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O tratamento das ofendículas na doutrina brasileira

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3. MODERAÇÃO

Sendo remansoso o entendimento de que qualquer que seja a excludente de injuridicidade é indispensável a observância do requisito da moderação, ou proporcionalidade, não há praticamente, divergência de entendimentos quanto à necessidade de que haja moderação no emprego dos ofendículos. Nisso estão de acordo tanto os que hasteiam a bandeira da inclusão do instituto no âmbito do exercício regular de direito quanto os que o vêem como legítima defesa predisposta.

Com muita propriedade, ANÍBAL BRUNO adverte que os dispositivos devem atuar na proteção do bem jurídico "por meios razoáveis e de acordo com o valor do bem e a possível violência da agressão. A zona do lícito termina necessariamente onde começa o abuso... a predisposição de aparelhos que matam indiscriminadamente o atacante não constitui exercício, mas abuso de direito, e pelas suas conseqüências deverá responder quem os predispôs." (41)

Portanto, a ofendícula deve consubstanciar reação não além do estritamente necessário ao repúdio da agressão, situando-se os abusos, propositais ou negligentes, na construção ou funcionamento de seus mecanismos, no campo do excesso que desfigura a causa justificante(42), quer se a tenha como legítima defesa preordenada, quer se a conceba como exercício regular de direito.

Irretorquível, mesmo, que a obediência à moderação e proporcionalidade, quer na predisposição dos objetos ou engenhos, quer no seu funcionamento, é requisito imprescindível à legitimidade do "offendiculum". MENDES PIMENTEL, em defesa desse pensamento, arrola a jurisprudência anglo-americana, que impõe que "essa defesa preventiva não pode ser usada inconsideradamente, mas proporcionada ao risco da agressão" (43).

Valeria aqui, enfim, relembrar a lição de NORONHA, de que aquele que eletrifica a porta que dá para a calçada da rua age com culpa manifesta, ao passo que o que eletrifica porta situada depois de jardins, altos gradis e muros, cuja prévia escalada é pressuposto para atingi-la, não age com culpa alguma(44). Sem dúvida, quem predispõe carabina de grosso calibre para disparar automaticamente contra o gatuno que lhe tenta subtrair algumas goiabas do pomar, não pode escudar-se em qualquer excludente, justamente pela falta de moderação.


4. CONCLUSÕES

Algumas considerações nos permitimos fazer a respeito da matéria analisada.

A primeira delas, é que a doutrina pátria tende a restringir as ofendículas à defesa da propriedade, ora de forma explícita, ora por meio dos exemplos declinados.

Assim, por exemplo, ROMEU DE ALMEIDA SALLES JR., que expressamente leciona que "por ofendículos devemos entender os aparelhos predispostos para a defesa da propriedade"(45), o que é repetido por MIRABETE(46) e muitos outros.

Não nos parece correta essa restrição. Qualquer bem jurídico pode ser posto sob proteção de um "offendiculum", e não só o patrimônio. Assim, v.g., pode-se predispor obstáculos ou engenhos para proteção do direito à privacidade do astro de cinema ou do chefe de Estado que se vê assediado por fotógrafos papparazzi; ou para proteger o sigilo de informações, impedindo o acesso a um terminal de computador, etc.

Daí entendermos acertado o escólio de CEZAR BITENCOURT no sentido de que as ofendículas são "dispositivos ou instrumentos objetivando impedir ou dificultar a ofensa ao bem jurídico protegido, seja patrimônio, domicílio ou qualquer outro bem jurídico." (47)

Outra consideração que ousamos apresentar é no tocante à natureza jurídica do instituto em estudo.

Ao contrário da corrente predominante, entendemos que a sua melhor localização, quer se tratem de equipamentos de atuação agressiva, quer se tratem de objetos de defesa passiva, está no exercício regular de direito.

Não um direito de lesar terceiros, o que seria inconcebível, como já assinalado na observação de HUNGRIA, mencionada alhures. Mas o direito, indiscutível, de construir ou estruturar, no âmbito de sua propriedade ou de domínio de seus bens jurídicos, meios de proteção de tais bens.

Assim, ao instalar os ofendículos (em sentido amplo), o indivíduo não está indo além de seu inegável direito de dispor e de proteger seus bens jurídicos. Fazendo-o com moderação, nos limites do indispensável à adequada tutela da coisa protegida, estará acobertado pelo exercício regular de um direito.

A atuação posterior do mecanismo, se eventualmente vier a ocorrer, é irrelevante sob esse prisma. Não se tratará, data venia do entendimento majoritário, de hipótese de legítima defesa. Esta, como exceção à regra da ilicitude do fato típico, para ter incidência deve apresentar, sem defecção de qualquer deles, todos os requisitos de sua existência. E é inegável que no momento da atuação do aparelho predisposto, que funciona automática e uniformemente, não estão presentes a moderação, com a consectária adequação de proporcionalidade ataque – reação, nem o elemento subjetivo da excludente. No momento em que se dá a repulsa ao ataque do bem jurídico, seu titular não tem consciência da situação de perigo, nem conduta dirigida finalisticamente à sua defesa.

Incomoda, ademais, a idéia de uma legítima defesa contra agressão que não se sabe quando, ou mesmo, se vai ocorrer.

Além disso, é curial que a legítima defesa constitui uma ação positiva; aliás, no aspecto naturalístico, uma verdadeira reação a uma provocação (ataque ou esboço de ataque ao bem jurídico do defendente), e não se pode imaginar uma legítima defesa por inércia (o que ocorreria, por exemplo, no caso da maçaneta eletrificada, do fosso em cujo interior cai o ratoneiro, etc).

Assim, entendemos que a hipótese soluciona-se no âmbito do exercício regular do direito de instalar, com moderação, os mecanismos. E eventual dano ao agressor só se deve atribuir à conduta dele próprio, não à do titular do bem jurídico protegido. Numa palavra, quando da atuação do ofendículo, não há ação nenhuma, a não ser a do próprio agressor por ele repelido.

Cabe aqui, com toda amplitude, o escólio de MANZINI: a colocação de ofendículos é exercício de um direito e "se o delinquente, ao invadir a casa alheia, cai nalguma cilada lesiva, imputet sibi"(48). A lesão sofrida pelo agressor deve ser a este imputada, porque decorre de ação sua, não de quem instalou o mecanismo, que só atuou, enfim, porque foi deflagrado pelo próprio atacante.


Notas

1. Cf. Dicionário básico da língua portuguesa. AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1995

2. Nesse sentido: ACQUAVIVA, MARCUS CLÁUDIO. Dicionário jurídico brasileiro. São Paulo: Ed. Jurídica Brasileira, 9ª edição, 1998, p. 896; NAUFEL, JOSÉ. Novo dicionário jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 626

3. PRADO, LUIZ REGIS. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 213-215; COSTA, ÁLVARO MAYRINK DA. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed., 1988, v.1, p. 619. Sobre tal distinção também fazem menção, entre outros, CEZAR ROBERTO BITENCOURT (Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 313), DAMÁSIO E. JESUS (Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1985, v. 1, p. 344), sem deixar de dar a tudo o tratamento de "offendiculum".

4. Nesse sentido: PEDROSO, FERNANDO DE ALMEIDA. Direito penal – parte geral. São Paulo: LEUD, 2ª edição, 1997, p. 334; BRUNO, ANÍBAL. Direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1984, t. 2, p. 9; NORONHA, E. MAGALHÃES. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 31ª edição, 1995, p. 193; LEAL, JOÃO JOSÉ. Direito penal geral. São Paulo: Atlas, 1998, p. 263; SIQUEIRA, GALDINO. Tratado de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: 2ª ed., 1950, t. I, p. 333, ALVES, ROQUE DE BRITO. Ciência criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 154; HUNGRIA, NELSON. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967, v. I, t. II, p. 293; etc

5. HUNGRIA, NELSON. ob. cit., p. 294

6. MARQUES, JOSÉ FREDERICO. Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1997, v. II, p. 181

7. NORONHA, E. MAGALHÃES. ob. cit., p. 193

8. GARCIA, BASILEU. Instituições de direito penal. São Paulo: Max Limonad, 1982, v. 1, t. 1, p. 340-341.

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9. FERRACINI, LUIZ ALBERTO. Legítima defesa – teoria, prática e jurisprudência. São Paulo: LEUD, 1996, p. 39-40.

10. SIQUEIRA, GALDINO. ob. cit., p. 334

11. JESUS, DAMÁSIO E. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1985, v. 1, p. 344

12. TOLEDO, FRANCISCO DE ASSIS. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 5ª ed., 1994, p. 206

13. BRUNO, ANÍBAL. ob. cit., p. 10

14. PEDROSO, FERNANDO DE ALMEIDA. ob. cit., p. 335

15. HUNGRIA, NELSON. ob. cit., p. 295.

16. BRUNO, ANÍBAL. ob. cit., p. 10

17. LEAL, JOÃO JOSÉ. ob. cit., p. 263

18. NORONHA, E. MAGALHÃES. ob. cit., p. 193

19. PRADO, LUIZ REGIS. ob. cit., p. 204

20. Cf. FRAGOSO, HELENO CLÁUDIO. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 191

21. MIRABETE, JÚLIO FABBRINI. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 1989, v. 1, p. 191

22. TOLEDO, FRANCISCO DE ASSIS. ob. cit., p. 206-207. No mesmo sentido: LEAL, JOÃO JOSÉ. ob. cit., p. 263; BARROS, FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE. Direito penal – parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 1, p. 274

23. Nesse sentido, PEDROSO, FERNANDO DE ALMEIDA: "O exercício regular de um direito terá vislumbre apenas se o dispositivo de defesa vier a funcionar contra inocente, ou seja, contra quem não era um agressor. É o que ocorreria, verbi gratia, se atingido fosse um transeunte... que acidentalmente tivesse feito por operar a offendicula... a legítima defesa putativa não encontra encarte, eis que a ela (problema aquilatável na seara da culpabilidade) antecipa-se a excludente de antijuridicidade configurada pelo exercício regular de um direito, prius da defesa preordenada..." (ob. cit., p. 335)

24. HUNGRIA, NELSON. ob. cit., p. 620

25. NORONHA, E. MAGALHÃES. ob. cit., p. 193

26. BRUNO, ANÍBAL. ob. cit., p. 9

27. ibidem

28. MIRABETE, JÚLIO FABBRINI. ob. cit., p. 191

29. SILVA, JOSÉ GERALDO DA. Direito penal brasileiro. São Paulo: Editora de Direito, 1996, v. 1, p. 232-233

30. SHINTATI, TOMAZ M. Curso de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 134

31. SALLES JR., ROMEU DE ALMEIDA. Curso completo de direito penal. São Paulo: Saraiva, 5ª edição, 1996, p. 68-69

32. COSTA JR., PAULO JOSÉ DA. Comentários ao código penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 110

33. FARIA, BENTO DE. Código penal brasileiro comentado. Rio de Janeiro: Record, 1958, v. 2, p. 217

34. cf. MARQUES, JOSÉ FREDERICO. ob. cit., p. 180

35. Preconiza o autor mencionado: "Podem ser incluídas sob a eximente do exercício do direito as questões penais que surgem quanto às ofendículas... Trata-se sempre de uma faculdade inerente ao direito de propriedade... Há autores que tratam das ofendículas no campo da legítima defesa, mas nós consideramos que a questão deva ser colocada no âmbito do exercício do direito, por faltar atualidade do perigo no momento em que as ofendículas são predispostas." (BETTIOL, GIUSEPPE. Direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, p. 360-361)

36. HUNGRIA, NELSON. ob. cit., p. 294

37. SOLER, SEBASTIAN. Derecho penal argentino. Buenos Aires: TEA, 1951, t. 1, p. 369, 417-418. Ensina este autor: "Como consecuencia del legítimo ejercicio de un derecho solamente podrán justificarse las lesiones y los daños cauados por los ‘offendicula’ que el proprietario disponga, entendiéndose por ‘offendicula’ los escollos, obstáculos, impedimentos que oponen una resistencia normal, conocida y notoria, que advierte (previene) al que intente violar el derecho ajeno... Las lesiones causadas fuera de estos límites no pueden justificarse ante el principio del ejercicio del derecho, sino, eventualmente, por legítima defensa {...} cuando la capacidad del aparato excede la de verdaderos ‘offendicula’, el criterio para legitimar los resultados debe estar enteramente subordinado a los principios de la legítima defensa..."

38. PRADO, LUIZ REGIS. ob. cit., p. 214-215

39. TELES, NEY MOURA. Direito penal: parte geral. São Paulo: LED, 1996, v. 1, p. 340

40. BITENCOURT, CEZAR ROBERTO. Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 313. No mesmo sentido: JESUS, DAMÁSIO E. ob. cit., p. 344; OLIVEIRA, EDMUNDO. Comentários ao código penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 247-248

41. BRUNO, ANÍBAL. ob. cit., p. 9-11

42. Cf. TELES, NEY MOURA. ob. cit., p. 340

43. PIMENTEL, FRANCISCO MENDES. "Armadilha contra ladrões noturnos", in Revista Forense. Belo Horizonte, v. 45, p. 485

44. ob. cit., p. 193

45. SALLES JR. ROMEU DE ALMEIDA. ob. cit., p. 69

46. MIRABETE. JÚLIO FABBRINI. ob. cit., p. 191. No mesmo sentido, COSTA, ÁLVARO MAYRINK DA. ob. cit., p. 619

47. BITENCOURT, CEZAR ROBERTO. ob. cit., p. 313. No mesmo sentido: JESUS, DAMÁSIO E. ob. cit., p. 343;

48. apud HUNGRIA, NELSON. ob. cit., p. 294

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Sobre o autor
Gilson Sidney Amancio de Souza

promotor de Justiça no estado de São Paulo, mestrando em Direito Penal Econômico na U.E.M. - Universidade Estadual de Maringá(PR), professor de Direito Penal na Faculdade de Direito de Presidente Prudente - Associação Educacional Toledo, professor de Direito Processual Penal na UNOESTE Universidade do Oeste Paulista – Pres. Prudente

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Gilson Sidney Amancio. O tratamento das ofendículas na doutrina brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2260. Acesso em: 22 nov. 2024.

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