Num ato quase psicodélico, cogitei a seguinte hipótese: se uma quadrilha ou bando que assalta bancos, ao invés de agir na informalidade, criasse uma pessoa jurídica, cujo objeto social fosse, suponhamos,a prestação de serviços gerais no ramo bancário. Na suposição, o objeto é lícito, não havendo óbice a sua constituição.
Na sequência, supus mentalmente que esses mesmos integrantes fossem presos pelos assaltos praticados. Denunciados e, considerando o devido processo legal a todos conferido,suponhamos que aventassem em suas defesas a seguinte tese. Quem praticou eventual crime, com eventual desvio de finalidade, foi a pessoa jurídica e não as pessoas físicas; tais não se confundem. Há um véu que as separa. Eventual sanção deve ser direcionada àquela, limitando-se, neste caso, à esfera cível. Salvo melhor juízo, a argumentação seria motivo de chacota; uma oferenda à loucura.
Agora, em um ato mais racional, suponhamos que esses mesmos meliantes depositarem valores (adquiridos de forma lícita) na mesma instituição que foi assaltada. Desses depósitos houve retenção e descontos estranhos ao contratado. Na espécie existiu, inicialmente, captação lícita de valores que, com o passar do tempo, pela retenção, convalidou-se em apropriação indébita (art. 168 CP).
Em novo ato febril, forjei a seguinte cena:e se o mesmo Promotor de Justiça, que por um ato racional, denunciou o bando e não a pessoa jurídica a qual eles compunham, fizesse o mesmo com os representantes da instituição financeira? Não seria natural denunciar, a despeito do que aconteceu no primeiro exemplo, quem a compõe? Proceder de forma diversa não seria dar tratamento diferenciado a situações idênticas? Pode uma pessoa jurídica ser desconsiderada em um caso e não em outro? Sem margem para erro, o representante ministerial seria tachado, por muitos, de irracional.
Contudo, é crível aceitar que pessoas se escondam atrás de instituições para apropriar-se, de forma indevida, de patrimônio alheio? Será que a toda e qualquer ação procedente na esfera civilista, condenando as instituições financeiras a devolver os valores solapados de forma ilegal, não deveria corresponder a uma ação penal, por apropriação indébita, em face dos seus componentes? Neste caso, o que falta para os doutos representantes do Ministério Público rasgarem o véu quesepara a pessoa jurídica da pessoa física?
Como tolerar que, por exemplo, um plano de saúde exija que seus médicos não solicitem determinados exames a um paciente, a fim de não onerar a prestadora? Pode existir crime mais odioso que isso? Eventual morte do paciente não seria um homicídio com dolo eventual? Será que eventuais reparações civis inibirão tais práticas?Será que quando um cidadão contrata prestação de serviços de internet e recebe, quanto muito 10% (dez por cento) do pactuado, ali não estaria ocorrendo um estelionato?
Mais do que nunca, necessitamos de Fiscais da Lei que, de forma corajosa, caminhem para o âmbito penal. Que consigam abstrair que o instituto da pessoa jurídica tem apenas existência ideal, fruto de uma técnica jurídica utilizada para simplificar as relações institucionais/comerciais. A omissão que hoje ocorre acaba por dar vida a um ente inanimado.
Enfim, é justo e necessário que o Ministério Público, através de seus representantes, “entrem em campo” e labutem em atos mais aprofundados, mormente no que toca à responsabilização penal de integrantes de pessoas jurídicas ligados a grandes corporações e, acima de tudo, consigam ver que, para fins penais, não há como separar os atos praticados pelas empresas daqueles praticados por seus representantes.