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Filosofia ou Teoria do Direito?

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1. Apresentação

O presente trabalho se desenvolve a partir do seguinte questionamento: Filosofia ou Teoria do Direito?

Nosso objetivo é fornecer uma visão panorâmica a cerca do título em referência. Deixamos nossa contribuição para que os operadores do direito tenham um clareamento sobre aspectos ligados as expressões filosofia e teoria do direito, positivismo jurídico, conhecimento científico, ciência do direito, zetética e dogmática jurídica, sem esquecer de assinalar algumas críticas. O leitor encontrará também menções às propostas de Hans Kelsen e Alf Ross que ilustram o conteúdo deste artigo.

Ressalvando que o presente trabalho, enquanto treinamento de iniciação a investigação, não se obriga a criação de novas teorias "ou nova explicação de fatos dentro da originalidade que nortearia, por exemplo, uma tese doutoral".

Nossa contribuição não tem o condão de analisar profundamente o título em referência. Pretende-se como meta principal "despertar" questionamentos e suscitar discussões. Nos filiamos as idéias de Eduardo Rabenhorst, que surgem em face a extensa discussão sobre a questão da construção da moderna Teoria do Direito.

Para alcançar nossa pretensão, modestamente confessada, adotamos a postura de delimitar sinteticamente os principais aspectos a cerca da controvertida indagação proposta pelo professor Eduardo Rabenhorst: Filosofia ou Teoria do Direito?


2. Filosofia ou Teoria do Direito?

Enquanto existe uma certa unicidade no conceito de Ciência como sendo o conhecimento certo e experimental em relação a um determinado objeto de estudo, os conceitos de filosofia são muitos. Conceituar Filosofia do Direito exige uma preliminar definição da própria filosofia. Não há um conceito único de filosofia do direito, pois existem muitas definições de filosofia, ora pelo seu conteúdo (tipo de saber que ela proporciona), ora pela metodologia da sua atividade (por exemplo, pela analítica, seria tanto a análise quanto a clarificação da linguagem; pela fenomenologia, seria a compreensão das estruturas essenciais da experiência humana).

Os adeptos do positivismo lógico, por exemplo, identificam a filosofia como um discurso metafísico que não poderia ser comprovado empiricamente. Eduardo Rabenhorst concebe a definição da atividade filosófica como exercício do pensamento enquanto questionamento. A reflexão filosófica, diferentemente das ciências, se apoia na prática de questionar e submeter conceitos e idéias ao teste dos bons argumentos. Enquanto um matemático, por exemplo, se ocuparia das relações entre os números, um filósofo indagaria: "o que é um número?".

A filosofia do direito, independentemente de como é definida, se traduz num questionamento: "o que é o direito?". A filosofia sempre pode tomar o direito como objeto de estudo, contudo ela nunca chegou a fornecer uma filosofia "substantivamente" jurídica, ocupando-se muitas vezes das discussões sobre o direito natural ou problema da justiça, relacionados à metafísica. No final do século XVIII alguns teóricos evocaram a construção de uma filosofia autenticamente jurídica, levando o projeto de criação de uma filosofia do direito substantiva, superando a abordagem filosófica do direito por meio de uma teoria científica do jurídico denominada Teoria geral do direito, formalista, onde o direito positivo vigente só seria descrito e conhecido por uma ciência jurídica, não podendo se contaminar de elementos metajurídicos.

Merece destaque a contribuição de Hans Kelsen, assegurando a autonomia da ciência jurídica baseada numa distinção entre uma teoria descritiva do fenômeno jurídico positivo, e a filosofia jurídica entendida como uma avaliação deontológica do direito, recusando-se a validade do método filosófico para a ciência jurídica. A abordagem kelseneana concebeu a filosofia jurídica numa abordagem metafísica e a teoria geral do direito numa descrição científica. Essa emancipação científica, influenciada pelo marxismo, reduziria o direito a um simples mecanismo de controle social, de dominação e poder. Despreza-se, por exemplo, que a origem do direito estaria nas lutas pelas liberdades ou que a idéia de justiça seria um sentimento que estaria dentro do espírito humano independentemente de construções legais.

Em pleno espírito de uma época marcada pela falência das relações inter-humanas, nos anos 80, abandonou-se a visão coercitiva do direito, pois os filósofos perceberam os mecanismos de elaboração e aplicação do direito como úteis na compreensão do processo comunicativo. Os juristas perceberam a fragilidade da ciência jurídica na solução de problemas hodiernos que exigiam a formulação de novos quadros conceituais e novas categorias jurídicas, amparados na reflexão filosófica. Seria o caso, por exemplo, quando se fala em bioética, biodireito, cibernética jurídica, etc.

A Teoria Geral do Direito passou a ser entendida como um conceito historicamente determinado, que se vincula no modelo restrito de inteligibilidade do direito, proposto pelo positivismo jurídico. Possui a tarefa de reconstrução do referencial teórico do direito. Os operadores do direito se deparam com os conceitos prontos, construídos pela Teoria Geral do Direito.

As ciências, em sua acepção mais ampla, podem ser classificadas em três modalidades fundamentais:

  • Algumas se limitam a investigar "o que é ". São as chamadas ciências teóricas ou especulativas;
  • Outras procuram orientar as condutas humanas indicando-lhes "como agir". São as ciências éticas ou morais;
  • Finalmente, as ciências técnicas orientam a atividade produtiva ou as realizações externas do homem, indicando-lhe "como fazer".

Neste quadro o Direito pode ser considerado sob a tríplice perspectiva da teoria, técnica e ética. Daí a complexidade da construção de um referencial teórico que englobasse essa tríplice perspectiva.

A idéia de Ciência do Direito tem referencial histórico desde os antigos Romanos, onde se fazia presente através da noção de "jurisprudência". Posteriormente, essa noção de jurisprudência romana daria lugar a Dogmática Jurídica, assim denominada pois sua proposta seria formular e sistematizar os conceitos jurídicos, tornando o direito positivo um verdadeiro "dogma". Na lição de Paulo Nader esta disciplina aborda o direito vigente em determinada sociedade e as questões referentes à sua interpretação e aplicação (NADER:1994,11). A Dogmática Jurídica aceita a norma vigente como ponto de partida inatacável.

São disciplinas dogmáticas, no estudo do direito, a Ciência do Direito Civil, Comercial, Processual, Penal, Tributário, Administrativo, Internacional, Econômico, do Trabalho, etc. Uma disciplina pode ser definida como dogmática na medida em que considera certas premissas, em si e por si arbitrárias ( isto é, resultantes de uma decisão) como vinculantes para o estudo, renunciando assim ao postulado da pesquisa independente. (FERRAZ JR: 1994,48).

Muitos autores utilizam Dogmática Jurídica como sinônimo do termo Teoria Geral do Direito, enquanto outros preferem distinguir os referidos termos, identificando a Teoria Geral do Direito como exame das estruturas formais e dos conceitos jurídicos fundamentaiscomuns a todas as ordens jurídico-positivas cabendo a Dogmática descrever, interpretar e sistematizar as normas de uma ordem jurídica vigente.

A Escola Analítica do Direito distingue a Teoria Geral do Direito, destacando seu discurso legislativo e jurisprudencial, e a Dogmática Jurídica, que seria a análise da própria linguagem da dogmática.

Os juristas procuraram justificar a epistemologia da Dogmática do Direito adotando o modelo do positivismo jurídico, destacando a exigência de neutralidade axiológica e objetividade do conhecimento científico. Para Miguel Reale o cientista do direito já pressupõe a vigência de regras jurídicas. O jurista, enquanto jurista, não pode dar uma definição do direito, porque, no instante que o faz, já se coloca em momento logicamente anterior a sua própria ciência (REALE:1994,34). Em relação a neutralidade axiológica das ciências, Karl Popper difundiu a idéia de que não existe ciência neutra. Para ele a ciência não é uma descrição isenta pois introduzimos nela valores constantemente.

A Teoria Geral do Direito possui seu ancestral mais próximo na filosofia. Possui grande proximidade com a Dogmática Jurídica . A Teoria Geral do Direito, que em outras épocas já foi prisioneira de dogmas ultrapassados, modernamente apresenta uma proposta de visão global do fenômeno jurídico, reconstruindo conceitos e institutos do direito. A moderna Teoria Geral do Direito não deve excluir, por exemplo, a Política, a Sociologia, a Economia, e principalmente a Deontologia e Filosofia, reveladoras da idéia de justiça. Não existe conhecimento isolado, havendo uma interdisciplinariedade do direito e outras ciências. Tal abordagem interdisciplinar entraria em contraste, por exemplo, em relação as propostas de Alf Ross e Hans Kelsen.

Segundo o jurista dinamarquês Alf Ross, representante do "realismo jurídico escandinavo", as palavras "justo" e "injusto" são inteiramente destituídas de sentido para o fim de avaliar-se uma norma legal ou uma ordem jurídica. "A justiça não serve de guia para o legislador".

Ross compartilhava da idéia que apenas as ciências naturais forneceriam o único modelo de cientificidade do conhecimento. Entendia também que no âmbito de um discurso que pretendesse ser rigorosamente científico as proposições não analíticas deveriam ser verificadas por procedimento empírico. O conhecimento científico, por fim, forneceria uma previsão dos eventos futuros que através de uma verificação empírica poderiam ser verificados ou negados. O comportamento das autoridades jurídicas confirmaria ou não a verdade ou falsidade das proposições teórico-descritivas que constituiriam a linguagem da ciência jurídica, a exemplo de quando uma proposição jurídica é acatada numa sentença judicial, ou seja, quando é efetivamente aplicada pelos tribunais. Sua concepção é evidentemente anti-filosófica.

Infeliz foi a atitude de extremo ceticismo em face dos valores finais da ordem jurídica, assumida por certos representantes do positivismo e do realismo jurídico, avultando entre eles Hans Kelsen e Alf Ross. Ambos estes juristas encararam a justiça como um pseudo problema, que é impossível apreender intelegivelmente por qualquer esforço de análise racional.

Hans Kelsen orientava a abordagem científica do direito através da Teoria Pura, centrada na norma. Procurou dar a ciência jurídica uma autonomia libertadora das influências de outras ciências. O método e o objeto deveriam ter enfoque normativo. A conduta humana só seria objeto da ciência jurídica quando constituísse o conteúdo da norma, as relações inter-humanas só seriam objeto da ciência do direito quando fossem relações jurídicas (constituídas por normas). A validade de uma norma estaria legitimada numa norma anterior formalmente válida, possuindo assim, a ordem jurídica, uma estrutura escalonada de diferentes níveis de normas, numa unidade que formava uma relação de dependência em estrutura piramidal, onde no topo estaria a norma fundamental de onde derivou a validade formal das demais. O Positivismo Jurídico veio então, enquanto método de abordagem do direito, pressupor o modelo das ciências positivas operando no âmbito da teoria jurídica, de forma a exlcuir juízos de valor do campo de conhecimento científico, conforme a proposta de Hans Kelsen, exemplo mais ilustrativo desse "positivismo metodológico", evocando as posições da Escola Analítica do Direito que preconizavam uma abordagem formalista restrita a descrição das normas positivas existentes (o direito como ele é de fato).O positivismo não atribui importância a presença da justiça no Direito, porque este se compõe apenas de normas que comportam qualquer conteúdo.

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3. O Enfoque Zetético e o Dogmático

Tércio Ferraz Jr salienta que a Ciência do Direito evolui de modo diverso das demais ciências, não havendo separação entre a história da ciência jurídica e a história do próprio direito. Nas demais ciências o objeto é um dado enquanto na ciência jurídica o objeto é um resultado, que só se realiza numa prática.

Nas demais ciências as definições possuem caráter informativo, enquanto na ciência jurídica possuiriam um sentido informativo (descreve o estado das coisas) combinado com um diretivo (dirige o comportamento). As definições teóricas, no caso de um físico por exemplo, estariam superadas na medida em que o estado das coisas muda, a definição torna-se falsa.. No caso do jurista as definições se superam a medida que deixam de ser guia para a ação. Assim, a ciência jurídica não apenas informa mas conforma o fenômeno de estudo, faz parte dele.

Pode-se, portanto, dar a ciência jurídica um enfoque meramente informativo ou ostensivamente diretivo. FERRAZ JR distingue assim a zetética e a dogmática jurídica. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões, com função informativa. Exemplificando, o enfoque dogmático estaria preocupado com a ação: "... determinados elementos são de antemão subtraídos à dúvida, predominando o lado resposta". (FERRRAZ JR: 1994,40).

O zetético dissolve as opiniões pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. A dogmática é mais fechada, presa a conceitos fixos, conformando problemas à premissas.

No exemplo clássico da premissa "é proibida a entrada de animais", um cego acompanhado de seu cão guia estaria impedido de entrar no recinto, numa solução dogmática dada ao problema. Um outro enfoque poderia levar a um questionamento do problema, concluindo que não seria razoável que tal proibição fosse estendida ao cego, permitindo-lhe assim, entrar no recinto guiado pelo seu cão. Num enfoque dogmático o problema estaria resolvido pela máxima "a lei é a lei", portanto, o cego estaria proibido de entrar no recinto. Para Ricaséns Siches não se pode conseguir numca uma exatidão nem uma evidência inequívoca na solução dos problemas jurídicos. Isto seria impossível em virtude da multiplicidade de elementos heterógenos que intervem na conduta humana, e especialmente nos problemas das relações inter-humanas. O operador do direito deve se valer da lógica do razoável ao aplicar a norma jurídica. Entende Ricaséns Siches que o Direito, como toda obra humana, é circunstancial.

No plano de uma investigação zetética, pode-se dizer que elas são constituídas num conjunto de enunciados transmitindo informações verdadeiras sobre o que existiu, existe ou existirá. Esses enunciados são basicamente constatações. Uma investigação científica de natureza zetética, em conseqüência constrói-se a partir de constatações certas, cuja evidência, em determinada época, nos indica, em alto grau, que elas são verdadeiras (FERRAZ JR: 1994,42).

A zetética deixa de questionar certos enunciados quando verificáveis e comprováveis, a dogmática não questiona suas premissas porque elas foram estabelecidas como inquestionáves como ato de poder. A zetética jurídica, corresponde às disciplinas que, tendo por objeto não apenas o direito, podem, entretanto, tomá-lo como um de seus objetos precípuos.(FERRAZ JR: 1994,47).


4. Considerações Finais

Deve-se questionar a concepção estritamente descritiva e fática do conhecimento científico, especialmente da Ciência Jurídica. A idéia de verdade científica é relativa, pois o saber científico não é intrinsecamente verdadeiro, sendo produto de um acordo de procedimentos e idéias que instruem uma determinada comunidade científica; enquanto produto cultural é um sistema de crenças como outro qualquer.

Atualmente a chamada "filosofia pós-analítica" ou "pós-positivista", apesar de não representar um pensamento unitário, orienta uma concepção "construtivista", no estudo dos limites do conhecimento e que o tornam válido, concebendo o conhecimento cientifico numa construção social coletiva, não uma construção passiva da realidade.

A questão "filosofia ou teoria do direito" encontra-se dissolvida a depender do sentido que lhe é atribuído. Quedando-se vistas nos autores que realizam uma digressão nos estudos do direito, concebem a expressão "filosofia do direito" atrelada as idéias metafísicas sobre direito natural. Nota-se que há uma certa corrente reduzindo a expressão "teoria do direito" aos ideais de unidade e sistematização do conhecimento jurídico, a mera descrição de um sistema jurídico positivo. Estaria assim evidenciado o lugar de uma filosofia jurídica, com a função de questionar político e valorativamente os fundamentos do direito.

Acrescente-se a opinião de Eduardo Rabenhorst, preconizando que a diferença entre filosofia e teoria do direito só pode ser mantida em termos heurísticos e "se despirmos a filosofia do direito de sua roupagem teodicéica e eliminarmos da teoria do direito seu ranço positivista, poderemos construir uma teoria do jurídico que ultrapasse a tradicional censura entre a filosofia do direito dos filósofos e a teoria do direito dos juristas".


BIBLIOGRAFIA

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KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, Porto Alegre, 1986, Editora Sérgio Antonio Fabris, p 509.

MONTORO, Andre Franco. Dados preliminares de lógica jurídica. Edição Restrita, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1976. P 03.

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POPPER, Karl. Lógica da Pesquisa Científica. 9ª Edição, São Paulo, 1993, Editora Cultrix., p 27-36.

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SICHES, Luis Ricasens. Introducción al Estudio del Derecho. 2ª Edição, México, Porrua, 1970, p 277-290.

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Sobre o autor
Cristiano Carrilho S. de Medeiros

advogado em Recife (PE), pós-graduado em Direito do Trabalho e mestre em Direito Privado pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Cristiano Carrilho S.. Filosofia ou Teoria do Direito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23. Acesso em: 22 dez. 2024.

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