Não pode existir democracia sem o respeito ao princípio da separação de poderes. Dizia o art. 9o de nossa Constituição do Império que "a divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece". Esse enunciado, mais doutrinário do que propriamente normativo, buscava suas razões na Teoria da Separação dos Poderes, definitivamente sistematizada por Montesquieu, no Espírito das Leis, e que representava uma reação contra a monarquia absoluta. Evidentemente, a concentração dos poderes leva à tirania e impossibilita a efetivação das garantias constitucionais.
De acordo com as nossas Constituições, tradicionalmente, cabe ao Legislativo a função de elaborar as leis, e apenas em circunstâncias excepcionais poderia ser admitida a edição de uma lei, ou de uma norma jurídica, como quer que ela se denomine, pelo Chefe do Executivo. O tema da reedição abusiva das medidas provisórias, que já vem sendo discutido há mais de dez anos, voltou à baila após o discurso do Presidente da OAB nacional, na solenidade de posse do Presidente do STF. Alguns o censuraram, porque ele afirmou, em seu discurso, que o Presidente da República usurpou o poder, abusando das edições e reedições de medidas provisórias. Outros o defenderam, mostrando que ele nada mais fez do que repetir a crítica que o então senador Fernando Henrique Cardoso fez ao Presidente Fernando Collor, em seu artigo "Constituição ou Prepotência", quando o hoje Presidente afirmou que "ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no País só existe um Poder de verdade, o do Presidente. E daí por diante esqueçamos também de falar em democracia."
O Coronel Jarbas Passarinho, em seu artigo "Reflexões sobre Liberdade", publicado no O Liberal do último domingo, afirmou que o Executivo não usurpou o poder, porque as medidas provisórias são norma constitucional, e porque o seu uso abusivo deveria ter sido evitado pelo Congresso. Mas a questão sobre se houve ou não a usurpação do poder pelo Presidente, ou pelos Presidentes, e se a culpa é do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal, ou de todos, é apenas secundária, porque a verdade é que o Presidente legisla indiscriminadamente, sem atentar aos limites constitucionais da relevância e da urgência. Em certas matérias, chegamos ao absurdo de ter medidas provisórias que vêm sendo reeditadas há sete anos. Como justificar, nesses casos extremos, o requisito da urgência? Para que serve o Congresso Nacional, afinal de contas, se o Presidente da República pode legislar sozinho, com muito maior eficiência? No total, FHC baixou 239 medidas provisórias, e fez 3.196 reedições, muitas delas com textos modificados, em relação aos anteriores.
Um pouco de História
Nossa história político-constitucional tem sido pródiga em exemplos da intromissão indevida do Chefe do Executivo, e do seu fortalecimento exagerado, em franco desrespeito aos demais Poderes. Tudo começou quando D. Pedro I dissolveu a Assembléia Constituinte, e outorgou uma Constituição, garantindo sempre a supremacia de seu poder pessoal, dentro das melhores tradições do absolutismo ibérico. A personalização do poder na figura do caudilho é da nossa tradição. A República, entre nós, foi feita por um decreto, o Decreto nº 1, de 15.11.1889, assinado por um militar, o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, e aliás redigido por Rui Barbosa.
O problema do Presidente legislador é bem antigo no Brasil. Foi o próprio Rui Barbosa quem pronunciou as seguintes palavras; "...os nossos Presidentes carimbam as suas loucuras com o nome de leis, e o Congresso Nacional, em vez de lhes mandar lavrar os passaportes para um hospício de orates, se associa ao despropósito do tresvairado, concordando no delírio, que devia reprimir." (Ruy Barbosa, Ruínas de um Governo, Rio, 1931, pp.92-96)
Após a Revolução de 1930, sob a vigência do Estado Novo, a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, vigorava de acordo com a vontade pessoal do Ditador, que legislou mediante decretos-leis, sem qualquer limitação, porque o Parlamento foi fechado, a censura impedia qualquer manifestação contrária ao regime, e o Judiciário também não dispunha de garantias para fazer valer suas decisões.
Em seguida ao breve hiato da chamada reconstitucionalização, da Constituição de 1.946, quando não existia a figura do decreto-lei, foi instaurada no Brasil uma nova ordem jurídica, fundada nos Atos Institucionais, a partir do Golpe, ou da Revolução, de 1964, que editou a Constituição de 1.967, através de um Congresso subserviente, transformado em Constituinte pelo Ato Institucional nº4/66. Posteriormente, foi outorgada uma nova Constituição, em 1969, formalmente uma Emenda Constitucional. Sob o regime de 64, o Presidente legislava através de decretos-leis, e na prática não havia qualquer limite a essa legiferação, quer pelo Legislativo, quer pelo Judiciário. Aliás, o Ato Institucional nº 5/68 excluía, expressamente, da apreciação do Poder Judiciário, os atos praticados pelo Governo Militar, e os seus efeitos (art. 11). Em outras palavras, os decretos leis prevaleceriam, mesmo que conflitassem com a Constituição Federal.
As Medidas Provisórias e sua Reedição
Após o fim melancólico do Regime Militar, e mais uma reconstitucionalização, a Constituinte de 87/88, como seria lógico, pretendeu devolver ao Congresso o poder legiferante, mas permitiu, excepcionalmente, a edição de medidas provisórias pelo Presidente da República, somente em caso de relevância e urgência (art. 62). Ressalte-se que a competência do Presidente para a sua edição deve ser interpretada restritivamente, porque o contrário constituiria uma afronta ao princípio básico da separação dos poderes.
O parágrafo único do art. 62 é muito claro, quando afirma que as medidas provisórias perderão a eficácia desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias. A medida provisória é, ao mesmo tempo, um projeto de lei e uma lei destinada a vigorar provisoriamente, dependendo da vontade do Congresso. Assim, se não for convertida em lei, ela perderá a sua eficácia, ou seja, terá sido rejeitada pelo Congresso, e a sua reedição será inteiramente inconstitucional, de acordo com a melhor doutrina, porque significará a apresentação, na mesma sessão legislativa, de um novo projeto de lei, com o mesmo conteúdo de um projeto já rejeitado (CF., art. 67), embora sua rejeição tenha sido tácita, pelo simples decurso do prazo.
A Usurpação do Poder
Não é também verdade, absolutamente, que a medida provisória seja norma típica do parlamentarismo, e que torne necessariamente imperial o presidencialismo. Isso acontecerá, apenas, se o Presidente da República abusar de sua competência, usurpando o poder. Na verdade, a usurpação poderá ocorrer de várias maneiras. Nos golpes de estado, com o apoio dos canhões. Nas assim chamadas democracias meramente formais, através de outros mecanismos mais sutis, como a violação de painéis eletrônicos, a distribuição das verbas referentes às emendas parlamentares, ou ainda na própria elaboração da lei orçamentária, e mesmo pela edição ou reedição de um enorme número de medidas provisórias, inviabilizando conseqüentemente o seu exame pelo Congresso e o controle de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Também não se pode dizer que o Presidente não tenha usurpado o poder, sob a alegação de que a culpa seja do Congresso, pela sua inércia e pela sua conivência. Isso é um sofisma. Seria o mesmo que afirmar a inocência do ladrão, ao argumento de que a porta deveria ter mais um cadeado.
Na opinião do constitucionalista Sacha Calmon Navarro Coelho, "Não é crível que a medida provisória possa ser mais ampla que o Decreto-lei. A interpretação histórica e teleológica da Constituição primam em mostrar a excepcionalidade da medida e não a sua vulgarização. Renegamos o argumento de que ela se instalou ao pressuposto de que o regime seria parlamentarista e, portanto, o Governo seria engendrado no Congresso Nacional pelos partidos majoritários, gozando da confiança parlamentar. Ora, no Presidencialismo as maiorias parlamentares governantes depositam igualmente confiança na Presidência da República. A medida provisória está na Constituição como instrumento legiferante necessário em casos de urgência e relevância, independentemente do parlamentarismo. A questão é que não se quer enfrentar estes antepostos, os quais estão escritos na Superlei exatamente para serem sopesados pelos dois outros Poderes da República: o Legislativo e o Judiciário."
A Responsabilidade do Presidente
Mas o Presidente da República é obrigado a respeitar a Constituição, o que define a sua responsabilidade pelos abusos na edição e na reedição de medidas provisórias. Ocorrendo os pressupostos de relevância e urgência, o Presidente seria obrigado a editar as medidas provisórias, mas na ausência de um desses pressupostos, ele estaria impedido de se valer dessa atribuição legiferante excepcional. Para a constitucionalista Carmen Lúcia Antunes Rocha, o Presidente da República deveria ser responsabilizado (através do "impeachment", evidentemente): "Responsabilidade do Presidente da República - A relevância urgente define um dever de ação no desempenho da competência definida constitucionalmente, tanto quanto a inocorrência objetiva de qualquer daqueles dois pressupostos define um dever de abster-se de valer-se de tal competência excepcional o titular da atribuição, pena de responsabilidade por atentar contra a Constituição."
É muito claro que, depois de todos os abusos praticados pelos Governos Militares, o Constituinte de 1988 não pretendeu permitir a reedição das Medidas Provisórias, mesmo porque estabeleceu os já referidos requisitos de urgência e relevância da matéria, e também porque fixou um prazo improrrogável de trinta dias, para a conversão da medida em lei. Além disso, o legislador constituinte determinou a convocação extraordinária do Congresso Nacional, quando em recesso, para se reunir no prazo de cinco dias, e apreciar a matéria, o que denota mais uma vez sua relevância e urgência.
O Controle das Medidas Provisórias
Tendo em vista que a medida provisória é, ao mesmo tempo, um ato com força de lei (por trinta dias) e um projeto de lei, a ser apreciado pelo Congresso, dentro desse mesmo prazo, o Supremo Tribunal Federal tem concedido diversas liminares, suspendendo a aplicação de medidas provisórias, mas ressalvando a sua validade como projeto que poderá ser convertido em lei pelo Congresso Nacional. Com a freqüente reedição das medidas provisórias, porém, e devido à virtual impossibilidade de uma decisão judiciária definitiva no prazo de trinta dias, avolumam-se os problemas referentes ao controle da constitucionalidade desses atos normativos.
De qualquer maneira, o Supremo Tribunal Federal tem se negado a examinar os requisitos da relevância e urgência para a sua edição, sob o argumento de que isso caberia ao Presidente da República, e tem admitido também a constitucionalidade de sua reedição, em evidente prejuízo ao equilíbrio entre os Poderes Constituídos.
O Congresso Nacional, por sua vez, ainda não conseguiu aprovar o projeto, que tramita há quatro anos, destinado a limitar a edição de medidas provisórias. Somente agora esse projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, devendo ser ainda submetido a um segundo turno de votação, para posterior apreciação pelo Senado, também em dois turnos. Mas a julgar pela redação atual, tudo indica que o problema não será resolvido, porque as medidas provisórias anteriores poderão continuar sendo reeditadas indefinidamente pelo Presidente da República.
A respeito da fraqueza do Legislativo, dizia Pimenta Bueno, o mais autorizado intérprete da Constituição do Império: "Desde que o poder legislativo sabe respeitar e cumprir sua augusta missão, e por isso mesmo sabe fazer-se respeitar, ninguém se anima, nem pode animar-se a contrariar seu impulso animador e benéfico; quando porém ele é o primeiro a curvar-se ante os ministros, pode contar certo com a sua degradação, e a sociedade com o abatimento de suas liberdades"
Na verdade, o Congresso e o Supremo estão em posição de inferioridade, nessa disputa pelo poder, em face de suas próprias características, como órgãos colegiados, e tradicionalmente mais lentos, em suas decisões, devido à pulverização do poder e aos demorados trâmites processuais que dificultam o seu funcionamento. Ao Chefe do Executivo, basta uma caneta.