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A relação entre a exigibilidade da astreinte e o resultado final da demanda

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3. ASPECTOS GERAIS DA MULTA COERCITIVA E SUA INCIDÊNCIA

A multa coercitiva, no âmbito do Direito brasileiro e tal como a tutela antecipada, foi concebida num contexto de observância do direito fundamental de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988). Isto porque, conforme já exposto anteriormente, mais do que o direito ao acesso à justiça, a previsão constitucional conta com a garantia do acesso efetivo (BERTOLO, 2005, p. 23) e tempestivo à justiça.

Tocante à gênese do instituto aqui estudado, tem-se que o berço da multa coercitiva é o direito francês. Após a Revolução Francesa, houve uma demasiada proteção ao devedor, de modo a considerar as obrigações de fazer ou não fazer como facultativas, e até mesmo não obrigatórias (AMARAL, 2004, p. 27). Foi nesse ambiente que nasceu o princípio no qual “ninguém pode ser forçado a prestar fato pessoal, dado o limite do respeito à liberdade individual”, podendo apenas ser o devedor constrangido a cumprir a obrigação com pecúnia, o qual fez surgir as astreintes, calcadas como medidas coercitivas e independe de eventual indenização (AMARAL, 2004, p. 28).

Ou seja, o nascimento da astreinte representou a criação de mecanismo coercitivo pecuniário que, gerando a condenação a uma soma de dinheiro fixada por unidade de tempo, destina-se a pressionar o devedor ao cumprimento da ordem judicial (TALAMINI, 2001, p. 50).

Amaral (2004, p. 28) explica que houve retrocessos e hesitação na aplicação da astreinte, o que ocasionou, num período na história, a perda de sua essência coercitiva, representando, tão somente, uma espécie de pagamento antecipado a título de perdas e danos. Felizmente, tal posição foi revista com a decisão proferida em 20.10.1959 pela Primeira Câmara Cível da Corte de Cassação francesa, a qual, resgatando os fundamentos da criação da medida, reconheceu o objetivo das astreintes em obrigar o executado, representando medidas completamente distintas das perdas e danos, visto não possuírem como escopo a compensação dos prejuízos sofridos pelo autor em decorrência do atraso no cumprimento da condenação pelo réu (AMARAL, 2004, p. 29). Consagrou-se, assim, a multa coercitiva como meio de coerção, com caráter não reparatório, de modo que o juiz não tome em conta eventuais danos sofridos pelo autor, sendo, portanto, possível sua incidência cumulada, bem como o excesso de seu valor em relação à indenização (TALAMINI, 2001, p. 51).

Nesse contexto, a lei francesa apenas reconheceu a previsão legal das astreintes como providência geral através da Lei n. 72-626/72, e, após, redefiniu sua aplicação com a edição da Lei n. 91-650/91, com a reformulação do processo de execução francês e pelo Decreto 92-755/92 (TALAMINI, 2001, p. 51).

Pertine destacar que, conforme a lei francesa, se “cassada ou reformada a condenação principal, cai por terra, na mesma medida, a astreinte” (TALAMINI, 2001, p. 51). Está-se diante, portanto, do entendimento, pelo código francês, quanto à inexigibilidade da multa no caso de improcedência da demanda, constatação que possui relação direta com o objeto deste estudo.

Para encerrar essa incursão na origem histórica da astreinte, conforme ensina Talamini (2001, p. 58), “Construção idêntica à jurisprudência francesa das astreintes não vingou, porém, na doutrina e jurisprudência da Itália”, restando-lhes “a mera reparação pecuniária”. No Direito Italiano, a aplicação da multa coercitiva se deu em um plano secundário (no âmbito das licenças de marcas e invenções industriais, p.ex.), haja vista que o sistema processual daquele país prepondera que a aplicação de medidas coercitivas se dá excepcionalmente e nos casos em que há a expressa previsão legal (TALAMINI, 2001, p. 62).

No Direito brasileiro, antes mesmo das chamadas primeira e segunda onda de reformas na Lei Processual Civil brasileira, o artigo 287 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) já previa a possibilidade de cominação de pena pecuniária, desde que requerida pelo autor, para os casos de descumprimento de sentença que tivesse por objeto a abstenção, tolerância ou prestação de obrigação infungível (ação cominatória) (AMARAL, 2004, p. 35).

Era esse o teor do dispositivo legal citado:

Artigo 287. Se o autor pedir a condenação do réu a abster-se da prática de algum ato, a tolerar alguma atividade, ou a prestar fato que não possa ser realizado por terceiro, constará da petição inicial a cominação da pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença (artigos 644 e 645). (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973).

Assim, a coerção patrimonial para o cumprimento de obrigação de fazer e não fazer através da imposição de pena pecuniária por dia de atraso era somente cabível para a hipótese de descumprimento da sentença (artigo 287, do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) e desde que constasse da petição inicial da ação de conhecimento o respectivo pedido. (ZAVASCKI, 2000, p. 457).

Com a Lei n. 8.952 (BRASIL, 1994), considerada a primeira onda de reformas, houve a alteração significativa do artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), alteração esta inspirada pelo artigo 84 da Lei n. 8.078 (BRASIL, 1990 - Código de Defesa do Consumidor) sendo sua redação praticamente idêntica a do Código Consumerista (AMARAL, 2004, p. 41). O advento da mencionada lei teve por objetivo revigorar a forma que a prestação jurisdicional vinha sendo entregue, de modo a torná-la especialmente mais célere na solução de conflitos e buscando desburocratizar institutos a fim de não criar, através da demora, um empecilho para a realização do direito. (BERTOLO, 2005, p. 29).

Marinoni (2009, p. 388) afirma, com razão que:

A universalização do procedimento ordinário (tal como era concebido antes de 1994, isto é, destituído de técnica antecipatória e de sentenças mandamental e executiva) constitui um atentado contra a necessidade de tratamento diferenciado às várias situações de direito material.

Sua introdução no procedimento comum do Processo Civil brasileiro se deu através da Lei n. 8.952 (BRASIL, 1994), com o surgimento da antecipação dos efeitos da tutela. Para Marinoni (2008, p. 82), o CPC brasileiro, anteriormente à reforma de 1994, “desconsiderava totalmente os valores da Constituição Federal do Brasil. Uma Constituição que se baseia na “dignidade da pessoa humana” (artigo 1º, III) e garante a inviolabilidade dos direitos da personalidade (artigo 5º, X) e o direito de acesso à justiça diante de “ameaça a direito” (artigo 5º, XXXV), exige a estruturação de uma ação processual capaz de garantir de forma adequada e efetiva a inviolabilidade dos direitos não patrimoniais”.

Na lição de Bueno (2007, p. 80):

Na dogmática mais recente do Direito Processual Civil, forte na necessidade de o legislador processual implementar o modelo político do Estado brasileiro [...], clama-se, cada vez mais, pela eficiência do processo, no sentido de que ele dever produzir, sempre, os melhores resultados possíveis e aguardados desde a perspectiva do direito material, mesmo que, em algumas situações, em detrimento do ideal de segurança jurídica que, em visão tradicional, é, e para muitos continua sendo, a própria razão de ser do Direito [...]. (grifei).

Na visão de Bueno, o processo, por influência da atual tendência constitucional, a qual prima pela efetividade, busca pela produção dos resultados e efeitos aguardados pelas partes, inclusive, se for o caso, em detrimento da segurança jurídica.

Bertolo citando Castelo (2005, p. 27) explica as fases da evolução dos valores na aplicação do Direito, salientando que até o início dos anos 70, em meio a uma crise, o processo ainda era conduzido pela ideia retrógrada de tradicionalidade a partir de conceitos abstratos:

Até o início dos anos 70 (1970), a busca da solução da crise do processo continua a se dar a partir do método tradicional e liberal calculado numa orientação dogmática e conceitualista que apenas conduz o estudo do processo a análise de conceitos abstratos e não ao enfrentamento dos problemas reais, onde predomina a construção sistemática e lógica de institutos sobre o enfoque da efetividade do processo.

No entanto, o autor continua apontando a metade do século XX como o marco inicial das mudanças significativas (e o início da dissipação da ideologia construída com as ondas renovatórias), onde se passa a analisar os problemas reais para a construção de uma solução justa e efetiva:

Na segunda metade do século XX, como uma era de mudança, de ondas significativas e renovatórias. [...] a justiça passa a ser vista a partir da ótica externa do fenômeno social da massa, com a consequência de que seus graves problemas deixam de ser considerados como de técnica interna do processo, mas essencialmente vistos como problemas sociais e políticos que dizem respeito não apenas à efetividade das garantias constitucionais, mas também ao funcionamento do sistema democrático e do Estado de Direito. (BERTOLO, 2005, p. 27-28).

Acompanhamento o posicionamento de Bertolo, Porto (2000, p. 117) complementa a explicação afirmando que a nova ideologia se sustenta na busca pelo cumprimento das obrigações como originariamente concebidas, preferencialmente na forma específica. Significa dizer que a prestação jurisdicional deverá tentar proporcionar à parte os efeitos do adimplemento, ou seja, como se não houvesse qualquer descumprimento da obrigação. Com suas palavras:

(...) contrariamente ao sistema anterior que facilitava a resolução das obrigações em perdas e danos ou multas contratuais, fez a opção ideológica de dar preferência ao cumprimento das obrigações tais como originariamente concebidas. Criou, no entanto, alternativamente, um sistema que estabelece um concurso de possibilidades, cabendo ao autor optar entre a satisfação do próprio compromisso ou outro de efeito equivalente. Poderá o autor, ainda, ao seu alvedrio e por exceção, postular a conversão do implemento da obrigação em perdas e danos, abrindo mão do cumprimento específico do encargo originário. (PORTO, 2000, p. 117).

Quer-se dizer que não mais se caracteriza como tradicional a execução da obrigação convertida em perdas e danos, passando a ser instaurada a execução da tutela específica reconhecida judicialmente.

É nesse contexto que foi pensada a multa, criada como meio coercitivo, de modo a fazer cumprir a prestação jurisdicional do Estado. Como explica Silva (2002, p. 139), a criação da multa passa por um raciocínio de exceção ao princípio da incoercibilidade:

Na verdade, a tendência do direito moderno orientou-se no sentido de restringir o princípio geral da incoercibilidade de fazer humano, limitando as hipóteses em que a resistência do obrigado em cumprir a obrigação deva ser suprida por uma indenização pecuniária, de modo que o princípio da incoercibilidade do facere acabou sendo limitado apenas às obrigações incapazes de serem executadas por terceiros. Se houver fungibilidade da prestação, como seria o caso de haver o devedor se obrigado a compor um poema, ou produzir qualquer outra obra literária ou artística, a execução específica será naturalmente impossível se o obrigado não se dispuser a prestá-la espontaneamente. Todavia, se a prestação consistir, por exemplo, na construção de um prédio, será perfeitamente possível encomendar a execução da obra a terceiros, sem qualquer violência pessoal contra o devedor, executando-se a prestação às suas expensas.

Como anteriormente ressaltado, através da astreinte, o legislador instituiu medida executiva para assegurar a efetivação da decisão judicial de antecipação de tutela, haja vista esta “satisfazer para garantir”, e como tal, “satisfaz faticamente o direito” garantindo o futuro resultado útil do processo à parte vencedora (NEVES, 2011, p. 1140).

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Lucon (2000, p. 163) acompanha esse raciocínio quando afirma que “o escopo de todas elas [medidas coercitivas] é único: fazer com que as decisões dos órgãos jurisdicionais sejam cumpridas”.

A dimensão da importância da multa coercitiva pode ser relacionada à própria importância da tutela a ser antecipada, considerando que sua concessão (e, via de consequência, a justificação da fixação da multa) é pautada na máxima convicção possível do magistrado em um momento de cognição sumária, através do preenchimento de requisitos específicos.

Nas palavras de Neves (2011, p. 1142-1143):

Segundo a melhor doutrina, o juiz parte, no início do processo, da mais completa ignorância e desconhecimento a respeito da demanda judicial que julgará, sendo construído o seu convencimento conforme aprofunda a sua cognição. Dessa forma, o juiz parte da ignorância e ao final chega à certeza, que o habilita a proferir a decisão definitiva. [...] na tutela antecipada, além de o fato parecer verdade (verossimilhança da alegação), deve haver um conjunto probatório que corrobore a alegação e seja suficiente para formar um convencimento mais robusto, mas ainda não definitivo, ao juiz.

Dinamarco (2009, p. 119) explica a concepção da multa coercitiva, inserida no campo da efetividade da tutela jurisdicional:

Para a efetividade da tutela, particularmente no campo angustioso das obrigações de fazer ou de não fazer, municiaram o juiz com poderes eficientíssimos a serem exercidos ainda no processo de conhecimento e com dispensa da formal instauração de uma execução forçada (artigo 461). (itálico no original).

Marinoni (2000, p. 61) complementa afirmando que tais instrumentos processuais novos, notadamente quanto às técnicas de tutela insculpidas nos artigos 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) e 84 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, Lei n. 8.078, 1990), representam o início de uma nova fase onde se concede amplos poderes ao juiz, de modo a alcançar a tutela do direito substancial.

Em suas palavras:

[...] a necessidade de pensar o processo na perspectiva de direito material obriga-nos a raciocinar em termos de tutela dos direitos, o que acaba exigindo uma nova elaboração dogmática, capaz de dar conta dos reais significados dos resultados do processo no plano do direito substancial. (MARINONI, 2000, p. 61).

Tais alterações, portanto, segundo Amaral (2004, p. 36), ampliaram os poderes do juiz na aplicação da multa coercitiva, a qual não mais se restringia aos ditames rigorosos dos supracitados artigos 287, 644 e 645 (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), sendo incorporada ao processo de conhecimento (no que diz respeito às obrigações de faze, não fazer e, posteriormente, entrega de coisa) e não mais à execução, apenas. Essa inovação trouxe a possibilidade de o juiz fixar a multa coercitiva de ofício, ou seja, independentemente de qualquer pedido formulado pelo autor no processo de conhecimento, inclusive em sede de antecipação de tutela (AMARAL, 2004, p. 36).

Mas as inovações não pararam por aí. A segunda onda de reformas contou com a edição da Lei n. 10.444 (BRASIL, 2002), a qual, através da alteração do artigo 461 e inclusão do artigo 461-A, buscou conceder maior efetividade ao processo de execução e à obtenção da tutela específica, harmonizando, entre esses institutos, a multa coercitiva (AMARAL, 2004, p. 38).

Nas palavras de Amaral (2004, p. 39), “Se dúvidas poderia haver quanto à possibilidade de fixação de outra unidade de tempo, que não o dia, [...] as mesmas desapareceram por força do disposto no parágrafo 6º do artigo 461 [...]”. No tocante ao artigo 461-A, sua inclusão ampliou a possibilidade de aplicação da multa também em relação às obrigações de entregar coisa, seja certa ou incerta. De maneira a tornar condizente todas as disposições sobre a matéria, a referida lei (BRASIL, Lei n. 10.444, 2002) também alterou o artigo 287, de modo que ali também fez constar o alcance da referida aplicabilidade, retirando a necessidade de formulação do pedido na petição inicial (o que se harmoniza com a proposta de aplicação de ofício pelo juiz).

Dessa maneira, a multa coercitiva foi delineada como meio de efetivar as decisões judiciais, pressionando ao adimplemento do direito (MARINONI, 2008, p. 97). A multa coercitiva, inserida no plano de atuação da tutela jurisdicional, conforme lições de Marinoni (2000, p. 61), “é o conjunto de meios processuais estabelecidos para que tal resultado [de direito material] possa ser obtido”. Continua o autor:

Quando se pensa nos meios processuais concebidos pela lei para a tutela do direito material, há, mais propriamente, técnica processual de tutela; quando se tem em consideração o resultado que as técnicas processuais de tutela proporcionam, há, em toda a sua plenitude, uma espécie de tutela jurisdicional prestada. (MARINONI, 2000, p. 61).

Para Amaral (2004, p. 47), não se pode ter dúvidas que as reformas levadas a efeito no sistema processual civil vieram para atender os anseios dos jurisdicionados na busca de celeridade e efetividade, visto que se demonstrava incompatível com a realidade social a instauração de novo processo de execução, após o término do processo de conhecimento, a fim de que, no mundo dos fatos, a tutela de seu direito se materialize. Foi delineado, assim, “um sistema provido de técnicas mais eficazes e céleres para a tutela dos direitos” (AMARAL, 2004, p. 48).

O conceito da multa coercitiva pode ser extraído da compreensão de sua natureza jurídica, sendo entendidas por Amaral (2004, p. 85) como a compreensão de uma técnica de tutela coercitiva e acessória, cuja finalidade se encontra na pressão psicológica exercida sobre o réu através da ameaça ao seu patrimônio quando da incidência de uma determinada importância pecuniária a incidir periodicamente em caso de descumprimento, de modo que este cumpra a decisão judicial.

Já para estabelecer a natureza da multa coercitiva, é necessário, rapidamente, investigar sua finalidade, a qual, de acordo com redação disposta no artigo 461, caput, do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), é de assegurar “o resultado prático equivalente ao do adimplemento”, através da influência sobre a vontade do réu.

De acordo com Marinoni (2008, p. 434), “A astreinte tem por fim forçar o réu a adimplir, enquanto o ressarcimento diz respeito ao dano. [...] a multa será devida independentemente de eventualmente devida a indenização pelo dano”. Completando quanto à dissociação da multa com o caráter indenizatório, o mesmo autor ensina que a legislação francesa, ao criar a astreinte, deixou claro que sua aplicação independe de eventual indenização pelo dano.

Nessa linha, o legislador brasileiro instituiu a multa coercitiva, que se assemelha à astreinte, redigindo, no artigo 461, parágrafo 2º, que “a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (artigo 287)” (MARINONI, 2000, p. 105).

Nas palavras de Bueno (2008, p. 415), “a multa não tem caráter compensatório, indenizatório ou sancionatório”. Assim, nota-se que o seu caráter é eminentemente intimidatório. Mais do que isso, tem caráter coercitivo, visto que pretende atuar sobre a vontade do réu, influenciando-o a cumprir a obrigação que assumiu. Nesse sentido, posiciona-se também Didier (2009, p. 443). O autor continua afirmando que:

A multa fixada com base no artigo 461 tem natureza coercitiva, relacionada intrinsecamente com a atuação, o mais eficaz possível, sobre a vontade do executado para que ele próprio cumpra a obrigação tal qual ajustada no plano de direito material. (BUENO, 2008, p. 417). (grifei).

Foram, portanto, disponibilizadas ao magistrado medidas executivas hábeis ao alcance da efetivação da tutela específica, diretas e indiretas, a depender da obrigação discutida.

Nesse norte, a multa coercitiva é pensada como medida de coerção indireta patrimonial. Indireta porque não conduz diretamente à tutela do direito, e sim atua sobre a vontade do réu para que tal tutela seja prestada, e patrimonial porque a multa em si limita-se ao aspecto monetário. Entretanto, se faz necessário ter presente que a sua finalidade não é atingir o patrimônio do executado, e sim, “exercer pressão psicológica no obrigado, para que este cumpra a obrigação específica, determinada no comando judicial, justamente para evitar a excussão de seus bens particulares” (AMARAL, 2004, p. 69).

Além do seu caráter coercitivo, outra característica da multa é a sua vinculação a decisões de caráter mandamental, ou seja, aquelas que contém uma ordem que deva ser cumprida pelo réu, impondo um fazer ou não fazer (MARINONI, 2008, p. 429), embora tal posicionamento não seja absolutamente pacífico na doutrina (redação semelhante ao caput do artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) que introduz as medidas executivas para efetivação da ordem judicial), como um meio de pressionar o devedor ao seu cumprimento.

É nesse ponto que se evidencia o caráter acessório da multa, ou seja, “como técnica destinada ao alcance de determinado fim” (AMARAL, 2004, p. 65), que, no caso, se trata do cumprimento de obrigações principais. Amaral (2004, p. 65) se pauta nesse argumento para dizer que, justamente por ter o caráter acessório, a multa não perdura caso haja alteração na obrigação principal que venha a desobrigar o réu (sentença de improcedência, por exemplo), ou seja, utiliza-se a regra advinda do Direito Romano para dizer que “quando tiverem sido extintas as coisas principais, extinguem-se também as suas acessórias”.

Assim, verifica-se a natureza da multa coercitiva como meio processual acessório de coerção indireta patrimonial vinculada a decisões de carga mandamental.

Tratando-se da fixação da multa quando da antecipação da tutela, verifica-se que sua aplicação poderá se dar através de requerimento ou até mesmo de ofício, de modo que não sustenta tamanho formalismo como, por exemplo, a tutela antecipada propriamente dita, a qual, na maioria das vezes, depende de requerimento específico (conforme a redação do art. 273 do CPC). Esse é o espírito do contido no artigo 461, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973):

Artigo 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

[...]

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. (grifei).

Spadoni citado por Amaral (2004, p. 107) explica que “por ser medida afeta ao poder jurisdicional, tendente a assegurar a efetividade do processo, a imposição de multa ao réu independe do pedido explícito da parte autora”. Amaral (2004, p. 108) explica ainda que “a tutela deve ser pleiteada pelo autor, mas este não pode interferir na técnica de tutela, que será escolhida pelo órgão jurisdicional”.

No que diz respeito às obrigações cuja multa é aplicável, tem-se que seu cabimento é possível nas obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa (arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973). Embora não possa ser descartada no plano das obrigações fungíveis, constata-se que sua aplicabilidade é fundamental nas obrigações infungíveis, vez que a execução direta, nesses casos, não possui efetividade (MARINONI, 2008, p.100).

Tem-se disto que a prática da aplicação das astreintes vai além de uma “simples representação de uma linha de tendência”, sendo mais “rápida, barata e simples do que a execução que depende do encontro de terceiro para fazer o que deveria ter sido feito pelo réu” (MARINONI, 2009, p. 76).

Mas uma ressalva merece atenção. Bueno (2008, p. 417) esclarece que a multa não pode levar à conclusão de que tem a finalidade de enriquecer indevidamente o autor do pedido. Por tal motivo, deve-se ter claro sua precípua natureza coercitiva e função intimidatória, como anteriormente sustentado.

Por fim, é pertinente excetuar que, inobstante a aplicação da astreinte seja plenamente possível no âmbito das obrigações de fazer, há vedação expressa quanto à sua incidência nas ações de exibição de documento (inclusive sendo objeto da Súmula do Superior Tribunal de Justiça n. 372), e nas ações de prestação de contas.

Quanto a essa última, objeto de recente julgamento pelo e. Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2012a), o fundamento da vedação reside no fato de que o ordenamento jurídico-processual prevê a sanção decorrente da não prestação de contas, qual seja, a impossibilidade de questionamento das contas apresentadas pelo autor (artigo 915, parágrafo 2º do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973). Ainda segundo o relator, tal entendimento representa a solução mais prática e eficaz, o que acaba por justificar a inaplicabilidade da multa.

A multa coercitiva, pensada como forma de efetividade e celeridade da prestação jurisdicional, representa um dos efeitos que a probabilidade de o autor da demanda ter razão produz (AMARAL, 2004, p. 21). Em vista disso, como anteriormente dito, seu caráter não se confunde como uma medida de sanção punitiva quando da desobediência do demandado, e sim como medida coercitiva civil, exclusivamente.

Esclarece Marinoni (2008, p. 97) que tal interpretação equivocada advém de uma visão patrimonialista no sistema processual civil que intitula a multa coercitiva como mecanismo de dar dinheiro à parte autora e aponta que sua real finalidade é a tutela dos direitos – especialmente aos não patrimoniais.

Marinoni (2008, p. 97) vai mais longe quando afirma que, por conta de tal caráter coercitivo, não teria cabimento pensar que, ao impor a multa, o juiz estaria condenando o demandado.

Nas suas palavras:

O fato de o valor da multa poder ser cobrado nada tem a ver com a coerção indireta por ela exercida. A dificuldade, aí, está em que a multa, no caso, possui dupla feição. Uma coercitiva e outra punitiva. O objetivo de toda multa coercitiva é pressionar o cumprimento; entretanto, no caso de inadimplemento, ela se converte automaticamente em sanção punitiva pecuniária. (MARINONI, 2008, p. 97).

Ainda, Marinoni citando Lourenço, pontua que a conclusão da obra escrita por este sobre o estudo da função punitiva da responsabilidade civil, é de que a multa prevista no artigo 829.º-A do Código Civil Português – cuja função é a mesma a do artigo 461 do Código de Processo Civil Brasileiro (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) – tem feição punitiva, argumentando:

O caráter punitivo da sanção pecuniária revela-se porque o devedor só tem duas hipóteses: cumpre a obrigação de prestação de fato infungível, ou paga um montante, determinado pelo tribunal segundo critérios de razoabilidade, o qual acresce à indenização. Com efeito, a sanção é atribuída ‘sem prejuízo da indenização a que houver lugar’ (artigo 829.º-A, n. 2), ou seja, trata-se de um verdadeiro montante punitivo, o qual é atribuído ao credor e ao Estado, em partes iguais (artigo 829.º-A, n3), à semelhança do que acontece em relação a alguns punitive damages anglo-saxônicos. Reforça nossa convicção o fato de a sanção pecuniária compulsória legal prevista no n. 4 do artigo 829.º-A, ser aplicável de forma automática, acrescendo à indenização e à mora das obrigações pecuniárias. (LOURENÇO citado por MARINONI, 2008, p. 97).

O artigo 461, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), introduzido pela Lei n. 8.852 (BRASIL, 1994), é essencialmente fundamentado no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, Lei n. 8.078, 1990), estampa a atual concepção de processo, fundado na entrega da tutela específica da obrigação, ou seja, “na maior coincidência possível entre o resultado da tutela jurisdicional pedida e o cumprimento da obrigação caso não houvesse ocorrido lesão ou, quando menos, ameaça de direito no plano material”.

Simplificando a afirmação, trata-se da formulação, pelo autor da demanda, de sua pretensão em obter o resultado que se obteria com o cumprimento espontâneo da obrigação pela parte contrária. (BUENO, 2008, p. 407).Sua finalidade, portanto, é de assegurar “o resultado prático equivalente ao do adimplemento”, compelindo o réu ao cumprimento da ordem judicial.

Marinoni (2008, p. 333-334) defende o cabimento da multa coercitiva inclusive no tocante às obrigações de pagar, ou seja, mediante o ressarcimento na forma específica. Em suas palavras, “no caso em que o lesado postula o ressarcimento na forma específica, e o infrator afirma que não tem condições técnicas para realizar a reparação, o direito ao ressarcimento na forma específica depende da possibilidade do uso da multa”. O autor entende que tal prerrogativa está intrinsecamente relacionada ao direito fundamental da efetividade da tutela jurisdicional, seja ela aplicada nas hipóteses legais (obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa) ou naquelas não previstas expressamente no texto de lei, mas que dependam de tal medida para tornar factível o direito reconhecido (MARINONI, 2008, p. 333-334).

Em resumo, é possível afirmar que a multa coercitiva nada mais é do que um instrumento capaz de conceder garantia ao cumprimento da tutela concedida. Sua tarefa, portanto, não se relaciona à imutabilidade da decisão, mas sim, ao seu cumprimento, forçando, através da intervenção estatal, a retirada do réu de sua posição inerte para que cumpra o direito reconhecido.

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Sobre os autores
Leonardo Beduschi

Graduado em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Mestrando em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor titular de Direito Processual Civil e Teoria Geral do Processo na Universidade Regional de Blumenau (FURB).

Eloisa Brehmer

Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional de Blumenau (FURB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BEDUSCHI, Leonardo ; BREHMER, Eloisa. A relação entre a exigibilidade da astreinte e o resultado final da demanda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3347, 30 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22523. Acesso em: 24 dez. 2024.

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