brasileira. Não cabe o ato ser exercido unicamente pelo Presidente da República. Vivemos em um país onde o regime de governo é a democracia e seus valores devem ser preservados. O Congresso Nacional tem como encargo a elaboração de leis que assegurem o funcionamento do sistema jurídico e consequentemente a pacificação social. Contudo, sua participação no instituto da denúncia não é uma faculdade, mas sim um dever, que, ao ser violado fere diretamente a Constituição da República.
O mecanismo Checks and balances criado por Montesquie, o qual gerou a teoria da tripartição dos poderes, é a base fundamental para justificar a participação do Congresso Nacional na denúncia de Tratados Internacionais. Para que um governo seja moderado, é essencial que o poder não seja monopolizado por um governo ou minoria. Contudo, eis a necessidade do controle de um Poder sobre o outro.
Segundo Pedro Lenza, o Congresso Nacional além de exercer suas funções típicas, quais sejam fiscalizar e legislar, ainda exerce duas funções atípicas: administrar e julgar. Dentro dessas prerrogativas, encontra-se o Controle Parlamentar que se constitui pela fiscalização do Poder Legislativo sobre os atos do Poder Executivo.
A Constituição Federal em seu art.49, X, expõe nitidamente sobre o Controle Parlamentar:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
X – fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta;
Destarte, é inconstitucional a alegação que defende a legalidade da denúncia unilateral de Tratado Internacional pelo Chefe do Poder Executivo sem a participação do Congresso Nacional por violar o artigo 49, X da Constituição, que atribui ao Congresso Nacional o dever de fiscalizar os atos do Poder Executivo, além de resolver sobre tratados, acordos e atos internacionais que tragam encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Ainda, interpretando o dispositivo constitucional, é lógica a aplicação do princípio do “Ato Contrário” no sentido de que, se a participação do Congresso Nacional é obrigatória para a ratificação de tratados internacionais, a sua desconstituição também almeja a participação do Congresso Nacional.
A denúncia de Tratado traz reflexos legislativos, jurídicos e sociais. A participação do Congresso Nacional é um meio pelo qual a sociedade exerce a soberania expondo seus interesses. Sua inobservância fere a democracia, viola preceitos constitucionais e despreza o princípio do “Ato Contrário”.
7. Tratado Automotivo entre Brasil e México
Conforme exposto anteriormente, no Brasil, tivemos dois tratados internacionais que foram denunciados unilateralmente pelo Chefe do Poder Executivo sem a participação do Congresso Nacional: o Pacto da Sociedade das Nações Unidas e a Convenção 158 da OIT.
Atualmente, estivemos próximos de vivenciar mais um ato de desobediência a Constituição Federal. Em fevereiro de 2012, a Presidenta Dilma Russeff ameaçou denunciar unilateralmente o Tratado Internacional celebrado com o México cujo objeto era o livre comércio de produtos automotivos.
Segundo alegações de empresários brasileiros o Tratado era desvantajoso para o setor automobilístico. O Brasil propôs uma revisão do Tratado, que inicialmente foi negado pelo México. Consequentemente o Poder Executivo ameaçou denunciar o tratado caso não houvesse acordo. Logo, o México concordou com as modificações almejadas pelo Brasil.
O escopo da revisão do acordo era limitar a venda de veículos dentro do livre comércio com direito à isenção de Imposto de Importação e elevar o índice de conteúdo regional.
Após a revisão, o Ministro Fernando Pimentel manifestou-se positivo com relação ao Tratado. Alegou que “é positivo para os dois lados”. “O México preserva a capacidade de exportação para o Brasil demonstrada ao longo desse tempo. Nós, brasileiros, limitamos a entrada de veículos daquele país para que ela não constitua um prejuízo muito grande à nossa indústria automobilística”, assinalou. Contudo, mencionou que desde a assinatura do Tratado, o mercado mundial sofreu uma alteração considerável, o que fez jus a revisão do tratado.
Tendo o México cedido a pressão exercida pelo Brasil para que fizesse a revisão do Tratado, o Brasil desistiu da denuncia unilateral. Apesar da solução ter sido benéfica para os Estados – partes, caso isso não tivesse ocorrido, o Tratado automotivo seria mais um objeto de discussão quanto a legalidade ou não da denúncia unilateral.
8. Considerações Finais
A ausência de normas consoante à denúncia unilateral de Tratados Internacionais do sistema brasileiro carece de medidas suficientemente capazes de dirimir a celeuma jurídica instaurada no instituto.
Devido a crescente intensidade de relações entre os países, a utilização de tratados para regerem seus interesses está cada vez mais crescente e, consequentemente, também cresce a possibilidade da utilização da denúncia como forma de retirar-se do tratado quando não há mais interesses para o Estado mantê-lo.
Destarte, é preciso que o Poder Legislativo crie uma Emenda Constitucional estabelecendo a necessidade de participação do Congresso Nacional na denúncia unilateral, além da criação de uma lei ordinária que regulamente o procedimento a ser utilizado pelo Poder Executivo ao denunciar um Tratado Internacional.
Para o correto desempenho do sistema de freios e contrapesos, é primordial que haja uma lei definindo claramente a função de cada um dos Poderes, impedindo interpretações contrárias aos preceitos constitucionais e principalmente o excesso de funções concentradas em um só Poder.
9. Bibiografia
1- ARAUJO, Luiz Ivano de Amorim. Curso de Direito Internacional Público – Revista e atualizada de acordo com a constituição de 1988. 9ª ed. Editora Forense:1997.
2- BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010.
3- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativos do STF, nº549. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo549.htm
4- CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE DIREITO DOS TRATADOS. In: SILVA, José. Vade Mecum. São Paulo: RT.2008.
5- CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Disponível em http://corteinternacional.wordpress.com/estatuto-da-corte-internacional-de-justica/. Acessado em 20 de junho de 2012.
6- MATTOS, Adherbal Meira. Direito Internacional Público. 2ª ed. Editora Renovar:1996.
7- MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3ª ed, Editora Revista dos Tribunais:2008.
8- MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Poder Legislativo e os Tratados Internacionais: o treaty-making Power na Constituição brasileira de 1988. In: Agenda Legislativa para o Desenvolvimento Nacional. 2011. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/19784
9- PONTES MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários a Constituição de 1967 com a emenda nº1 de 1969. 3ªed. Tomo 3. Editora Forense:1987.
10- REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar. 9ª ed. Editora Saraiva: 2002.
11- REZEK. José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
1 “Há quem considere imunes a denúncia, por sua própria natureza, os tratados “normativos” (também chamados de reais ou dispositivos) de elevado valor moral e social. Citam-se a Convenções de Genebra sobre o direito humanitário aplicável aos conflitos armados, ou o Pacto Briand-Kellog de renúncia a guerra como instrumento de política nacional. Se na prática, entretanto, semelhantes acordos coletivos constituem raro objeto de denuncia, a provável razão não está no entendimento de que legalmente imunes a rejeição unilateral, mas no receio do desgaste político que aquele gesto, em todo caso, importaria. Também são indenunciáveis os tratados de vigência estática, ou seja, de situação jurídica permanente (e.g. cessão territorial onerosa, ou definição fronteiriça). Cit. REZEK, 2008, p.108.
2 Clóvis Beviláqua. Denúncia de tratado e saída do Brasil da Sociedade das Nações (parecer do dia 05 de julho de 1926), in Parecer dos consultores jurídicos do Itamaraty, vol.II (1913-1934).
3 Pontes Miranda. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº1 de 1969, Tomo III, 2ª Ed. Cit., p.109.