5. A onipresença poderosa e avassaladora do software
Desculpe, senhor, mas o sistema não permite!
Para o leitor que ainda não se convenceu do impacto da softwarização e da necessidade de explicitar o direito fundamental processual à transparência tecnológica, pelo qual se pode ganhar certo controle desse novo ente processual – o software – há algumas coisas que podem ser acrescentadas.
O ser humano estava acostumado com a ideia de viver na presença de Deus ao qual, ontologicamente, se vinculava o atributo especial da onipresença. Os operadores processuais, doravante, vão acostumar-se a viver na presença do software, esse ser único, no âmbito do físico-virtual, a merecer o atributo que, até agora, era privilégio divino. Ainda se pode falar apenas em “quase-onipresença”. Mas o “quase” tende a amesquinhar-se e, em tempo muito curto, reclamar-se-á seu desaparecimento e exigir-se-á a onipresença ininterrupta (espacialmente ubíquo e temporalmente contínuo, sem intermitência). E o que os físicos quânticos perseguem para a matéria, com imenso esforço, o software faz, no virtual, sem sofrimento.
Deus opera na quase-imperceptibilidade, praticando uma onipresença incógnita e não massacrante. O software, ao contrário, opera patenteando o operar, numa onipresença vaidosa e exibicionista.
A onipresença divina manifesta-se nas boas coincidências, nas entrelinhas, nas coisas grandiosas. O software também se manifesta nas coincidências, mas não distingue as boas das ruins. E não gosta de entrelinhas. É nas linhas, mesmo, de papéis ou monitores, que costuma se manifestar. Quanto à grandiosidade das coisas, pode-se garantir que o software se faz conhecer, muitas e variadas vezes, pelas coisas pequenas e inconvenientes.
Com quem os atores processuais mais falam, atualmente? Talvez ainda seja com outros atores processuais humanos. Mas esta é uma realidade que se transforma rapidamente. O software tende a ser um interlocutor supremo. Deixando-se o âmbito restrito dos SEPAJS e desaguando para o todo sistêmico pelo qual a Justiça opera e se manifesta (sistemas operacionais - editores - bases de comunicação da internet - SEPAJs), não há dúvida de que um advogado, por exemplo, ou um juiz, já tem o software como o seu grande e contínuo interlocutor.
O computador desligado (sem software) é decorativo. Ligado, ao contrário, ganha vida, com inumeráveis programas em ação. Um ctrl-alt-del permite descobrir a centena (ou quase) de programas que se postam na memória da máquina à disposição do usuário. Chamados de programas, tarefas, aplicativos ou processos, são, todos eles, programas de computador em ação – softwares.
Da leitura do diário oficial à consulta da jurisprudência, da elaboração de uma petição à gravação do PDF respectivo, da comunicação pela intranet à interação com o Tribunal, tudo está mediado pelo software. Às vezes, ele é mais ou menos inofensivo. Em outros, assume ares de “agente”, ditando comportamentos, abrindo e fechando portas, permitindo ou não determinados atos, servindo de pretexto para humanos negarem ou permitirem coisas etc. Quem ainda não recebeu uma resposta do tipo: “desculpe, senhor, mas o sistema não permite!”?
No processo eletrônico, o software tem seu clímax. Processo só existe com ele. Com nomes como Projudi, e-Proc, PJe, ele dita os caminhos, impõe regras, cria obstáculos e facilidades. Acesso à Justiça? Primeiro garanta o acesso ao software. Por trás dele, talvez, se observar o que ele estabelecer, o autor encontrará a Justiça que procura (o órgão). Ele controla o horário, o tamanho da peça, o tempo de sessão, a juntada dos documentos, verifica a assinatura, faz a identificação. Ou se cumprem as determinações ou se morre no caminho. Adeus processo.
Enfim, ele está no processo, ele interfere no processo, ele é muito poderoso no processo, é com ele que os demais operadores mais interagem, ele não “dá jeitinhos” 19, ele é duro, frio, inflexível e incansável. E, pior, ele é um escravo, pois é a cristalização de uma ou algumas vontades. Às vezes, da vontade que alguns dizem que a lei tem, segundo a interpretação que eles mesmos fazem da vontade da lei. Ele também é um escudo por trás do qual se escondem muitos impotentes (ou onipotentes?) do processo. Ele é o SEPAJ, o sistema eletrônico de processamento de ação judicial. É o software.
6. Norma tecnológica: a nova categoria da ciência processual
[...] a interpretação da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual.
A isso se soma um fenômeno implícito de vinculação, para o bem e para o mal. A partir daquele momento, independentemente de onde o processo corra, está definido que, naquele particular aspecto, será conduzido daquela maneira.
Independentemente de controvérsias ideológicas ou políticas a respeito, a discussão do assunto deste trabalho pode avançar para um nível mais fértil com uma tentativa de aproximação conceitual para norma tecnológica. A distinção dessa categoria de norma parece essencial.
Quando se considera, na ciência processual, uma noção mais profunda de emergência, parece indubitável que o processo judicial, sua disciplina e prática experimentaram, e estão experimentando, a ocorrência efetiva do fenômeno. Um novo ente justifica essa constatação: o nascimento da categoria científica norma tecnológica.
Kelsen fundou as raízes da teoria do Direito em torno das normas, fazendo-as o tijolo elementar, atômico, do edifício teórico da ciência do Direito. Sua obra póstuma - teoria geral das normas - consolida essa abordagem. Após as abordagens inovadoras de Herbert Hart (conceito de direito), que principiou uma subespecificação normativa, o ilustre discípulo Ronald Dworkin revolucionou tudo com a incorporação dos princípios. Sua teoria, que deságua na ideia de integridade sistêmica, consolida-se em império do direito. Teorizar o Direito sem a consideração da norma denominada princípio passou a ser não científico.
Pois bem, doravante, a ciência processual só conseguirá dar conta de uma teorização adequada do seu objeto se lançar mão de uma nova categoria normativa: a norma tecnológica. Ela é especial e justifica seu tratamento à parte. Foge ao escopo deste trabalho o exame exaustivo dessa nova categoria teórica. Mas lançam-se, abaixo, algumas ideias que justificam o destaque dado à mesma.
norma tecnológica é a norma que foi levada à codificação, ou seja, a interpretação da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual.
Não é preciso lembrar que a complexidade da interpretação20 levou à estruturação de um ramo específico próprio - a hermenêutica - tão caro a todos os cientistas. Parece que a própria hermenêutica deverá debruçar-se sobre essa nova categoria científica - a norma tecnológica - , notadamente para considerar que o momento de incidência de suas diretrizes interpretativas altera-se profundamente, além de outros efeitos de notável alcance para a vida do Direito.
O conceito de norma tecnológica pode estabelecer um critério para separar os códigos-fonte em dois subconjuntos (normativos e não normativos ou jurídicos e não jurídicos), um dos quais - o dos normativos ou jurídicos - deve ser inerente e essencialmente transparente, aberto, não sujeito à confidencialidade, público. O direito de acesso a esse subconjunto de instruções de programa (funções), em linguagem técnica e não técnica, deve ser erigido a direito fundamental processual.
Outro aspecto que merece destaque, a partir dessa noção, é a aparente ameaça ao vetusto paradigma da escola realista, segundo o qual, nas palavras de Holmes, o Direito é o que os juízes dirão que ele é. Na linha do tempo, há um adiantamento do momento dessa dicção. Ela passa a preceder o caso concreto e situa-se, em termos de situacionalidade, num âmbito quase tão geral e abstrato quanto o do momento da enunciação do texto normativo pelo legislador. Parece sumir, aí, o famoso discurso de adequação, de que se ocupam os adeptos das teorias da argumentação jurídica e que costuma ser entregue ao prudente arbítrio do juiz.
O software pode ser um caminho aberto para a desjuridicionalização (terceirização?) da atividade jurisdicional. Na verdade, quando se faz um software, transforma-se numa estrutura informática (programa) determinada visão interpretativa da norma aplicável naquele momento/ato. Por exemplo: quando a lei fala em “prazo até 24h00”, as 24h00 incluem-se no prazo ou não? Além disso, até que subunidade se deve considerar a contagem (minutos, segundos)? Alguém deve definir a forma como isso entrará no programa. No caso, trata-se da decisão de utilizar, num teste lógico-formal (um if), o sinal < (de menor) ou,então, <= (de menor ou igual). Apenas isso. Se o programador se define por um desses sinais, está “surrupiando” o poder (competência) de alguém que fez concurso, tomou posse e comprometeu-se, sob juramento, a tomar tais decisões sob inspiração de princípios como o da ampla defesa. O mesmo raciocínio é válido para a fixação do tamanho de peças processuais digitalizadas.
Mesmo que haja um “comitê”, como está na moda, para tomar a decisão a respeito da interpretação a ser cristalizada no sistema, percebe-se, primeiro, que há um deslocamento da decisão para fora dos autos (sai das mãos do juiz a decisão a respeito) e, segundo, que talvez a decisão sobre a interpretação a ser aplicada advenha de pessoas que nem sequer são juristas21. Como informa Danielle Keats Citron, reportando-se às constatações feitas na pesquisa em torno dos sistemas de gestão de benefícios, “the computer programmers made new policy by encoding rules that distorted or violated established policy” 22.
A isso se soma um fenômeno implícito de vinculação, para o bem e para o mal. A partir daquele momento, independentemente de onde o processo corra, está definido que, naquele particular aspecto, será conduzido daquela maneira. Evidencia-se aí, com toda força, a rigidez estrutural introduzida pela softwarização. O software é trivial (Heinz Von Foerster23), lógico-formal, binário, causal. Nem de longe se orienta por modelos lógico-modais ou deônticos, como é próprio do jurídico e da análise, caso a caso, daquele particular aspecto nos vários processos.
Uma maior precisão conceitual de norma tecnológica também deixará claro que, neste nível, não há espaço para textura aberta, no sentido de Herbert Hart, para quem comunicar padrões gerais de conduta é essencial para o Direito. Segundo o jusfilósofo, dois veículos são usados nesta comunicação: a legislação e o precedente. Em ambos, existe a ideia de otimização da comunicação pela subsunção de fatos às regras que permite conclusões silogísticas simples. Os teóricos anteriores ignoraram que “[...] há um limite, inerente à linguagem, quanto à orientação que a linguagem pode oferecer.” 24 As técnicas interpretativas reduzem o problema, mas não o eliminam. O formalismo preconizado esboroa-se e, nos silogismos, em muitos casos, “[...] a conclusão constitui na verdade uma escolha, ainda que não possa ser arbitrária ou irracional.” 25 A essa característica das regras, decorrente do fato de terem de ser formuladas com termos gerais, Hart denomina de textura aberta26. A codificação tecnológica da norma exige a eliminação da possibilidade da escolha - exercício da faculdade de julgar - no fechamento do silogismo.
Falando sobre a rigidez estrutural dos códigos (embora não trate de programas de computador), Luhmann faz uma afirmação muito pertinente para o âmbito deste trabalho também: “el código no ofrece ninguna posibilidad de adaptación del sistema a su entorno.” 27 Isso afirmado numa perspectiva operativa da estrutura, não evolutiva, que aliás é a que aqui interessa, pois num horizonte de evolução a adaptação está sempre envolvida.
As lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr.28 são importantes, neste aspecto, também. “ [...] casos há em que o decididor (o juiz, o funcionário administrativo) é convocado a decidir através de avaliações próprias, assumindo papel análogo ao do próprio legislador [...] fala-se, assim, em conceitos indeterminados [...] ”. Na esteira de Hart, diz Ferraz Jr., ainda, que “ [...] toda construção normativa, por se utilizar de linguagem comum mesclada com um jargão técnico, exige interpretação.” Por isso que, “ [...] supõe-se que uma clarificação, por parte do decididor, no momento de aplicação da norma, seja necessária.” Além de somar-se, aí, para o caso do processo eletrônico, a expressão tecnológica da norma, que não se confunde com a técnica referida (jurídica), tem-se de considerar (a) que o momento da aplicação é deslocado no fluxo processual e (b) desaparece aquela interpretação feita à luz da consideração ampla das características do caso concreto.
7. Transparência tecnológica: indo além dos códigos-fonte. A norma tecnológica e as regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena.
As funções jurídico-normativas, por outro lado, serão descritas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e juízes entendam.
[...] abrir os códigos-fonte é apenas a fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que deve se converter em código-fonte.
Em que deve consistir a transparência tecnológica? Ou, considerando-se o dito a respeito da possível conceituação de norma tecnológica, que fatores deveriam estar presentes para se considerar essa norma minimamente válida?
Para alguns significa, de uma forma reducionista, disponibilizar para a sociedade os códigos- fonte do software 29 . Costumam apegar-se à recomendação, feita em lei30, para que se utilize preferencialmente, no desenvolvimento de SEPAJs, os ditos códigos abertos.
Entende-se que isso é útil, mas insuficiente, para a promoção da transparência tecnológica.
Uma política efetiva de transparência tecnológica deveria contemplar ao menos três linhas de ação, que podem ser expressas sob a forma de três regras:
-
a) regra da automação consciente: dar ciência às pessoas, aí incluídos os operadores jurídicos, do alcance que a softwarização tem no processo; todos precisam estar muito cientes do que significa um processo eletrônico, com ênfase para o conhecimento e entendimento de tudo que sai do âmbito decisório de servidores e, principalmente, do magistrado, para se instalar num programa de computador - o SEPAJ;
b) regra da legitimação: esta regra quer a abertura de canais efetivos, institucionalizados, para a participação das pessoas na definição da norma tecnológica, ou seja, da versão interpretada da norma processual que será implantada no SEPAJ (qual interpretação vai prevalecer na incorporação no sistema processual); abrir os códigos-fonte é apenas a fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que se vai converter em código-fonte;
c) regra da transparência plena: abrir os códigos do programa em linguagem jurídico-normativa, não apenas tecnológica. Trata-se de explicitar e publicizar, de todas as maneiras possíveis, em linguajar acessível para juristas e para o povo em geral, as decisões tomadas na alínea “b”; a transparência não deve estar voltada para a detecção de erros de codificação do programa, conforme sugere a chamada lei de Linus31 ; se o software é uma “máquina trivial” (Foerster), determinada e causal, (dadas certas entradas, sabe-se exatamente que resultados produzirá!), é importante que as pessoas saibam que a função informática terá tal comportamento e não outro. As funções puramente tecnológicas, não jurídico-normativas, não precisam ser expostas. As funções jurídico-normativas, ou com alcance jurídico-normativo, por outro lado, serão descritas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e juízes entendam, sem prejuízo da exibição em linguagem técnica, mesmo que o sistema, como um todo, seja proprietário.
Tais medidas, entre outras que venham a ser implementadas, atenderão ao direito fundamental processual à transparência tecnológica.
Outras implicações daí advindas são que:
(i) partes dos códigos-fonte dos sistemas poderão ser mantidas sob confidencialidade, se interesses relevantes tornarem necessária essa confidencialidade; mas sempre se garantirá às pessoas, em linguagem adequada, tecnológica e jurídico-normativa, o acesso pleno e irrestrito às normas tecnológicas (normas jurídicas em expressão tecnológica);
(ii) todos - inclusive e principalmente os operadores jurídicos sem conhecimento técnico - poderão, a todo tempo, tomar ciência, criticar e validar os resultados alcançados pelas funções informáticas do sistema que tenham alcance jurídico e
(iii) o comportamento do sistema estará legitimado pela democratização das interpretações normativas que vigerão para todos, de forma uniforme.
Por exemplo, em relação a (i), acima, eventuais dificuldades de gestão e/ou financeiras e/ou contratuais (caso de sistemas processuais de terceiros) do poder judiciário poderiam lastrear decisões de confidencialidade de parte dos códigos-fonte (bibliotecas específicas), tratando-se de uma decisão situada no âmbito da discricionaridade administrativa.
Resumindo, então, pensa-se que, na softwarização, a norma jurídica, na acepção kelseniana, de “sentido em que se toma o texto normativo” 32, é que deve ser claramente enunciada. As pessoas devem poder participar dos processos de fixação desse “sentido extraído do texto” (por mecanismos que legitimem sua fixação), as pessoas devem poder saber, com antecedência, que tais decisões serão automatizadas por software, no processo, e, além disso, a descrição da função tecnológica que vincula, trivialmente (no sentido foersteriano), entradas e saídas, deve, esta sim, estar sempre disponível amplamente para os interessados (publicidade do processo).