V
E o marxismo-estrutural(9) aplicado ao direito, qual sua viabilidade. Como surge?
É justamente a reação, histórica(devo ressaltar: não linear), às formações discursivas que fundamentam os enunciados mais-valia, propriedade privada e liberada (formal) de contratação, liberdade e igualdade e que, como evidente, escondem uma dominação estabelecida, em última instância, pelo modo de produção capitalista.
Antes de adentrarmos na concepção marxista do direito e da moral, temos de lembrar a concepção marxista de infra-estrutura e superestrutura(concepção esta, vale ressaltar, que ainda está em construção). A infra-estrutura para Marx é a base econômica é o alicerce de toda a atividade social de produção, ou seja, forças produtivas + relações de produção, e influencia a superestrutura que é: o Estado, o Direito, a moral, a religião, filosofia, arte, linguagem e todas as ideologias. Esta infra-estrutura é "determinante em última instância"(10) da superestrutura. Esta superestrutura é toda ela ideológica e tem por função dar sustentabilidade à infra-estrutura posta. Direito e moral são, deste modo, ideologias(11), construções que encerram um juízo de valor que reproduzem e são reproduzidas pela e na infra-estrutura econômica e que se intercomunicam.
Trabalho aqui especificamente com três aspectos da superestrutura, advertindo já que todos implicam aspectos infra-estruturais, bem como outros aspectos superestruturais. Estes três aspectos que proponho para uma teoria do direito e da moral são os seguintes: o conceito de direito; o conceito de moral; e o conceito de homem(tratado, aqui, em seu aspecto de sujeito de direito).
Nesta perspectiva, direito e moral fazem parte de uma estrutura que dá suporte a todas as relações ideológicas entre os sujeitos tendo por objeto o comportamento de um sujeito. Este sujeito mesmo já é ideológico, já é uma construção que retroalimenta as outras instâncias superestruturais da moral e do direito. Assim observa Pashukanis que o homem "enquanto sujeito moral, ou seja, enquanto pessoa igual às outras pessoas, nada mais é do que a condição prévia da troca com base na lie do valor. O homem, enquanto sujeito jurídico, ou seja, enquanto proprietário, representa também a mesma condição. Estas duas determinações estão, finalmente estritamente ligadas a uma terceira na qual o homem figura como sujeito econômico."(12), ou seja, "(...) O sujeito egoísta, o sujeito jurídico e o sujeito moral são as três máscaras fundamentais utilizadas pelo homem da sociedade de produção mercantil."(13)
Estes três sujeitos: sujeito moral, sujeito jurídico e sujeito econômico, como bem observa Pashukanis, não são contraditórios, não se excluem, na ordem burguesa. Ao contrário, são condição fundamental deste modo de produção. Assim, o sujeito econômico egoísta e capaz de contrair direitos e obrigações (sujeito jurídico) que não devem extrapolar um limite imposto pelo costume (moral – sujeito moral). Explica o referido autor que isso só é possível pois a ordem capitalista considera o homem e seu trabalho como mercadorias, isto é, são submetidos à ordem do valor. O homem estaria, assim, alienado em sua essência, coisificado. Eu prefiro, entretanto, identificar esses três sujeitos (sujeito moral, sujeito jurídico e sujeito econômico) como uma ideologia importantíssima ao racionalismo burguês: a ideologia do homem, o Humanismo. O Humanismo racionalista, seria, deste ponto de vista, a ideologia que coordenam que dá a tônica às outras duas instâncias superestruturais; o direito e a moral.
A existência e a distinção entre direito e moral em compartimentos estanques (a existência do sujeito jurídico e do sujeito moral) estão intimamente ligadas ao racionalismo liberal humanista, que submete as formas jurídicas e morais à categoria da essência do homem, à Liberdade e à Razão. Assim, segundo o racionalismo liberal, o homem teria em sua própria essência:
I – Liberdade: o homem está voltado à liberdade o seu ser mesmo (Kant), a liberdade é ínsita à natureza humana. O próprio Marx, em sua juventude(14) foi influenciado por este idealismo kantiano ao afirmar, em seus escritos da Gazeta Renana: "a liberdade constitui de tal modo a essência do homem que até mesmo os seus adversários a realizam ao combater a realidade dela... a liberdade, pois, sempre existiu, ora como privilégio particular (feudalismo), ora como direito geral (Estado – burguês). O Estado burguês, assim, realizaria, de forma racional, a liberdade universal, através do direito (e do sujeito jurídico).
II – Razão: o homem realiza sua essência libertária no Estado de direito, Estado das leis da razão. Assim, ao obedecer as leis do Estado o homem não estaria fazendo mais do que obedecer sua razão interior (Kant).
O sujeito jurídico, o sujeito moral (sujeito – liberdade) e o sujeito econômico, são três máscaras, como já asseverado, que o Estado moderno confere ao sujeito para que este possa realizar sua essência (liberdade e razão), todos são livres para contratar (sujeito jurídico) e mesmo aqueles que se mantêm aprisionados, subjugados, mantêm, em sua essência universal, a liberdade da razão, pois é da natureza do homem ser livre.
Este é o fundamento da filosofia idealista para a existência do sujeito jurídico (das formas jurídicas – do direito) e do sujeito moral, que colocava, como fundamento, a problemática do homem: existe uma essência universal do homem, essa essência é o atributo dos indivíduos tomados isoladamente que são sujeitos reais dela. Essa universalidade da essência põe em questão uma concepção empirista – idealista do mundo, assim, "para que a essência do homem seja atributo universal, é preciso, que os sujeitos concretos existam como dados absolutos: o que implica um empirismo do sujeito."(15) Para que estes indivíduos sejam homens é preciso que tragam cada um em si toda a essência humana, "se não de fato, ao menos de direito. O que implica um idealismo da essência."(16) Essa é a "estrutura – tipo" invariante do racionalismo burguês que vê sempre o par idealismo do sujeito/empirismo do conceito ou, ao inverso, idealismo do conceito/empirismo do sujeito. O próprio Marx irá rejeitar esse idealismo da essência humana como fundamento teórico, o materialismo excluiu o empirismo do sujeito e seu oposto: o sujeito transcendental; e o idealismo do conceito e seu contrário; o empirismo do conceito(Althusser). Isso implica em substituir o fundamento de toda a história humana do Homem/razão/liberdade, para fundamentá-la em novos conceitos( forças produtivas, relações de produção, etc.) e por um materialismo histórico – dialético da praxis, isto é, por uma teoria dos diferentes níveis específicos da prática humana (prática econômica, política, ideológica, científica). Essa atitude pode ser conceituada como um anti-humanismo(teórico) que reconhece o próprio humanismo como ideologia.
Nesse sentido é que o sujeito tríplice da era burguesa pode ser concebido como sendo uma representação simbólica do Homem.
O Homem, esse ser que se expressa através de uma simbologia própria esse ser que tem uma essência absoluta, que tem um corpo, que tem valores, que ama, que odeia, que vive a ânsia da morte é, na verdade, o último suspiro do Telos. É, ele próprio a essência do mundo. Na verdade, se procurarmos em seus atos, em suas relações, descobriremos que este Homem expressa-se através de uma Lei própria, uma Lei cultural que se expressa e se confunde na e com a linguagem.
Minha hipótese é a de que o "sujeito", o homem/razão/liberdade, na verdade, reflete e submete sua própria "humanidade" a uma ordem simbólica que coordena toda a passagem do não-humano ao humano, que se dá através de uma "linguagem recorrente".(17) Essa linguagem dá-se em pelo menos três momentos:
I – relação dual, pré-edipiana em que o animalzinho humano, em sua relação com a mãe, vive esta relação mesma no mundo do fascínio imaginário do ego, sendo ele próprio este outro, sem poder tomar uma distância objetiva de um terceiro, isto é, a criança não consegue se delimitar( não teria em sua essência, ainda, a liberdade, a razão, seu espírito ainda não os teria recebido...).
II – momento do Édipo: no fundo desta estrutura dual (relação mãe-filho), o terceiro (pai) se imiscui, como um intruso, na satisfação imaginária do fascínio dual, quebrando o fascínio, a relação de prazer que a criança vive com a mãe, introduzindo-a na Ordem da Cultura(ordem simbólica), da linguagem objetivante que permitirá ao pequeno homenzinho dizer: eu, tu, ele/ela.
Esses dois momentos (imaginário pré-edipiano e simbólico – Édipo resolvido) são marcados pela lei do simbólico, norma humana (Althusser), ordem do simbólico que se expressa formalmente do mesmo modo da ordem da linguagem, ordem da lei que espreita desde antes de seu nascimento, qualquer homenzinho que vai nascer, e se assenhora de "desde seu primeiro vagido, para lhe designar seu lugar e seu papel, logo, sua destinação forçada."(Althusser).
Essa ordem do significante humano, que é Lei, ato do Pai, terceiro em uma relação que impõe, de cima, as leis que fundamentam qualquer discurso, essa lei da cultura: condição absoluta de qualquer discurso, discurso da ordem, do outro, do Grande Terceiro(Althusser), que é a ordem mesma: discurso do inconsciente.
O Édipo, a criança sexuada que se torna criança humana sexual (homem/mulher), submetendo-se à Ordem do Simbólico, é o mesmo Édipo que submete-se à:
III – Castração: terceiro momento, em que o ser aceita não ter o mesmo direito do pai[falo] (sujeito moral – esfera da moral) sobre a mãe e aceita ter seu "direitozinho de homenzinho" crendo(sem afrontar o pai que é mais forte e impõe as normas morais) na promessa(da moral/da ordem) de que um dia terá seu direito(será pai, marido, adulto, sujeito de direitos e obrigações na ordem civil).
O Édipo, máquina teatral imposta pela lei da cultura, submete-se à lei do terceiro, à lei do inconsciente. O sujeito real (moral, jurídico), indivíduo em sua essência, não tem a figura de um ego, enterrado no eu, na consciência ou na existência (corpórea/para si) o sujeito humano é descentrado, é uma formação ideológica que se reconhece. Assim, o sujeito econômico não é o centro da história (que também não tem centro), o sujeito de direito, o sujeito moral (leia-se o direito, a moral), também não são o centro da história, são construções ideológicas, superestruturais, que submetem-se e reproduzem a lei da cultura, à lei do discurso.
Desse modo, tanto a moral como o direito, são construções ideológicas coordenadas pela ideologia do sujeito, do Homem, da consciência, da Razão( do cogito) que nada tem a ver com a realidade mas é sim um reflexo da matéria. A lei da Ordem simbólica, a "invenção/criação da memória"(18), a criação de uma memória, de um homem enclausurado em seus compromissos, a cobrança, os compromissos, toda uma simbologia sacramental, dão origem a uma moral e a um direito como sendo dois compartimentos distintos da atividade humana. Somente uma ideologia do homem (uma representação de suas relações reais) pode fundar a existência da moral, do direito, da propriedade privada, da divisão do trabalho e da dominação/repressão dos homens. Mais: somente a Ordem do Símbolo pode dar vazão a uma "ciência" constituída ao redor do eu, ego-consciência (que lidará com categorias tais como personalidade, obrigações, direitos, capacidade jurídica) e que fundará um centro de saber-poder(Foucault)(19), que cuidará de um objeto próprio (direito-sujeito jurídico) diferenciado de outro (moral-sujeito moral) e que monopolizará, ou pelo menos o tentará, todas as regulamentações da guerra humana, todas as formas de relações reais deste animal que luta, instintivamente, por sua sobrevivência num grão de poeira cósmica chamado, por este mesmo homem (antes de descobrir que é constituído em sua maioria por água, o que demonstra a ignorância humana) de terra. Essa ideologia do Homem possibilita, assim, a transformação das atividades produtivas em atividades culturais. As ciências do direito e da moral tornam-se centros de saber institucionalizados que têm, como objetivo, em última instância, impossibilitar-nos de, vasculhando por baixo, por cima, e ao redor do mundo simbólico, de descobrir, lá onde a consciência cala e só o inconsciente fala, aquilo que realmente somos... NADA (isso implica numa relativização de todos os nossos conhecimentos, colocar em questão todos os truísmos que fundamentam a existência da regulamentação da conduta humana, já pelo direito, já pela moral, e construir, ao redor do saber oficial, um outro saber, mas isso é outra história...)
NOTAS
1 Melhor seria designar visão de Estruturalista, tendo em vista que tal corrente abarca, em sua grande parte, conceitos marxistas. Entretanto, como existem os que sustentam uma total desvinculação entre um sistema e outro, inclusive considerando-os opostos, cumpre demarcar as posições e chamar esta abordagem de "marxismo-estruturalismo".
2. Apud Bobbio, Norberto, O positivismo jurídico.
3. Este culto à lei, entretanto, não tardará em demonstrar sua face ideológica e deixará transparecer o autoritarismo próprio, necessário, pressuposto, da exploração capitalista. Na fábrica, na escola, nas relações individuais, a luta pelo exercício do poder sobre o que se encontra em nossa volta prescinde de qualquer legalidade, de qualquer proposição jurídica, de qualquer "prescrição".
4. O termo "ciência" é usado no sentido positivista, visto que, hoje, em vários campos da pesquisa nas se pode encarar mais a ciência como provida de neutralidade axiológica – v.g. a moderna física quântica ao se deparar com a luz, tem de escolher entre duas opções: considerá-la enquanto partícula ou considerá-la enquanto onda e, conforme o ponto de vista adotado, os resultados da pesquisa variam – é uma encruzilhada axiológica.
5. Melhor seria dizer: Hart concebe a "natureza das coisas" verdades elementares – truísmos – capazes de subordinar, ser fundamento de verdade tanto do DN quanto do DP, entretanto, como é fácil constatar, essa "natureza" das coisas um enunciado extremamente semelhante ao conceito do próprio DN.
6. Mais correto seria chama-los de dogmas de uma religião devota do Deus-natureza das coisas
7. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. ATLAS. 2ª Edição 1980. São Paulo – SP. 55p.
8. Neologismo que, apesar de passível de críticas, me obrigo a propor.
9. Althusser; Pour Marx.
10. Reprodução do real pela consciência, sendo está, assim, um reflexo da matéria(conceito sumário).
11. PASHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Acadêmica, 1988. São Paulo – SP. 104 p.
12. Ibidem. 105 p.
13. ALTHUSSER, L. Pour Marx.
14. Ibidem.
15. Ibidem.
16. ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan; Marx e Freud.
17. NIETZSCHE, F. A Genealogia da Moral.
18.. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx, Zahar, 1ª Edição, 1979, Rio de Janeiro – RJ
Freud e Lacan; Marx e Freud, Biblioteca de Filosofia e História das Ciências, Graal, 2ª Edição, s/d; Rio de Janeiro – RJ.BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico. Ícone, 2ª Edição, s/d, São Paulo – SP
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. ATLAS. 2ª Edição 1980. São Paulo – SP
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Graal, 14ª Edição, 1999, Rio de Janeiro - RJ
HART, H. L. A. O Conceito de Direito, Fundação Colouste Gulbenkain, 2ª Edição, 1994, Lisboa.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, 6ª Edição, 1998, São Paulo – SP.
NIETZSCHE, F. A Genealogia da Moral. Ediouro, s/d, Rio de Janeiro – RJ.
PASHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo, Acadêmica, 1988, São Paulo – SP.