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Da destinação da parcela pedagógica da reparação por danos morais

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3 - Destinação para instituição beneficente ou fundo de proteção a direitos difusos? Interpretação por filtragem constitucional.

Concluído que o montante arbitrado a título de dissuasão do causador de danos morais não deve ser destinado à própria vítima, mister verificar quem seria o destinatário: entidade beneficente local, nos termos do artigo 883, parágrafo único do CC/02 ou fundo de direitos difusos mencionado no artigo 13 da Lei n° 7.347 de 1985, que em regra tem âmbito estadual, como ocorre em Minas Gerais, com o Fundo Estadual de Proteção e Defesa ao Consumidor – FEPDC, criado pela Lei Complementar Estadual nº 66/2003 alterado pela LC 119/2011 e regulamentado pela Resolução PGJ nº 43 de 04/05/2011.

Inicialmente, é necessário destacar que a destinação do valor a qualquer um dos dois evitará ofensa à isonomia, enriquecimento indevido do autor da ação e permitirá que o Estado cumpra de forma mais eficaz o seu dever de zelar pelo respeito ao sistema objetivo de valores instituído pela positivação constitucional dos direitos e garantias fundamentais.

Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler em percuciente artigo sobre o tema defendem a segunda opção (2005, p.25). Inobstante, modestamente, entendemos de forma diversa.

É que a destinação para um ou para outro dependerá sempre de aplicação por analogia de um dispositivo legal, seja o artigo 883, parágrafo único do Código Civil de 2002 em um caso ou do artigo 13 da Lei n° 7.347 de 1985 em outro caso.

Conforme já tivemos a oportunidade de assentar anteriormente, as semelhanças entre as hipóteses de punitive damages e a disposta no artigo 883 e parágrafo único do Código Civil são acentuadas. Por outro lado, a aplicação analógica do dispositivo da Lei de Ação Civil Pública apresenta menos pontos de semelhança.

A ofensa a direitos de personalidade, quando a conduta do ofensor é de acentuada reprovabilidade, acaba por afetar não só ao acervo jurídico pessoal da vítima quanto ao acervo jurídico social que erigiu a proteção a determinados direitos fundamentais, especialmente à dignidade humana, ao patamar de valores essenciais para o convívio social saudável.

A sociedade, diante do desrespeito e desconsideração excessivos a este sistema de valores e aos bens mais inerentes à subjetividade de cada pessoa, acaba se angustiando e, ao lado deste, é também afetada. Nesses casos, há uma espécie de lesão generalizada, de caráter difuso. Assim, neste ponto, se poderia falar em semelhanças a justificar a aplicação analógica do artigo 13 da Lei n° 7.347 de 1985.

Entretanto, o dispositivo está inserido no “microssistema de tutela jurisdicional coletiva” que se diferencia do sistema de tutela jurisdicional individual pelos princípios e regras que os regulamentam. O processo coletivo, pela diferente extensão dos direitos que visa tutelar, contém peculiaridades aptas a permitir o cumprimento desta finalidade, com atenção à contribuição das partes e da universalidade dos afetados pela tutela jurisdicional.

É claro que, sendo o montante destinado para benefício da coletividade, através do Fundo de Direitos Difusos e tendo sido oportunizado à parte que arcará com a indenização a oportunidade de resistir à condenação (ampla defesa e contraditório), não haveria que se falar em nulidade da sentença, por falta de prejuízo a quem quer que seja (artigo 250 do Código de Processo Civil).

Ainda assim, parece-nos que a hipótese do artigo 883 do Código Civil de 2002 tem mais pontos de semelhança com a dos exemplary damages, merecendo preferência.

Além disso, a destinação a “estabelecimento local” permite beneficiar de forma mais direta a comunidade em que o ofensor está inserido, tornando a dissuasão mais eficaz e expressiva e a pretensão estatal de respeito e (re)afirmação dos direitos fundamentais mais evidente, o que certamente contribuiria de melhor forma para a prevenção geral.

A reversão do montante a fundos públicos implicará, na maioria das vezes, uma desvinculação ou um distanciamento entre a comunidade em que se deu a ofensa significativamente reprovável e a comunidade beneficiada pela transformação dos consectários financeiros do desestímulo em utilidades públicas.  

É princípio basilar de hermenêutica jurídica aquele segundo o qual a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Não se deve presumir que o legislador utilizou de forma despropositada o adjetivo que qualifica o estabelecimento de beneficência no parágrafo único do artigo 883 do CC/02. Pelo contrário, entendeu que o destino “local” à verba cumpriria de forma mais adequada a teleologia da norma.

Somando a esses argumentos, temos que a escolha entre duas soluções deve ser feita sempre através de hermenêutica constitucional, especificamente pela filtragem constitucional, analisando qual das duas conferirá maior eficácia à Lei Fundamental e considerando principalmente que o amparo constitucional da função social da responsabilidade civil é o princípio da solidariedade (artigo 3º, I).

Assim, é preferível a destinação do montante ao terceiro setor do que ao primeiro setor (Estado). É que o fomento ao terceiro setor, onde a sociedade civil assume funções públicas e, em regra, as presta de forma não lucrativa, através de espaços pluralizados e acessíveis de convivência, participação e comunicação política, permite a criação de um sentimento mais forte de solidariedade, ética e respeito mútuo aos membros da comunidade.

Segundo Ana Carolina Henrique Siqueira Lara (2006, p. 112), o Terceiro Setor:

(...) cumpre um papel estratégico na renovação da relação do Estado com a Sociedade Civil. Por ser uma arena institucional das organizações da sociedade, sem fins lucrativos, voltada para finalidades públicas e sociais, ele possibilita a promoção de espaços de convivência capazes de potencializar a cultura da solidariedade e cooperação entre governo, mercado e sociedade local. Para que isso ocorra, contudo, é preciso que se sustente um espaço de diálogo, em que se estimule a constituição de parcerias entre todos os setores da sociedade, através do protagonismo do cidadão ativo. (...) Nesse contexto, a emergência de um espaço plural onde os direitos de participação e comunicação política são enfatizados faz crescer a pressão pela ação da sociedade civil na regulação da vida coletiva. Tal processo está intimamente ligado à formação de associações e à reprodução da solidariedade social, que são atores principais no cenário do Terceiro Setor (destacamos).

A aptidão de as entidades do terceiro setor potencializarem a solidariedade das comunidades nas quais atuam também foi assentada por Josenir Teixeira, que a partir da contextualização histórica, estruturação jurídica e conceituação científica do setor, afirma sua “inexorável imbricação com o princípio constitucional da solidariedade” (2011).

Ainda haveria um último argumento, agora pragmático, para destinação à entidade beneficente. É que por vezes o dano moral não corresponderá a nenhum dos fundos previamente existentes, como os de consumidores e meio ambiente, dentro outros. Nesses casos, quando a reprovabilidade do causador do dano for intensa, não haveria fundo específico para destinação do quantum relativo à dissuasão do ofensor.


4 – Questões processuais.

Assentadas as razões de direito material para a destinação da parcela punitiva dos danos morais para entidade beneficente, resta analisar se haveria entraves processuais para fazê-lo, especialmente se tal destinação dependeria de pedido expresso do lesado.

 Nesta fase, o primeiro ponto que deve ser abordado é se seria legítimo beneficiar terceiros pela tutela jurisdicional prolatada em processo do qual não participaram. O segundo ponto é verificar se, inexistindo pedido específico do autor neste sentido, o arbitramento considerando a necessidade de desestímulo e a destinação para terceiro deste montante ofende o princípio da adstrição ao pedido, viciando a sentença como ultra ou extra petita.

4.1 – Violação dos limites subjetivos da lide.

Quanto ao primeiro ponto, em regra a sentença fará coisa julgada entre as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros (artigo 472 do Código de Processo Civil). São estes os ordinários limites subjetivos da lide. Segundo Eduardo Talamini (2004).

Estabelecer como imutável uma decisão perante terceiro, que não teve a oportunidade de participar do processo em que ela foi proferida, afrontaria não apenas a garantia do contraditório, como também o devido processo legal e a inafastabilidade da tutela jurisdicional. Estaria sendo vedado o acesso à justiça ao terceiro, caso se lhe estendesse a coisa julgada formada em processo alheio: ele estaria sendo proibido de pleitear tutela jurisdicional relativamente àquele objeto, sem que antes tivesse ido a juízo. Portanto, isso implicaria igualmente privação de bens sem o devido processo legal. Haveria uma frustração da garantia do contraditório: de nada adiantaria assegurar o contraditório e a ampla defesa a todos os que participam de processos e, ao mesmo tempo, impor como definitivo o resultado do processo àqueles que dele não puderam participar.

Conforme se depreende, a limitação subjetiva da lide assenta pilar na garantia fundamental do devido processo legal, pela qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, LIV da Constituição da República – grifou-se). O processo funciona, portanto, como método de legitimação ético-jurídica das decisões estatais que impliquem restrição de direitos, imposição de sanções ou agravamento de situação jurídica.

Com efeito, o reconhecimento em sede constitucional de que o poder emana do povo (artigo 1º, parágrafo único) não basta para que se possa falar em Estado Democrático. É necessário que o povo seja enxergado “como instância global de legitimidade democrática” (DEL NEGRI, 2003, p. 31), ou seja conjunto de agentes a serem ouvidos de forma ampla, em todos os discursos de produção, aplicação, modificação e extinção dos direitos, de forma que deixem “(...) de ser meramente destinatários do Direito, mas tornem-se seus co-autores” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 220).

O que se vem de anotar, contudo, não implica inferir de forma peremptória que toda e qualquer decisão tomada sem a participação do interessado seja absolutamente nula. É relevante o fato de que a garantia constitucional do due process of law restou positivada na Constituição brasileira como requisito de legitimação de atos estatais que venham a prejudicar o acervo jurídico de alguém.

Daí se extrai duas conclusões: (A) por força do princípio democrático é necessário que toda decisão estatal, jurisdicional ou não, faculte àqueles por ela diretamente atingidos, positiva ou negativamente, o direito de participar de sua construção. Contudo, (B) em casos excepcionais, em que seja altamente plausível presumir o caráter benéfico da decisão e com o intuito de priorizar outros princípios fundamentais constitucionais, é possível que a decisão estatal seja tomada sem participação da pessoa por ela atingida (desde que se a cientifique da mesma e se a faculte os meios para impugná-la).

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Equivale dizer que, nos casos em que a sentença beneficia terceiro que não participou do processo não há que se falar, só por isso, em invalidade da mesma. Seria contraditório utilizar a garantia fundamental do cidadão para prejudicá-lo, taxando de absolutamente ilegítimo, à sua revelia, o provimento que lhe beneficie, pelo fato de não ter tido oportunidade de participar de sua construção.

Nos casos em que a decisão estatal aparentemente beneficia o terceiro, para que se decrete a pecha da nulidade, é imprescindível que este seja ouvido para dizer se abre mão ou não da garantia do devido processo legal em prol da preservação da decisão já proferida. Senão, aí sim se estaria violando o due process of law, já que se o prejudicaria sem oportunidade de defesa.

É a partir dessas premissas que se encaminha a proposição de que o artigo 472 do Código de Processo Civil não veda ou torna inválida a sentença que produza efeitos em relação a terceiros. Os limites subjetivos da sentença, estampados neste artigo, dizem respeito à autoridade da coisa julgada e não aos efeitos da mesma.

É que, considerando a interdependência que normalmente caracteriza os negócios e demais relações jurídicas modernas, a sentença gera em regra efeitos indiretos a terceiros, como a que declara nulo o contrato de locação de fundo de comércio, afetando todos os trabalhadores ali empregados.

Além disso, a sentença pode gerar efeitos diretos para beneficiar terceiros. Prova disso é que o Código de Processo Civil confere legitimidade para interpor recurso não a todos os terceiros afetados pela sentença, mas exclusivamente ao terceiro prejudicado (artigo 499). Este dispositivo implica o reconhecimento, a um só tempo, (A) que a sentença que beneficia terceiros não é viciada; (B) que o terceiro beneficiado sequer tem interesse de agir no processo e/ou recorrer e (C) que o artigo 472, ao estabelecer os limites subjetivos da lide, se refere à autoridade da coisa julgada e não aos efeitos da mesma.

Nesta vereda, vale reiterar, a sentença pode gerar efeitos a terceiros, contudo, esses efeitos em regra só são imutáveis entre as partes em que foi dada. Caso tais efeitos sejam prejudiciais, como se trata de efeitos e não autoridade da coisa julgada, o terceiro poderá buscar pelo devido processo (recurso ou ação) a anulação da sentença e, consequentemente, daqueles efeitos que lhe embaraçam. Caso entenda que os efeitos lhe são benéficos, serão preservados, visto que enquanto assim entender, a coisa julgada além de efeitos também gerará autoridade quanto a este terceiro, faltando-lhe, deveras, interesse de agir para desconstituir a sentença.

Assim, a autoridade da coisa julgada em relação a terceiros se resolve como uma questão de interesse de agir em relação à decisão prolatada. Se o terceiro não é juridicamente interessado, não tendo nenhuma relação jurídica concernente àquela deduzida em juízo, não tem interesse de agir para pleitear a alteração da decisão.

Se o terceiro é juridicamente interessado, pode ter sido prejudicado ou beneficiado. Caso entenda que foi beneficiado, também carece de interesse de agir para impugnar o ato jurisdicional que lhe afetou. Caso entenda que foi prejudicado, só nesse caso a sentença pode vir a ser anulada ou declarada nula e desde que assim o requeira o terceiro, que terá legitimidade e interesse de afastar o respectivo prejuízo jurídico.

Seja como for, no que tange aos efeitos da coisa julgada, a sentença que gera efeitos aparentemente benéficos para terceiros será sempre válida, pelo menos enquanto não for impugnada pelo terceiro que tenha sido afetado por ela. É que compete a este sujeito (e não a qualquer outro sujeito processual ou órgão jurisdicional) avaliar se tais efeitos lhe prejudicam ou beneficiam[4].

São estas as conclusões Victor Aguiar Jardim de Amorim conclui “(...) que, enquanto a eficácia da sentença pode trazer prejuízo ao terceiro, a imutabilidade da decisão vincula-o tão-somente quando lhe propiciar benefício” (2011)

No mesmo diapasão, Cruz e Tucci, assevera que se o terceiro é beneficiado pela sentença, se submete tanto aos efeitos quanto à autoridade da coisa julgada quando existir nexo de subordinação da posição dele à relação jurídica decidida ou em razão da natureza incindível do direito material discutido (2007; p. 191).

Esta realidade fica evidente no caso de litisconsórcio ativo unitário. Por exemplo, na ação de desconstituição de ato societário promovida por um só sócio, a sentença de procedência produz efeitos contra todos os sócios, haja vista a natureza incindível do ato impugnado. Aqueles que se sentirem prejudicados, poderão anular tal sentença, por violação à garantia constitucional contraditório mas, considerando a hipótese em que tal desconstituição beneficie todos os terceiros (sócios), "julgado procedente o pedido, o objetivo foi atingido, e qualquer outro legitimado será considerado carecedor da ação por falta de interesse de agir numa futura ação que porventura tivesse o mesmo escopo" (Cruz e Tucci, 2007, p.250).

O sistema jurídico demonstra em diversos outros momentos a desnecessidade de que um determinado sujeito participe do processo para ser por ele beneficiado. Tal exigência só é absoluta, repita-se, quando o caso é de restrição de direitos ou agravamento de situação jurídica (artigo 5º, LIV da CR/88).

O artigo 274 do Código Civil de 2002 estende aos credores solidários o julgamento que lhes for favorável, mas não o que lhes prejudicar. Nos casos de ação coletiva em que se discute interesses individuais homogêneos, da mesma forma, a sentença poderá ter efeitos em relação a terceiros, desde que procedente, ou seja, para beneficiá-los (artigo 103, III do Código de Defesa do Consumidor).

Além dos exemplos citados, há outros no ordenamento pátrio que poderiam ser mencionados[5], contudo seria incompatível com os objetivos do presente artigo. De toda forma, não é demasiado relembrar que a lógica que impera no sistema processual quanto às nulidades é aquela estampada no axioma do “pas de nullité sans grief” (artigos 244 c/c 250, parágrafo único do Código de Processo Civil). Assim, não havendo prejuízo, não há que se falar em nulidade.

Por tudo que viemos de expor, considerando a finalidade constitucional estampada na garantia fundamental do devido processo legal, as previsões legais mencionadas e realizando interpretação lógico-sistemática é possível encaminhar a conclusão de que não é absolutamente nula a sentença que extrapola os ordinários limites subjetivos da lide para beneficiar terceiro que não fez parte do processo, nem pode ser considerada viciada sem que sobre isso este seja ouvido.  

Portanto, a aplicação do parágrafo único do artigo 883 do Código Civil de 2002, seja de forma direta ou por analogia, para destinar quantia à entidade beneficente que não participou do processo, não extrapola de forma viciada os limites subjetivos da lide, não havendo que se falar em nulidade da decisão por este vício[6].

Ademais, em análise com apurado rigor técnico, quando se destina à vítima dos danos morais todo o valor arbitrado (a título de compensação e de desestímulo) já se está julgando além dos ordinários limites subjetivos do processo. É que, se o valor é arbitrado com finalidade pedagógica ou punitiva, de uma forma ou de outra, em menor ou maior intensidade, seja pela concessão de um bem jurídico material (dinheiro) ou imaterial (obediência às leis), já se está beneficiando a coletividade que regularmente contrata ou se relaciona juridicamente com o causador do dano.

4.2 – Violação do princípio da adstrição ao pedido.

Isto posto, passamos a analisar se a aplicação de examplary damages e a destinação da parcela pedagógica da reparação por danos morais para entidade beneficente, quando inexistir pedido específico do autor neste sentido, ofende o princípio da adstrição ao pedido, viciando a sentença como ultra ou extra petita.

O princípio da adstrição ao pedido, também denominado de princípio da congruência ou da correlação tem a finalidade de resguardar a segurança jurídica pela garantia do contraditório e está consagrado no Código de Processo Civil nos artigos 128 e 460, pelos quais:

Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.

Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi demandado.

Conforme se verifica da leitura dos artigos, o juiz está adstrito aos limites da demanda proposta pelo autor, não podendo conhecer de questões a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. Logo, em sentido contrário, por interpretação lógico-sistemática, se dessume que lhe é permitido conhecer de questões não suscitadas pelas partes quando a lei não exigir a iniciativa da parte a respeito.

Dentre as questões que dispensam a iniciativa da parte para serem conhecidas pelo magistrado, estão as matérias de ordem pública. Segundo ensina Nelson Nery Júnior (2003, p. 779):

Matérias de ordem pública. A regra da congruência (ou correlação) entre pedido e sentença (CPC 128 e 460) é decorrência do princípio do dispositivo. Quando o juiz tiver de decidir independentemente de pedido da parte ou interessado, o que ocorre, por exemplo, com as matérias de ordem pública, não incide a regra da congruência. Isso quer significar que não haverá julgamento extra, infra ou ultra petita quando o juiz ou tribunal pronunciar-se de ofício sobre referidas matérias de ordem pública. Alguns exemplos de matérias de ordem pública: a) substanciais: cláusulas contratuais abusivas (CDC 1° ao 51); cláusulas gerais (CC 2035, par. Único) da função social do contrato (CC 421), da função social da propriedade (CF 5° XXIII e 170, III e CC 1228, par. 1°), da função social da empresa (CF 170; CC 421 e 981) e da boa-fé objetiva (CC 422); simulação de ato ou negócio jurídico (CC 166 VII e 167) (...) (grifamos).

Anteriormente demonstramos que ao desestimular o infrator o Estado-juiz cumpre dever público, com repercussão coletiva e finalidade social. Há nítido interesse público na moralização e desenvolvimento ético das relações jurídicas cotidianas em geral, de modo que guardem invariável atenção ao sistema de valores fundamentais previstos na Constituição da República, em especial à dignidade da pessoa humana.

A matéria, dessarte, é de ordem pública, dispensa iniciativa da parte e pode/deve[7] ser conhecida de ofício pelo juízo independente de pedido. Mesmo que o autor da ação não peça expressamente que o arbitramento da reparação considere também a função de desestímulo, basta que o desvalor da conduta do causador do dano tenha sido narrado na inicial e confirmado pelo acervo probatório produzido em contraditório.

Quanto à possibilidade de destinação dos punitive damages a terceiro, independentemente de pedido, trata-se de previsão expressa do dispositivo aplicável. O artigo 883, parágrafo único do CC/02, estabelecendo a priori o destinatário do montante, não exigiu iniciativa da parte, pelo contrário, já prescreve de forma transparente que o caso é de destinação da quantia para instituição local de beneficência.

Além disso, aqui também se trata de norma de ordem pública, já que veicula a função social da responsabilidade civil, densifica o princípio constitucional da solidariedade, evita ofensa ao direito fundamental da igualdade e viabiliza maior efetividade ao exercício do dever estatal de preservação objetiva dos valores fundamentais da sociedade. 

Entendimento em sentido contrário configuraria, data venia, contradição teórica e lógico-estrutural incompatível com a coerência sistemática do ordenamento jurídico pátrio, visto que implicaria a conclusão de que a vedação ao enriquecimento ilícito, nesse caso, só seria aplicável por expressa solicitação daquele que se enriquece sem causa justa. Em outras palavras, a eficácia social (efetividade) da norma que veda o enriquecimento sem causa e do direito fundamental da igualdade ficaria condicionada à suscitação da para autora quanto ao próprio enriquecimento indevido.

Isso, em última análise, como é de se imaginar, levaria à ineficácia quase total da norma e a tolerância jurisdicional da inobservância da isonomia pela chancela ao enriquecimento sem causa. Exatamente para situações como essa, de ordem pública, que a literatura processualista e a jurisprudência têm admitido arrefecimento do princípio da congruência. E isto com amparo normativo, frise-se.

É que, conforme já exposto, o artigo 128 do Código de Processo Civil contém exceção implícita à regra (da adstrição) que prescreve: permite à Jurisdição conhecer de questões não suscitadas pelas partes quando a lei não exigir a iniciativa da parte a respeito. A expressão “lei” não pode ser interpretada como texto legal, mas sim como sistema jurídico-constitucional, composto por princípios e regras. Assim, certamente, por uma questão de coerência lógica e sistemática do ordenamento jurídico, nos casos em que o reconhecimento de ofensa à isonomia depende da suscitação daquele a quem a desigualdade favorece, configura-se hipótese a cujo respeito a lei não exige a iniciativa da parte.

A abalizada lição de Hamid Charaf Bdine Jr., no âmbito de obra coordenada pelo eminente Ministro Cezar Peluso, Presidente do egrégio Supremo Tribunal Federal, ao comentar este dispositivo legal em cotejo, confirma o exposto posicionamento, no sentido de que “a natureza pública do texto legal autoriza que o juiz o aplique de ofício, sem que qualquer das partes o sugira ou mencione” (2009).

Neste sentido também é o entendimento de Pablo Stolze Gagliano e Salomão Viana (2009):

(...) o julgador deve, sim, aplicar, de ofício, preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor para assegurar a função social da propriedade e dos contratos, ou em observância a outro princípio de matriz constitucional, desde que o faça no estritos limites do julgamento da lide posta sob sua apreciação.

Portanto, formulado o pedido de reparação por danos morais ficam fixados aí os limites objetivos da lide. Dentro desses limites, a conduta do réu será necessariamente analisada e investigada, visto que é um dos pressupostos para a responsabilização civil. Caso se verifique a significativa reprovabilidade de tal conduta causadora de danos a direitos fundamentais, a reparação engloba não só a parcela compensatória, mas também a pedagógica, de ofício, independentemente de pedido específico neste sentido, haja vista que se trata de matéria de ordem pública.

Tanto é assim que é raro depararmos com posicionamento, no âmbito acadêmico ou jurisprudencial, no sentido de que a consideração da função de desestímulo ao arbitrar danos morais sem que tal pedido tenha sido expressamente formulado pelo autor significaria sentença ultra petita.

Então, se isto é aceito quase pacificamente, não nos parece que a destinação do montante para terceiro implique, só por si, julgamento fora ou além do pedido.

Além de o dispositivo legal dispensar a iniciativa da parte, conforme reconhece abalizada doutrina e se tratar de matéria de ordem pública, o deslinde da questão passa também pela (re)afirmação da finalidade do princípio da correlação, qual seja, resguardar a segurança jurídica pelo contraditório.

Assim, se no caso de responsabilização por danos morais o réu resiste à condenação ao pagamento de quantia através de argumentos e provas que desqualifiquem a conduta, o nexo causal ou o dano, é de todo irrelevante para ele, ao menos em termos técnico-processuais de interesse de resistir, se a quantia arbitrada será destinada ao autor ou a terceiro.

Em síntese, a definição da destinação da parcela pedagógica dos danos morais tampouco depende de pedido específico do autor, já que: (A) o dispositivo legal aplicável o dispensa, (B) que não há ofensa ao contraditório substancial, (C) que a matéria é de ordem pública e (D) que, por fim, insere-se na procedência do pedido de reparação por danos morais, por força da interpretação constitucional sistemática exposta.

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Sobre o autor
Fabrício Simão da Cunha Araújo

Mestrando em Direito Processual pela PUC/MG. Professor dos cursos de graduação da Faculdade de Direito da PUC/MG e de pós-graduação do IEC-PUC/MG. Juiz de Direito em MG. Foi Promotor de Justiça no Estado do Paraná e Assessor Jurídico Chefe da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Fabrício Simão Cunha. Da destinação da parcela pedagógica da reparação por danos morais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3371, 23 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22664. Acesso em: 22 nov. 2024.

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