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Direito do estado federado ante a globalização econômica

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01/10/2001 às 00:00

Resumo:


  • A globalização econômica impacta os direitos nacionais, reduzindo os poderes dos Estados nacionais, especialmente no que diz respeito aos direitos sociais e econômicos.

  • A crise do Estado social é agravada pela redução do papel do Estado para o de Estado regulador, enfraquecendo a proteção dos direitos sociais e a intervenção estatal na economia.

  • O pluralismo jurídico desafia a exclusividade do Estado na produção do direito, com a globalização econômica impulsionando um pluralismo jurídico anti-estatal ou supra-estatal, desafiando o direito estatal moderno.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: 1.Perspectiva do federalismo brasileiro ante a redução do Estado nacional; 2. Uma questão relevante: o Estado federado sob a ótica da repartição das competências; 3. Modelo híbrido da Constituição brasileira e as dificuldades históricas de realização da competência reservada aos Estados federados; 4. Crítica à fraca realização, pelos Estados federados brasileiros, da competência legislativa concorrente; 5. Crise do Estado social e sua redução ao papel de Estado regulador; 6. Globalização econômica e efeitos nos direitos nacionais; 7. Desconstitucionalização, desregulamentação e refluxo do princípio fundamental da justiça social; 8.Interesse público estatal e interesse público social; 9. O pluralismo jurídico na perspectiva da globalização econômica e o desafio ao direito do Estado moderno; 10. Em conclusão: qual o espaço a ser ocupado pelo Estado federado?


1.Perspectiva do federalismo brasileiro ante a redução do Estado nacional

A experiência brasileira do federalismo republicano despontou para a crescente primazia do direito promanado da União (direito federal), às vezes em situações tais de quase supressão da autonomia dos Estados federados (direito estadual) que se aproximam do unitarismo imperial do século dezenove. Essa inclinação centralizadora, sem embargo da resistente cultura nacional de autoritarismo político, é justificada por muitos como necessária para fortalecer a União contra o risco de desagregação de um país continental e contra os abusos do mandonismo local, pouco afeito às regras da primazia dos interesses públicos sobre os interesses privados.

A globalização econômica, desde a década de oitenta do século vinte, tem apresentado uma característica instigante: seu avanço se dá a expensas dos direitos nacionais, é dizer, da redução dos poderes dos Estados nacionais, máxime no que concerne aos direitos sociais e econômicos. Outra característica da globalização econômica, também instigante, é a tensão que se tem manifestado entre o global e o local. Essas características parecem apontar para a superação do modelo do federalismo concentrador, despontando a responsabilidade crescente dos governos locais, a saber das unidades federadas, na realização das finalidades do Estado democrático e social de direito, o que, paradoxalmente, significará o fortalecimento da União. Ao início do século vinte e um, a globalização não é política pois os organismos internacionais são ainda frágeis para exercerem poder hegemônico e os Estados nacionais são utilizados como aliados da globalização econômica, desde que seus direitos sejam reduzidos a patamares mínimos.

No século vinte, os Estados nacionais converteram-se em Estados de bem-estar social, ampliando sua intervenção no domínio econômico, para reduzir as conseqüências negativas da ausência deliberada de sua ação positiva, a que foram relegados pela triunfante ideologia liberal do século dezenove. O Estado social, assim genericamente denominado, parecia ser o estágio mais avançado da evolução do Estado moderno e da própria modernidade. A globalização econômica, como fato de exercício de poder das nações centrais e das empresas transnacionais, e o neo-liberalismo, como fundamento teórico e ideológico desse fato, e a fortiori, do mercado livre de limitações jurídicas, têm o Estado social como alvo, com intuito de enfraquecê-lo, no que apresenta de nuclear: a promoção dos direitos sociais e a proteção dos mais fracos. Os meios são conhecidos, a saber, a desconstitucionalização e a desregulamentação de amplas matérias, reduzindo o espaço público em benefício de espaço privado subtraído à tutela jurídica.

Assim, a experiência do federalismo brasileiro, de supremacia das competências da União, tornou o direito nacional muito mais vulnerável a essas pressões, sem a contrapartida dos direitos locais que possam contrabalançar o aviltamento do sistema de garantias legais que o país construiu ao longo de sua história republicana. Um dos pilares da bem sucedida aventura humana do federalismo é a distribuição das competências entre a União e os Estados federados, que pode indicar o caminho que estes poderão seguir ou intensificar, se a Constituição de 1988 permanecer intocada nesse ponto.

Não é objeto deste estudo o papel dos municípios, em face da globalização econômica, mas as repercussões neles são evidentes. A ótica escolhida é exclusivamente jurídica, razão porque não serão trazidas à baila as preciosas análises que estão a se fazer na ciência política, nas ciências sociais, na economia, na filosofia, na história, sobre o fenômeno inquietante da globalização econômica, salvo como argumento complementar.


2.Uma questão relevante: o Estado federado sob a ótica da repartição das competências

Para melhor situarmos o campo de nossas reflexões, sempre na perspectiva dos Estados federados, recordemos que nos dois séculos de sua experiência, o federalismo surgiu como solução de organização política de povos com identidades próprias e, atualmente, como modo de otimização da democracia. Seu campo preferencial tem sido o dos países com grandes extensões territoriais, sem embargo da existência de federações em espaços pequenos, como a Suíça. No contexto mundial, de aproximadamente duzentos estados nacionais, os estados federais são minoria numérica e aqueles que se constituíram de modo artificial, sem unidade cultural, tendem a desaparecer, como sucedeu com a União Soviética e a Iugoslávia.

No Brasil, o constitucionalismo é tão cioso da natureza fundamental da organização federal, que foi incluído entre as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º, I da Constituição Federal de 1988), como núcleo duro, imodificável mediante emenda. O país pode optar pela monarquia, mas não pode extinguir a federação.

Contudo, no que concerne à repartição das competências entre União e Estado federado, o federalismo atual apresenta três tendências distintas, o que demonstra não haver um único modelo. Sob a ótica do Estado federado, a repartição de competência pode ser:

a)de competência residual ou reservada, decorrente do assim chamado federalismo dual;

b)de competências expressamente fixadas;

c)de competência concorrente ou cooperativa.

A experiência do federalismo dual, inclusive nos Estados Unidos, sua pátria de origem, indicou um progressivo estreitamento dos "poderes reservados" dos Estados federados, em favor da supremacia da União. A idéia originária de fixar para a União um conjunto definido de poderes, reservando todos os demais aos Estados federados, não prevaleceu, por várias razões históricas e políticas, fartamente indicadas na doutrina. Tem-se, em realidade, um poder federal hegemônico. Na dúvida, o Poder Judiciário federal tende a fazer predominar a competência da União, assim nos Estados Unidos, como nos países que seguiram seu modelo.

O federalismo de competências taxativas, em princípio, favorece os Estados federados, pois estes, do mesmo modo como para a União, têm suas competências claramente definidas, neste ponto sem risco de conflito. A experiência mais conhecida é a da Índia. Os analistas desse modelo alertam para dois problemas de sua aplicação real: primeiro, as matérias não listadas tendem a cair no âmbito da competência da União; segundo, sem embargo da taxatividade, a interpretação judicial tende a favorecer o direito federal, quando ocorre conflito de competência(1).

O federalismo de competência concorrente ou cooperativo permite a comunicação entre os níveis federal e estadual, pois, no campo legislativo, a União edita as normas gerais e os Estados as ambientam, em larga margem, às suas peculiaridades locais. O essencial está no conteúdo conceptual de "normais gerais", como limite constitucional à União. O sentido de competência concorrente difere daquele que o senso comum teórico desenvolveu. Hamilton(2), um dos clássicos do federalismo americano do século dezenove, disse que a legislação concorrente resultava da divisão do poder soberano, isto é, de esferas de poder privativas da União e dos Estados federados. A acepção atual é de competências sobre matérias comuns, embora com limites de forma e conteúdo recíprocos. A saber, cabe à União fixar as normas gerais e aos Estados federados as normas específicas.


3.Modelo híbrido da Constituição brasileira e as dificuldades históricas de realização da competência reservada aos Estados federados

A Constituição brasileira de 1988, ao contrário das constituições anteriores, optou por um sistema misto, mantendo o modelo tradicional do federalismo dual e introduzindo a competência legislativa concorrente, no artigo 24, além de competências de execução comum de políticas públicas (artigo 23). Logo após o advento da Constituição, publiquei um artigo sobre essa novidade bem vinda(3), cercado de expectativa favorável de sua ampla utilização. Mais de uma década após, os resultados foram frustrantes. Os Estados federados não exerceram, como se esperava, os poderes que confiantemente a Constituição lhes delegou. Quais teriam sido as causas?

Historicamente, o sistema de poderes reservados não se ambientou em terras brasileiras, até porque nosso federalismo foi uma escolha política da Constituição de 1890, reproduzindo o modelo norte-americano, não resultando, como este, de concessão dos Estados que formaram a União, reservando para eles tudo o mais que estivesse fora dos poderes fixados expressamente. Em contrapartida, o Brasil foi, durante o Império, um país unitário. Durante a República Velha, até à década de trinta, esses poderes foram desfrutados no interesse dos mandarinatos locais, gerando abusos que desacreditaram o sistema. Note-se, todavia, que o sentimento favorável ao federalismo esteve presente em nossos estadistas, inclusive durante o Império. A esse respeito, lê-se em Alfredo Varela(4):

"O federalismo é, desde 1831, a mais ardente e generalizada aspiração do Brasil. Nos trabalhos de reforma constitucional posteriores à revolução do ano citado, chegou a adotá-lo a Câmara Temporária e, se não é a resistência da Câmara vitalícia, de há muito vigorava no País. Tão acentuadas eram as tendências reformadoras no sentido da ampla autonomia provincial, que monarquistas sinceros, da ordem de Saraiva e Nabuco, preconizavam os modelos federativos, como sendo a condição de salvação do Império, nos últimos anos dele".

Sob a égide das Constituições posteriores, a legislação brasileira substancial, em todas as áreas, concentrou-se no âmbito federal. Sob esse ângulo, a federação, no Brasil, foi e é uma das mais concentradas do mundo. A atitude normal da população dos Estados é aguardar a resolução de seus problemas pela União.

Outra causa importante é o entendimento constante do Poder Judiciário em ter como normal essa concentração, restringindo fortemente o poder dos Estados federados em cuidarem diretamente de matérias relevantes que reflitam no cotidiano dos cidadãos. Restou aos Estados federados tratarem de seus assuntos administrativos, dos impostos específicos e de alguns assuntos residuais. Antes de 1988, como exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu, freqüentemente, pela inconstitucionalidade de leis dos Estados que intentaram controlar o uso de agrotóxicos em seus territórios, no sentido da proteção ao meio-ambiente e da prevenção da saúde das populações. Para o STF essas matérias, tão sensíveis aos interesses locais, seriam de competência exclusiva da União, inibindo fortemente tais iniciativas, com reflexos até hoje.

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4.Crítica à fraca realização, pelos Estados federados brasileiros, da competência legislativa concorrente

Esse caldo de cultura adverso à competência concorrente foi agravado por dificuldades que necessitam de ser superadas. Os poderes legislativos estaduais têm de estar adequadamente preparados para essas novas e relevantes funções, desenvolvendo a parte que lhes toca na realização e concretização, pela administração pública, dos direitos sociais referidos no artigo 6º da Constituição Federal (educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, moradia e assistência aos desamparados).

Há de ser vencida a incompreensão, pelos Estados federados, do imenso alcance do federalismo concorrente e cooperativo, e a impressionante inércia legislativa sobre as matérias que a Constituição a eles confiou. Muito pouco se avançou nessa área. Não tenho notícia, por exemplo, de qualquer legislação estadual que tenha regulado sobre "procedimentos em matéria processual" (art. 24, XI, da CF), que é abrangente do processo civil e do processo penal, nas jurisdições estaduais, ditas comuns ou gerais.

Os abusos já referidos da República Velha deixaram marcas muito profundas, na consciência jurídica nacional, de rejeição às competências estaduais sobre matérias que, em outras federações, são delas exclusivas. Partiu-se então para o extremo oposto, é dizer, da vedação completa aos Estados de editarem legislações próprias sobre as mais importantes matérias pertinentes às relações jurídicas dos cidadãos, a exemplo do direito processual, concentrando-se em códigos únicos aplicáveis a todo o país, sem contemplação das peculiaridades locais ou regionais. A competência concorrente, dialeticamente, intenta uma síntese mais razoável, atribuindo à União a edição de normas gerais, uniformizando os elementos básicos e estruturais e delegando aos Estados a regulação das diferenças ou das diversidades.

À omissão dos Estados federados junta-se o abuso legislativo da União a preencher os vazios normativos, em alguns casos invadindo impropriamente campos que ela não pode tratar. Dou exemplos: a legislação processual civil, inclusive a mais recente, não se contenta com normas gerais sobre procedimentos, descendo a tais minúcias que não deixa espaço à legislação estadual; a Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União e dos Estados, chega ao ponto de definir, nos mínimos aspectos, os direitos, prerrogativas, modos de provimento dos defensores públicos estaduais e até da estrutura administrativa que devem os Estados observar.

Os tribunais, notadamente os superiores, quando se deparam com normas federais que tratam das matérias listadas no artigo 24 da Constituição, ainda que expandidas a situações específicas, inclinam-se a concebê-las como gerais, elastecendo o limite que se impôs à União, de modo a tornar indistinto o que não é geral.

As normas gerais encerram uma faculdade à União, mas estão contidas em seus próprios limites, ou seja, não podem ser exaustivas. As normas gerais estabelecem princípios, regras básicas comuns, diretrizes ou diretivas de harmonização. Não podem especificar situações que, por sua natureza, são campo reservado aos Estados federados. Transpostos esses limites, as normas gerais são inconstitucionais. A Constituição foi clara quanto ao alcance da competência federal concorrente: "a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais".

Sublinhe-se que a competência legislativa concorrente não está adstrita apenas às hipóteses referidas no artigo 24 da Constituição. Nas matérias dispersas em outros artigos, para as quais a Constituição atribui à União apenas a competência de editar normas gerais, ressalta a competência concorrente dos Estados federados.

A concretização do federalismo concorrencial ou cooperativo, e o consectário fortalecimento do direito emanado dos Estados federados, é condição imprescindível para o equilíbrio de forças entre o global e o local, para contrabalançar o enfraquecimento do direito nacional e as conseqüências negativas da globalização econômica. Reside na força do direito local (Estados e municípios) a sobrevivência do Estado social, a grande aventura da modernidade solidária do século vinte.


5.Crise do Estado social e sua redução ao papel de Estado regulador

Entende-se por Estado social, no plano do direito, todo aquele que é regido por uma Constituição que regule a ordem econômica e social. Nesse sentido, substituiu o Estado liberal, cuja constituição voltava-se à delimitação do poder político ou à organização política e à garantia dos direitos individuais, deixando a ordem econômica à "mão invisível" do mercado. Um ou outro pode ser politicamente democrático ou anti-democrático, o que não interessa a este estudo. Assim, o Estado social caracteriza-se por estabelecer mecanismos jurídicos de intervenção nas relações privadas econômicas, nas dimensões legislativa, administrativa e judicial, para a tutela dos mais fracos, tendo por objetivo final a realização da justiça social. Pontificou, incontestado, desde as Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919 até o início da década de oitenta do século vinte, quando passou a sofrer o assalto crescente do neo-liberalismo, patrocinado pelas nações centrais, e da globalização econômica, amplificada pela revolução da informática.

A crise do Estado social foi aguçada pela constatação dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez crescentes. Portanto, a crise situa-se na dimensão da ordem social insatisfeita (garantia universal de saúde, educação, segurança, previdência social, assistência aos desamparados, sobretudo), ou do Estado providência. No que respeita à ordem econômica, todavia, a crise é muito mais ideológica que real, pois dirige-se à redução do Estado empreendedor ou empresário e do garantismo legal. Mas, na medida que o Estado substitui seu papel de empreendedor para o de regulador da atividade econômica, permanece intacta a natureza intervencionista da ordem econômica constitucional, ou a "mão visível" do Estado.

A idéia de retorno ao Estado mínimo (e nesse sentido, liberal) é a-histórica. É pouco crível que a humanidade suporte viver sem as garantias legais coletivas que duramente conquistou, nas relações de trabalho (o que envolve a extinção do direito do trabalho), nos direitos do consumidor, no direito da livre concorrência, na função social da propriedade, na preservação do meio-ambiente, enfim, sem uma ordem econômica constitucional e social.

O Estado social é vítima, nos países, de seu próprio sucesso, diz Gomes Canotilho(5), para o qual as constituições "socialmente amigas" sofrem as críticas amargas da "crise de governabilidade", do "flagelo do bem", do "fim da igualdade", da "bancarrota do Estado". Tal perplexidade está sendo aguçada, como vimos acentuando, pela globalização econômica, na medida que aprofunda a tendência pela substituição do Estado de bem-estar para o Estado regulador, enquanto for necessária essa função de garantia das regras do jogo das forças econômicas hegemônicas.

A sobrevivência do Estado social, sempre entendido como passo decisivo no processo de emancipação da humanidade, importa a própria sobrevivência do Estado moderno, para não dizer da modernidade. Não sem razão, muitos estudiosos apontam a crise do Estado social como sinal do surgimento da chamada pós-modernidade, que revela impressionantes traços feudais, de um neofeudalismo social.

As várias reformas que vem sofrendo a Constituição de 1988 reduziram fortemente seu alcance, mas não retiraram dela a natureza básica do Estado social a que se destina, comprometido com a justiça social, afirmada como princípio estruturante da ordem política e da ordem econômica (veja-se, especialmente, o caput do artigo 170, conformador da atividade econômica exercida no país).


6.Globalização econômica e efeitos nos direitos nacionais

A globalização não tem recebido sentido unívoco dos estudiosos. Se o fenômeno não é recente, como parece a alguns, suas características atuais são próprias e agudas. Não interessa para este estudo as variáveis da globalização, algumas benéficas, nos campos político, cultural, científico, dos direitos humanos, do meio-ambiente e da paz mundial, pela qual tanto pugnaram os iluministas, levando à relativização das soberanias nacionais e à primazia do direito internacional. Interessa, sim, a chamada globalização econômica, notadamente quanto a seus efeitos negativos e destrutivos sobre os direitos nacionais, máxime dos direitos sociais e da ordem econômica.

A globalização econômica, por certo, não é fato episódico ou fugaz, o que torna mais preocupantes suas conseqüências negativas. Cogita-se de um "homo globalizatus", significante de viragem cultural positiva ou de superação de paradigmas(6). Há um otimismo fantástico, no ar, enxergando-se superações de desigualdades mundiais, a exemplo da divisão entre primeiro mundo e terceiro mundo, ou a realização de um sistema racional que leve ao bem-estar de todas as regiões do globo, determinado pelos interesses dos habitantes e não dos lucros ou da guerra(7). Até agora, o que se vê é o crescimento da concentração de poder empresarial, em escala planetária impressionante, no qual os valores hegemônicos são ditados pelos interesses das grandes empresas, com força econômica e law making power superiores ao da maioria dos países. No final do século vinte, a fortuna de apenas três homens superava o Produto Interno Bruto dos quarenta países mais pobres(8). A repercussão no campo jurídico é aguda, revelando perplexidades e dificuldades ainda não totalmente apreensíveis, pois está em jogo o próprio Estado nacional e o direito que se desenvolveu em seu seio, nos últimos séculos. Todavia, a globalização econômica não está vindo secundada pela globalização política, revelando a inexistência de ordem jurídica internacional suficientemente forte para contê-la em limites razoáveis. A este respeito, agudamente observou Eric Hobsbawm(9):

"É nesse contexto que devemos nos perguntar sobre as conseqüências do enfraquecimento do Estado nacional. Será algo bom ou ruim? Ainda não sabemos. Mas é certo que os Estados nacionais não podem ser ignorados, e não podemos examinar o mundo como se não existissem ou não fossem importantes, pois não há nada além deles no campo da política. Atualmente, é simplesmente inexistente a possibilidade de que uma única autoridade global desempenhe um papel político e militar efetivo".

A globalização econômica procura transformar o globo terrestre em um imenso e único mercado, sem contemplação de fronteiras e diferenças nacionais e locais. Tende a uma padronização e uniformização de condutas, procedimentos e relevâncias relativamente aos objetivos de maximização econômica e de lucros, a partir dos interesses das nações centrais e empresas transnacionais que, efetivamente, controlam o poder econômico mundial, sem precedentes na história.

Todo o aparato legal que se constituiu em torno do Estado social, densificando os princípios e regras consitucionais, tem sido desafiado pela globalização econômica. O desafio apresenta-se sob dois aspectos principais: o primeiro, vem em forma de pressão para remoção ou aviltamento dos direitos sociais e de redução substancial do sistema legal de intervenção e controle da ordem econômica, sob pena de retaliações difusas ou diretas, inclusive de recusa de investimentos ou saída de capitais do país; o segundo, pela desconsideração do direito nacional ou sua utilização, naquilo que convém. Ambos levam ao notável enfraquecimento do direito nacional, que se torna impotente para fazer face a eles.

A remoção do Estado social, ou sua substancial redução, é a conseqüência lógica da globalização econômica, pois esta é naturalmente excludente, na medida em que o garantismo legal dos interesses dos mais fracos dificulta sua expansão. Niklas Luhmann, um crítico tenaz do projeto do Estado social (para ele irrealizável), reconhece que "a realização do princípio da inclusão no âmbito funcional da política tem como conseqüência o trânsito ao Estado de Bem-Estar Social" pois este, em suma, é "a realização da inclusão política"(10).

A inexistência de uma ordem jurídica internacional, mercê de ausência da globalização política, tem estimulado as empresas transnacionais a assumirem esse papel, em seu interesse, como ocorreu com a tentativa, felizmente fracassada, de um Acordo Multilateral sobre Investimentos, mediante o qual seriam dotadas de direito unilateral de processarem diretamente Estados que adotassem políticas prejudiciais a seus lucros. Se a idéia tivesse prosperado, as empresas transnacionais seriam equiparadas aos próprios Estados.

O meio mais eficiente de desconsideração do direito nacional é o da utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência de contrato, esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta características assemelhadas às da lei. A lei, no Estado moderno, ostenta características que a distanciam de qualquer ato de particulares ou de grupos. São eles: a generalidade, a abstração, a uniformidade e inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos contratos apresentam as mesmas características. São gerais, porque se aplicam a todos os destinatários, sem individualização. São abstratas, porque são predispostas para regerem situações futuras, e não à situação concreta e determinada. São uniformes, porque padronizadas para utilização com todos os que necessitarem dos produtos ou serviços fornecidos. São inalteráveis, porque insuscetíveis de negociação individual com cada interessado. Quem edita a lei é um ente neutro, a saber, o Estado, poder político legitimado pela coletividade. Quem edita ou predispõe as condições gerais é a parte interessada. As condições gerais são o mais eficiente instrumento do poder normativo das corporações econômicas, que dispensam ou tangenciam os direitos nacionais, pois lidam com as necessidades reais ou induzidas de produtos e serviços, que desejam ser satisfeitas. A globalização econômica potencializou esse poder normativo, que ultrapassa fronteiras, pois as empresas transnacionais utilizam as mesmas condições gerais, emanadas de suas sedes, em todos os países onde fornecem produtos e serviços, apenas vertendo-as ao idioma local, quando o fazem. De modo geral, tangenciam ou desconsideram os sistemas de garantias dos direitos locais, ou pressionam fortemente para mudá-los.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito do estado federado ante a globalização econômica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2243. Acesso em: 22 dez. 2024.

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