3. A não entrega do recibo de recolhimento da CNH e suas consequências jurídicas.
A partir das elucidações feitas nos tópicos anteriores, diferenciando-se as medidas administrativas do ato administrativo de punição, é possível ingressar na discussão acerca das consequências jurídicas decorrentes da não entrega do recibo no ato da medida administrativa de recolhimento da CNH. A entrega do recibo está prevista no art. 272 do CTB, dispondo que “o recolhimento da Carteira Nacional de Habilitação e da permissão para Dirigir dar-se-á mediante recibo, além dos casos previstos neste Código, quando houver suspeita de sua inautenticidade ou adulteração”.
A entrega do recibo, portanto, é norma imperativa destinada ao agente de trânsito que resolver se utilizar da medida administrativa de recolhimento da CNH. Recolhe-se o documento e, como contrapartida de garantia do administrado, entrega-se o recibo. O condutor, com este último documento, tem formalizado o ato praticado pelo agente público para que possa tomar as medidas cabíveis visando assegurar o seu direito.
Dessa forma, uma vez não entregue o recibo, quais as consequências jurídicas que podem advir de tal fato? Para resposta deste questionamento, é preciso analisar o problema a partir três ângulos. Em primeiro lugar, evidencia-se a nulidade da medida administrativa, pois a regra que impõe a entrega do recibo é uma norma jurídica dependente, uma vez que ela só deve ser observada quando for aplicada a norma relativa à medida administrativa. Assim, a medida acautelatória/administrativa aplicada, por não ter observado o procedimento previsto em lei, será nula, sem possibilidade de convalidação, devendo o documento ser devolvido ao administrado de imediato. O condutor poderá utilizar, inclusive, instrumentos processuais para obter tal objetivo, a exemplo do mandado de segurança, tendo em vista que é direito líquido e certo seu.
Entretanto, não se restringe a isto. A não entrega do recibo se consubstancia também como violação de um dever funcional do servidor público, por inobservância da legislação aplicável, devendo ser responsabilizado por tal ato, o que, tendo em vista o princípio da razoabilidade e proporcionalidade, poderia justificar, por exemplo, a aplicação da penalidade de advertência. Nesse sentido, o condutor que passar por esta situação e não receber o recibo poderá representar contra o agente público que se omitiu, devendo a Administração Pública apurar a sua responsabilidade.
Com isto, chega-se à indagação que tem sido suscitada pelos condutores em suas defesas administrativas: há nulidade também da própria penalidade? A resposta para esta pergunta é negativa, conforme tudo que já foi exposto. De acordo com as conclusões dos tópicos anteriores, a medida administrativa é ato administrativo distinto da penalidade decorrente do ato infracional, não havendo dependência recíproca. Ademais, o próprio CTB destina regime jurídico diverso, estabelecendo duas normas jurídicas autônomas que não se relacionam. Portanto, a nulidade de uma, em virtude da ausência de vinculação, não causa a nulidade da outra.
A omissão do agente público quanto à entrega do recibo só gera a nulidade da medida administrativa e a responsabilidade do servidor, não afetando a penalidade principal. O processo administrativo de apuração da infração seguirá normalmente, independentemente da aplicação da medida administrativa, até porque inexiste qualquer prejuízo à defesa do infrator, observando-se o princípio de que não há nulidade sem dano (pas de nullité sans grief). O ato omissivo em nada afeta a lavratura do auto de infração, a compreensão sobre o ato infracional e suas condições, bem como a apresentação de defesa pelo condutor. Não existe motivo que justifique a nulidade da punição.
Diversos são os exemplos de situações semelhantes e que geram a mesma consequência. Veja-se o caso da prisão preventiva ou em flagrante efetuada ilegalmente, na qual o juiz decretará o relaxamento do ato de constrangimento sem prejudicar a apuração e aplicação da pena ao final do processo. Da mesma forma é a antecipação de tutela deferida irregularmente, contra a qual a parte interpõe agravo de instrumento e obtém a reforma do julgado sem prejuízo da continuidade do processo e da prolação da sentença final.
Não há, portanto, qualquer relação que enseje nulidade entre a medida administrativa e a penalidade final, tendo em vista serem atos administrativos diversos e desvinculados. O que o infrator poderá fazer, vivenciando tal situação (não entrega do recibo), é buscar a devolução do seu documento e representar contra o agente público que infringiu seu dever funcional. A penalidade, contudo, deverá ser aplicada e mantida na integralidade.
Conclusão.
Dessa forma, os questionamentos que vêm surgindo em relação a não entrega do recibo no recolhimento da CNH, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judicial, deve ser solucionado à luz da teoria geral do direito e da distinção estabelecida pelo próprio CTB, considerando ainda as lições de direito administrativo. A medida acautelatória deve ser vista de maneira distinta do ato punitivo, os quais, embora tenham a mesma finalidade geral (interesse público), possuem finalidades específicas diversas e fundamentos em normas jurídicas distintas.
A solução será, portanto, a nulidade da própria medida administrativa com a consequente devolução do documento ao condutor, responsabilizando-se o agente público pela violação do seu dever funcional. Assim, o processo administrativo de apuração da infração deverá ser montado e continuado, oportunizando ao infrator o exercício do seu direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, sem qualquer prejuízo para a aplicação da futura penalidade.
Notas
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 824.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 91.
[3] GASPARINNI, Diógenes. Direito administrativo. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 127-128.
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2008, p. 141.
[5] Opus cit. P. 846
[6] CANÇADO, Maria de Lourdes Flecha de Lima Xavier (Org.); Poder de Polícia. In: MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Curso prático de direito administrativo. 2. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 539-558, p. 555.
[7] MITIDIERO, Nei Pires. Comentários ao código de trânsito brasileiro (direito de trânsito e direito administrativo de trânsito). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1298.
[8] FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2011, p. 87.
[9] Opus cit, p. 88.
[10] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 131.
[11] Opus cit, p. 98.