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Princípio da legalidade na administração pública

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01/10/2001 às 00:00

Resumo:

Resumo


  • O princípio da legalidade na administração pública é fundamental para garantir que todas as ações do governo estejam em conformidade com as leis estabelecidas.

  • A evolução do Estado de Direito demonstra uma transição de um sistema baseado na vontade dos governantes para um sistema fundamentado na lei, visando proteger os direitos e liberdades dos cidadãos.

  • A lei, como instrumento de regulação social, deve ser aplicada de maneira que não apenas siga a legalidade formal, mas também busque justiça material e respeite os valores sociais vigentes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. A LEI

Ao se pensar na Lei, imediatamente ligamos a esta a noção de Estado de Direito, aonde a lei tem papel preponderante e fundamental. Contudo, não é somente no Estado como o conhecemos hoje que a lei representa importante papel.

No decorrer da história, encontramo-nos sempre com a lei, seja ela de origem divina, natural, ou oriunda da vontade única de um indivíduo ou de um colegiado, ou, como hoje, resultado das aspirações da população através do legislador democraticamente eleito.

Dennis Lloyd, ao falar de lei e força, nos conta o mito mesopotâmico de Anu, deus do céu, divindade suprema, e de Enlil, deus da tempestade. Anu, como divindade suprema, símbolo cósmico da autoridade, promulgava decretos, que por serem por ele promulgados, como divindade suprema, exigiam obediência imediata e irrestrita. Contudo, mesmo com esta chancela cósmica, divina, não existia garantia de obediência automática. Assim, era invocado o poder da tempestade, representado por Enlil, símbolo da coerção que garantia a obediência aos decretos da divindade suprema.(37)

Os hebreus, rejeitando todos os sistemas politeístas de religião e governo, adotaram a fé em um Deus Único, que ditava todas as regras para suas vidas. A vontade de Deus era revelada através de seus Profetas, e assim formou-se um corpo legislativo rígido. Se por ventura surgisse um conflito entre a lei de origem divina e a lei de origem humana, prevaleceria sempre a lei divina, sem questionamentos. (38)

Por outro lado, em Atenas, tinha-se a idéia, por força da tradição, que viver de acordo com as leis era a maior de todas as leis, mesmo sendo esta uma lei não-escrita, e independentemente da origem divina ou humana das leis. Ressalta-se bem esta característica no diálogo mantido entre Sócrates e seu discípulo Critón, quando da condenação de Sócrates à morte pelo Estado Ateniense, onde este explica que, apesar de considerar a condenação injusta, deve ser obedecida, porque oriunda do Estado que dita as leis pelas quais eles viviam. (39)

Com o advento e fortalecimento do Cristianismo, desenvolveram-se novas justificativas para a existência da lei e de sua origem.

Para Santo Agostinho, a lei constituía uma necessidade natural para reprimir a natureza originalmente pecadora do ser humano. (40)

Já São Tomás de Aquino, buscando apoio em Aristóteles – que afirmava que o desenvolvimento natural do Estado se daria a partir dos impulsos sociais do homem – escreveu que a lei era necessária não somente para refrear os impulsos pecadores dos homens, mas também para colocá-lo no caminho do bem, para a realização dos seus impulsos sociais de forma harmônica. (41)

No apogeu do pensamento cristão, equipararam-se a lei natural à lei divina, e a ligação entre o direito natural e a teologia cristã reforçou a autoridade das leis no mundo ocidental. O Papa, como Chefe da Igreja Católica, tornou-se a autoridade suprema na mundo ocidental para conferir a "autorização" divina para a existência, aplicabilidade e eficácia de uma lei. Questionamentos sobre a justiça ou não de leis oriundas ou sancionadas pelo Sumo Pontífice, mesmo que da parte de soberanos de Estados independentes, era algo que não se admitia.

Durante séculos prevaleceu a idéia de que existiam duas espécies de lei, uma com origem exclusivamente na vontade humana, e outra com origem divina ou natural. Contudo, ao final da Idade Média a razão humana começou a ser colocada acima do misticismo religioso. Não abandonou-se a idéia do direito natural como origem e justificativa de muitas leis, mas sim buscou-se o caráter racional do direito natural. De acordo com Grotius, mesmo que Deus não existisse, o direito natural continuaria a ser aplicado. (42)

Gradualmente, o direito natural foi deixando de ser fonte de proibições e de imposição de deveres para o homem, tornando-se a origem de direito democráticos fundamentais. Rousseau considerava o direito natural a fonte da autoridade inalienável do povo, a qual seria a única e irrestrita autoridade legal no Estado.

A lei surge agora como a norma oriunda da vontade geral do povo a que se submete o Estado Democrático que começa a surgir nesta mesma época, tendo por função disciplinar as relações entre os indivíduos e entre os indivíduos e o Estado.(43)

No final do século XVIII, começou a surgir o movimento do Positivismo Jurídico. A distinção entre direito natural e direito positivo já era feita por Aristóteles e Platão, mas no final do século XVIII o Positivismo Jurídico aparece, entre outras razões, como um movimento em resposta as questões que o direito natural não conseguia responder.

A quem afirme que surgia como resposta pelo mero expediente de considerar como direito somente o que estava nas leis, deixando os questionamentos morais e filosóficas do conteúdo da lei para outros campos do saber humano.

Norberto Bobbio nos traz algumas distinções entre direito natural e direito positivo:

a) direito natural tem caráter universal, ou seja, vale em todos os lugares, e o direito positivo tem caráter particular, vale somente em determinados locais;

b) direito natural é imutável no tempo, o direito positivo é mutável;

c) direito natural é criado pela razão natural ou pela divindade, e o direito positivo é criado pela vontade do povo;

d) direito natural é o que conhecemos através da razão, o direito positivo é conhecido através da declaração de um ato de vontade de terceiro;

e) objeto do direito natural é essencialmente bom ou mau por si mesmo, enquanto que o objeto do direito positivo é indiferente, até o momento em que é qualificado com certo ou errado, bom ou mau pelo direito positivo;

f) direito natural estabelece o que é bom, o direito positivo estabelece o que é útil.(44)

O Positivismo Jurídico prevaleceu durante todo o século passado e metade do atual, reduzindo o Direito exclusivamente ao Direito positivo, desclassificando o Direito natural. A lei torna-se a fonte superior do Direito perante quaisquer outras fontes do Direito que porventura possam existir. (45) (46)

Com essa idéia da supremacia da lei e a formação do Estado Moderno, surgem as codificações, que é como conhecemos o direito hoje. Austin, defensor da codificação em seu período inicial, afirmava que "é melhor ter um direito expresso em termos gerais, sistemático, conciso e acessível a todos, do que um direito disperso, sepultado num amontoado de detalhes, imenso e inacessível". (47)

Bobbio, em poucas palavras, explica o Positivismo Jurídico: "... o positivismo jurídico nasce do impulso histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva – ou, de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito, e seu resultado último é representado pela codificação." (48)

Em relação a presença da lei no decorrer da história do Estado e do Direito, temos a excelente lição de Canotilho:

" a) Desde o período pré-socrático até Aristóteles, passando por Sócrates, os estóicos e Platão, que o conceito de lei é praticamente inseparável da sua dimensão material; leis verdadeiras são as leis boas e justas, dadas no sentido do bem comum. A lei só pode ser determinada em relação ao justo(igual), dirá Aristóteles na Ética a Nicómaco; a ‹‹soberania da lei eqüivale à soberania de deus e da razão››, ‹‹é a inteligência sem paixões››, escreverá ainda o mesmo autor em A Política. A lei é a ‹‹suprema ratio, ínsita na natureza››, opinará Cícero. A ‹‹lei é uma ordenação racional, dirigida no sentido do bem comum e tornada Pública por aquele que está encarregado de zelar pela comunidade››, escreverá São Tomás. Retenhamos, pois, as duas características da lei, mais ou menos explicitamente acentuadas pela filosofia antiga e intermédia: a dimensão material, na medida em que lei era expressão do justo e do racional; dimensão de universalidade, porque a lei se dirigia ao bem comum da comunidade. ‹‹A lei ao dispor só de uma maneira geral, não pode prever todos os casos acidentais››(Aristóteles, Política, III, X). A natureza geral da lei ressaltava também da forma clara como a jurisprudência romana distinguia entre as leis(leges) e os privilegia: através das primeiras, o povo estabelecia uma determinação geral; os segundos eram determinações individuais a favor ou contra particulares. A fórmula de Ulpiano ficou na História: ‹‹Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur››.

b) Com Hobbes, surge o conceito voluntarista e positivo de lei: ‹‹a lei, propriamente dita, é a palavra daquele que, por Direito, tem comando sobre os demais››. Deste modo, a lei é vontade e ordem e vale como comando e não como expressão do justo e do racional. Daí a fórmula: ‹‹autorictas, non veritas facit legem››.

c) Com Locke surgem os contornos da lei, típica do liberalismo. A lei é o instrumento que assegura a liberdade. A lei, afirma Locke nos célebres Two Treatises of Government, II, VI, 57, no seu verdadeiro conceito, ‹‹não é tanto a limitação, mas sim o guia de um agente livre e inteligente, no seu próprio interesse››. A lei geral e abstracta é entendida já como a proteção da liberdade e propriedade dos cidadãos ante o arbítrio do soberano. Montesquieu, que definirá as leis como as ‹‹relações necessárias que derivam da natureza das coisas››, articulará a teoria da lei com a doutrina da separação dos poderes, ligando as leis gerais ao poder legislativo e as ordens e decisões individuais ao poder executivo.

d) A Rousseau competirá o mérito de considerar a lei como instrumento de actuação da igualdade política e daí a consideração da lei como um produto de vontade geral. A lei era geral num duplo sentido: geral, porque é a vontade comum do povo inteiro, e geral porque estatui não apenas para um caso ou homem mas para o corpo de cidadãos. A lei é, pois, geral quanto à sua origem e quanto ao seu objecto: é o produto da vontade geral e estatui abstractamente para os assuntos da comunidade.

e) A distinção entre lei(Gesetz) e máxima é um ponto de partida para a concepção kantiana da lei: é um princípio prático e uma proposição contendo uma determinação torna-a válida para qualquer ser racional e por isso é lei; se for válida só pela vontade do sujeito é uma simples máxima.

f) Hegel, ao conceber o poder legislativo como o poder de organizar o universal, considera lei como expressão do geral e os actos do executivo como expressão do particular. ‹‹Quando se tem de distinguir entre aquilo que é objecto de legislação geral e aquilo que pertence ao domínio das autoridades administrativas e da regulamentação governamental, pode essa distinção geral assentar em que na primeira se encontra o que, pelo seu conteúdo, é inteiramente universal. No segundo encontram-se, ao contrário, o particular a as modalidades de execução››(49)

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Da lei na Antigüidade, onde o Estado era basicamente teocrático, passando-se pelo período Absolutista, onde o soberano não se submetia a nenhuma imposição legal, pois era Rei por delegação divina, só acatando ao Papa, Chefe da Igreja Católica, desembocamos no período liberal, aonde a lei se apresenta como pedra fundamental do Estado de Direito, proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades dos governantes, codificada e fonte absoluta do Direito.

Mas, o entendimento da lei dentro do contexto positivista, extremamente formal e geradora de muitas desigualdades, que serviu de fundamento para Estados totalitários como a Alemanha nazista, que tantas barbáries ocasionaram, fizeram com que surgissem muitos questionamentos. Dennis Lloyd pergunta: "Poderá ser verdade, como os positivistas insistiram tão sistematicamente em afirmar, que a lei humana seja considerada válida e merecedora de obediência, independentemente de seu conteúdo moral e do grau em que imponha uma conduta arbitrária a todos os padrões morais ou civilizados recebidos?" (50)

Eduardo Garcia de Enterrría afirma que:

"El último estadio de este gran proceso dialéctico por el que paulatinamente se van vaciando los grandes dogmas que condicionaben o se implicaban en la concepción positivista, há sido la desvalorización moral y social de la ley como técnica de gobierno humano. El positivismo legalista era tributario del gran ideario ilustrado de la legalidad, com su equiparación metafísica entre ley e razón, y, a la vez, en cuanto construido sobre los dogmas rousseaunianos, partía de la estricta correspondencia entre ley, como emanación de la voluntad general, y la libertad humana. El advenimiente de ‹‹el reino de la ley›› fue saludado así como la aurora de una época nueva y luminosa en la que la ‹‹alienación›› del individuo en la sociedad(que había hecho de aquél un ser ‹‹encadenado›› desde los orígenes mismos de la Historia) quedaría definitivamente rota, y fundado con ello la posibilidad de un hombre nuevo. Aquellas ideas y estas esperanzas se han quemado del todo desde que fueron propuestas. La sociedad actual no las comparte ya, y, mucho más, ocurre todavía que, como un resultado de la experiencia histórica inmediata, há comenzado a ver en la ley algo en sí mesmo neutro, que no sólo no incluye en su seno necesariamente la justicia y la libertad, sino que com la misma naturalidad puede convertirse en la más fuerte y formidable ‹‹amenaza para la libertad››, incluso en una ‹‹forma de organización de lo antijurídico››, o hasta en un instrumento para ‹‹la perversión del orden jurídico››." (51)

Atualmente, vemos que gradualmente busca-se na lei não somente a afirmação abstrata de direitos e garantias, mas sim uma lei que seja concebida como o instrumento efetivo de realização dos anseios da população por igualdade e justiça materiais, efetivas, não somente formais, abstratas. A população não busca mais códigos ou fórmulas vazias de efetividade, mas sim ações e determinações que sejam reais, materiais, que atendam suas necessidades.

E a justiça nada mais é do que um valor moral, valor este que varia de sociedade para sociedade, e com o passar dos tempos, e que pode ou não ser considerado o maior dos valores a ser buscado por uma sociedade.

Mas, enquanto na era platônica a justiça era realizada através de leis cuja finalidade era a manutenção da desigualdade natural dos homens, nos tempos modernos podemos dizer que a lei continua sendo o instrumento para a realização da justiça, mas com o objetivo de trazer a igualdade para os naturalmente desiguais.

A justiça tornou-se, atualmente, não mais uma palavra que engrandece belos discursos e grandes escritos, pelo contrário, busca-se hoje a realização da justiça através da aplicação de leis que, em um primeiro momento, até parecem ferir o princípio da igualdade de todos perante a lei, mas que, materialmente, tratam de forma igual os naturalmente desiguais. Em outras palavras, visando equilibrar as desigualdades sociais existentes, a lei é elaborada e aplicada de forma diferente para pessoas ou grupos diferentes socialmente.(52)

Voltaremos a discorrer mais sobre esta transformação quando falarmos especificamente do Princípio da Legalidade.

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Sobre a autora
Luciana Varassin

advogada do Instituto Municipal de Administração Pública (IMAP), em Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARASSIN, Luciana. Princípio da legalidade na administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2275. Acesso em: 21 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado em Março de 2000 para a obtenção do título de Especialista em Direito Contemporâneo e suas Instituições Fundamentais junto ao IBEJ – Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos, em Curitiba-PR, sob a orientação da Dra. Angela Cassia Costaldello.

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