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Os crimes contra a liberdade religiosa e contra o respeito aos mortos na Itália e na Alemanha

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Enquanto na Itália, em razão do histórico fascista, há uma tutela exagerada dos crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos, inclusive por parte da doutrina, na Alemanha, a sua discussão é, invariavelmente, relegada às discussões sobre a teoria do bem jurídico que, apesar de profícuas, não são suficientes para um tema de tamanha importância.

Resumo: Muito mais do que uma curiosidade científica, o estudo do Direito Comparado possibilita uma visão analítica dos ordenamentos alienígenas, permitindo uma hermenêutica mais acurada do próprio ordenamento do pesquisador. Nos crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos, a análise comparada dos ordenamentos da Itália e da Alemanha permite um estudo bastante proveitoso das diferenças jurídicas, culturais e históricas no tratamento de questões tão sensíveis e que contribuem para a interpretação dos crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos de nosso ordenamento.

Sumário: 1. Introdução 2. Os crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos no Direito italiano 2.1. Introdução 2.2. Dos crimes contra a confissão religiosa 2.2.1. Vilipêndio à religião do Estado 2.2.2. Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio à pessoa 2.2.2.1. A liberdade de expressão religiosa como causa de exclusão da tipicidade, da ilicitude ou da culpabilidade 2.2.3. Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio ou dano à coisa 2.2.4. Perturbação de funções religiosas de culto de uma confissão religiosa 2.2.5. Crimes contra os cultos permitidos pelo Estado 2.3. Crimes contra o respeito aos mortos 2.3.1. Violação de sepultura 2.3.2. Vilipêndio de tumba 2.3.3. Perturbação de funeral ou de serviço funerário 2.3.4. Vilipêndio de cadáver 2.3.5. Destruição, supressão ou subtração de cadáver 2.3.6. Ocultação de cadáver 2.3.7. Uso ilegítimo de cadáver 3. Os crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos no Direito alemão 3.1. Introdução 3.2. Entre sociologismos e constitucionalismos: a tutela da liberdade religiosa na teoria alemã do bem jurídico-penal 3.2.1. Concepções sociológicas 3.2.2. Concepções constitucionalistas (de caráter geral) 3.3. Crimes relacionados à religião e à concepção de mundo 3.3.1. Vilipêndio à confissão, às associações religiosas e às associações ideológicas 3.3.2. Perturbação de exercício de culto 3.3.3. Perturbação de cerimônia funerária 3.3.4. Perturbação ao descanso dos mortos 4. Apreciação crítica 5. Referência bibliográfica.


1. INTRODUÇÃO

Estudar o ordenamento estrangeiro nunca é uma tarefa fácil: cada país tem a sua própria cultura, sua história, seu direito, e, o estudo do Direito Comparado é, antes de tudo, o estudo da cultura de um povo através do seu reflexo no direito e na Ciência Jurídica.

Não se trata de dizer se um “direito” é melhor do que outro, nem mesmo uma busca pela “aproximação dos povos”, mas um instrumento da hermenêutica e da técnica legislativa, que busca, através do estudo dos ordenamentos alienígenas, compreender e aperfeiçoar o ordenamento pátrio.

Com essas premissas, estudaremos no presente trabalho os crimes contra a liberdade religiosa e o respeito aos mortos na Itália e na Alemanha.

Os dois ordenamentos não poderiam ser mais distintos, a Itália, teve sua legislação fortemente influenciada pelo fascismo, sua doutrina, pela alemã, através da importação de institutos inconcebíveis ao seu ordenamento; e, a Alemanha, detentora de uma legislação dita moderna, progressista, onde a doutrina analisa com tanta propriedade a teoria do bem jurídico, que faz parecer que este seja o único objeto do Direito Penal.

Contudo, parece que uma coisa é certa: seja no Brasil, na Itália ou na Alemanha, os crimes contra a liberdade religiosa sempre são precedidos, topograficamente, pelos crimes contra o respeito aos mortos, numa simbiose entre vida, morte e religião.


2. OS CRIMES ONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA E O RESPEITO AOS MORTOS NO DIREITO ITALIANO

2.1. Introdução

O Título IV, do Capítulo II, do Código Penal italiano tutela os “crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos”[1]. Segundo FIANDACA e MUSCO, as disposições atuais do Código representam “a profunda mudança político-ideológica ocorrida com o advento da ditadura fascista e com a subsequente passagem de um Estado agnóstico a um Estado católico que, cristalizado no Pacto lateranense, inverte bruscamente e radicalmente as opções político-criminais do Código Zanardelli – fundada sob a proteção da liberdade religiosa individual – e implanta um sistema de tutela baseado na defesa da religião do Estado enquanto tal, e dos seus cultos, enquanto tais”[2].

A concepção de tutela da religião do Estado implantada pelo Código Rocco (1930) quebrou a continuidade histórica da tutela do sentimento religioso individual, modelo adotado pelo Direito Penal italiano desde o início do séc. XVIII, nos Códigos criminais dos estados independentes que compunham a península italiana, e, posteriormente, no Código Zanardelli, datado de 1889.

A radical transformação se deu em razão da celebração do Pacto lateranense, celebrado em 11 de fevereiro de 1929, pelo Estado fascista (Reino da Itália) e pela Igreja Católica, onde foi estabelecido um acordo de cooperação mútua, e a religião católica foi declarada como única do Estado italiano. Contudo, com a redemocratização da Itália e com a promulgação da Constituição Italiana de 1946, iniciou-se uma acirrada discussão sobre a constitucionalidade de tais dispositivos.

Em 25 de março de 1985, com a publicação da Lei n.º 121, que em seu art. 1º “considera não mais em vigor os princípios dispostos no Pacto lateranense da religião católica como única religião do Estado italiano”, os movimentos pela inconstitucionalidade ganharam grande força.

No ano de 1995, a Corte Constitucional italiana, através da sentença 440/95[3], deu o primeiro passo na direção de modificação dos crimes em comento, com a declaração de inconstitucionalidade do crime de “bestemmia” (blasfêmia), uma modalidade de injúria contra a Igreja Católica, disciplinada no art. 725 do Código Penal italiano. Apesar do delito de “bestemmia” não ser objeto de nosso comentário por se tratar de uma espécie de contravenção penal, é certo que esta primeira decisão serviu de fundamento para as demais.

Em 2000, através da sentença n.º 508/2000, a Corte Constitucional italiana declarou a declarou a inconstitucionalidade do art. 402 do Código Penal italiano (vilipêndio da religião do Estado), principal símbolo do ideário de crimes contra o sentimento religioso do fascismo. Contudo, outros artigos permaneceram fazendo referência à confissão religiosa do Estado.

Finalmente, em 2005, através da sentença 168/2005, a Corte Constitucional italiana declarou inconstitucionais as expressões que faziam referência “à religião ou ao culto do Estado” nos crimes contra o sentimento religioso, e permitiu que, em 2006, o legislador, através da lei n.º 85, de 24 de fevereiro de 2006, alterasse substancialmente as disposições penais dos crimes contra a confissão religiosa.

2.2. Dos crimes contra a confissão religiosa

No capítulo I, do Título IV, o Código Penal italiano disciplina os “crimes contra a confissão religiosa”[4]. Esse capítulo sofreu, durante sua existência, diversas tentativas de declaração de inconstitucionalidade, resultando, como dissemos, na declaração de inconstitucionalidade do art. 402 do Código (vilipêndio da religião do Estado), e na elaboração da Lei n.º 85/2006.

Por questões didáticas, apresentaremos a redação atual de cada um dos dispositivos e, nos comentários, discorreremos sobre aquilo que foi alterado. No mais, entendemos relevante nos debruçarmos, ainda que brevemente, sobre o art. 402, mesmo depois de declarada sua inconstitucionalidade, em razão da sua significação histórica.

2.2.1 Vilipêndio à religião do Estado

A norma do art. 402 do Código Penal italiano, sob a rubrica “vilipendio della religione dello Stato” (vilipêndio da religião do Estado), antes de ser declarada inconstitucional, disciplinava a conduta daquele que atentava contra a religião do Estado, através do seguinte enunciado:

Art. 402 (Vilipêndio da religião do Estado): Aquele que publicamente vilipendia a religião do Estado é punido com reclusão de até um ano.[5]

Conforme anotam FIANDACA e MUSCO[6], a introdução de um enunciado normativo disciplinando o crime de vilipêndio constituiu uma novidade do Código Rocco, representando uma escolha simbólica e emblemática do legislador fascista em matéria de crimes religiosos: “representa, acima de qualquer princípio, a codificação autoritária em detrimento à legislação liberal do Código Zanardelli”[7].

Evidentemente, o crime tutelava a religião católica, isto é, o conjunto de princípios ético-dogmáticos que representam esta concepção religiosa. Contudo, como essa construção era severamente acoimada de inconstitucional, nos anos de 1970, a Corte Constitucional, interpretando o texto legal, entendeu que o bem jurídico era, na verdade, o sentimento religioso da maioria dos italianos, isto é, dos católicos[8].

Contudo, tal construção não se sustentava em razão do disposto no art. 8º da Constituição da República italiana, que dispõe sobre a liberdade de confissão religiosa, foi declarada inconstitucional através da sentença n.º 508/2000 da Corte Constitucional.

A conduta incriminada consiste no vilipêndio à religião do Estado. Contudo, o verbo vilipendiar, na legislação italiana, apesar de se tratar de um termo equívoco, com forte carga normativa e cultural, é empregado de forma substancialmente similar daquela empregada em nosso ordenamento: um conceito normativo-social, com o significado de desprezar, zombar[9].

O objeto jurídico, como dito, é a religião do Estado, no caso a religião católica. No mais, segundo a doutrina dominante, o vilipêndio deveria se realizado publicamente, já que o vilipêndio “privado” não apresentaria força dissuasiva e, por isto, não ofenderia o bem jurídico.

Por fim, o dolo para a configuração do crime era genérico, a consumação ocorria no momento que se manifestava o vilipêndio e a configuração da tentativa era controversa, sendo que a posição que aceitava tal possibilidade tinha alguma prevalência.

2.2.2. Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio à pessoa

O Código Penal italiano pune a “ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio à pessoa” através do enunciado da norma do art. 403:

Art. 403. (Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio à pessoa): Aquele que publicamente ofende uma confissão religiosa mediante vilipêndio de quem a professa, é punido com multa de 1.000 a 5.000 euros.

Aplica-se multa de 2.000 a 6.000 euros a quem ofende uma confissão religiosa mediante vilipêndio de um ministro do culto.[10]

A Lei n.º 85/06 além de modificar as penas que, de privativas de liberdade (que chegavam a três anos), passaram a de multa, substitui as expressões “religião do Estado” e “ministro de culto católico” por “confissão religiosa” e “ministro de culto”, atendendo às disposições constitucionais vigentes naquele país.

Muito se discute sobre o bem jurídico protegido pela norma. Para alguns, a norma tutela a integridade pessoal dos fiéis e dos ministros religiosos e, para outros, a religião, em sua acepção de civilidade. Uma terceira corrente, temperada, afirma que o bem jurídico é tanto a religião quanto a integridade do ministro ou do fiel.

Uma corrente mais moderna, fundada no Direito Penal alemão, especialmente na norma do § 166 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch – StGB), prega que o bem jurídico seria a paz pública[11]. Contudo, é de se notar que a redação do § 166 do StGB faz menção expressa à necessidade de perturbação da paz pública, enquanto, no tipo em comento, ela é extraída mediante interpretação.

Numa interpretação bastante garantista, a perturbação da paz pública, mesmo que considerada como bem jurídico secundário, limitaria bastante a amplitude do tipo, na medida em que, em muitos casos, o vilipêndio não causaria uma comoção tão grande a ponto de afetar a segurança e a tranquilidade dos indivíduos. Contudo, a nosso ver, na qualidade de intérpretes externos ao ordenamento italiano, a tutela penal não poderia recair sobre a paz pública, mesmo diante de suas evidentes vantagens limitadoras.

Com relação à configuração do crime, o enunciado da norma do art. 403 do Código Penal italiano prevê duas hipóteses distintas de crime: a primeira, na primeira parte, na qual a ofensa contra a religião deve se dar publicamente mediante um vilipêndio contra quem a professa; a outra, na segunda parte, a ofensa se realiza mediante o vilipêndio de um ministro de culto religioso, isto é, da pessoa que celebra o culto[12].

A partir disso podemos extrair duas considerações: a primeira, de que a ofensa, quando praticada contra quem professa a religião, deve se praticada contra um indivíduo determinado, e não contra uma coletividade (notadamente, composta de indivíduos indeterminados, porém determináveis); e a segunda, que se deve considerar como “ministro religioso” aquele que exerce uma função essencial (orgânica) na atividade do culto religioso.

Com relação aos demais elementos do crime, remetemos os leitores aos comentários do art. 402.

2.2.2.1. A liberdade de expressão religiosa como causa de exclusão da tipicidade, da ilicitude ou da culpabilidade

Um ponto controvertido que merece destaque é a possibilidade da “liberdade religiosa” excluir a culpabilidade do crime do art. 403 (e dos demais crimes contra o sentimento religioso).

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Com a efervescência cultural e religiosa dos fluxos migratórios ocorridos na Europa a partir da década de 1950 e, especialmente, nos anos de 1970, fizeram com que sobre o Direito Penal recaísse o fardo de punir algumas condutas, de caráter religioso, hipoteticamente tipificadas pelo ordenamento.

Com isso, a doutrina passou a discutir sobre a possibilidade da cultura (neste contexto, a religião também pode ser considerada uma manifestação cultural) legitimar tais condutas. De plano, a doutrina refuta a possibilidade de exclusão da tipicidade, pois “o conflito motivacional de fundamento religioso não poderia constituir causa de exclusão da tipicidade ainda que por força do reconhecimento de algo similar à cultural defense, pois poderia contrariar o princípio da igualdade, na medida em que só poderia ser invocada apenas por sujeitos pertencentes a uma minoria cultural e não, ao contrário, por todos os destinatários da norma penal”[13].

Da mesma forma, a doutrina refuta a possibilidade de a liberdade religiosa ser tratada como uma causa de exclusão da ilicitude, como um exercício regular de direito. A liberdade religiosa, utilizada por alguns para justificar comportamentos ilícitos, dificilmente poderá ser entendida como a eximente do exercício regular de um direito[14], porém, em alguns casos quando a ofensa fora considerada muito leve, parte doutrina entende ser possível.

Apesar das negativas com relação à exclusão da tipicidade e da ilicitude, nas últimas décadas se desenvolveu uma teoria da coculpabilidade, fundada, em parte, na cultural defense, e que prega a corresponsabilidade do Estado pela formação deficiente do indivíduo ou a irresponsabilidade do indivíduo em razão da sua formação cultural ou religiosa.

Segundo a doutrina majoritária, é muito difícil se falar de uma exclusão da culpabilidade em razão de questões culturais ou religiosas, exceto nos casos em que o agente, em razão do seu repertório cultural ou religioso, atuou em erro (de tipo, de proibição, etc.)[15]. Contudo, a doutrina é uníssona no sentido de que as questões culturais (e, consequentemente, religiosas) devem ser avaliadas no momento de aplicação da pena.

Como é notório, a Itália adota um sistema de aplicação de pena bifásico, onde existe uma grande discricionariedade do juiz, conforme a disposição expressa do art. 132. Para efetivar esse poder discricionário, deve o juiz debruçar-se sobre as condições elencadas no enunciado da norma do art. 133:

Art. 133. (Gravidade do crime: avaliação dos efeitos da pena): No exercício do poder discricionário indicado no artigo anterior, o juiz deve levar em conta a gravidade do crime, através da análise:

1) da natureza, da espécie, dos meios, do objeto, do tempo e do lugar e de outras modalidades de ações;

2) da gravidade do dano ou do perigo causado à pessoa ofendida pelo crime;

3) da intensidade do dolo e da gradação da culpa.

O juiz deve levar em conta, igualmente, a capacidade de delinquir do agente, através da análise:

1) dos motivos que o levaram a delinquir e do caráter do réu;

2) dos antecedentes penais e judiciários e, em geral, da conduta e da vida do réu, antecedentes ao crime;

3) da conduta contemporânea e subsequente do réu;

4) das condições de vida individuais, familiares e sociais do réu.[16][17]

Para BASILE[18], no crime culturalmente motivado, os motivos que levaram o réu a delinquir comprovam suas raízes na cultura, na mentalidade de origem do sujeito. Com isso, através da ponderação dos motivos de delinquir tratados no art. 133 do CP [italiano], o juiz poderá, portanto, avaliar corretamente a “motivação cultural”.

Ainda, para outra parte da doutrina, a atenuante dos motivos de particular valor moral e social (art. 62, inc. I, do CP) poderia, em teoria, ser aplicada até aos mais graves delitos, mas não aos delitos políticos e de terrorismo cometidos com finalidade religiosa[19], onde tal motivação, capaz de conduzir à atenuação, seria suplantada pela própria conduta delitiva.

Apesar da complexidade do tema, parece-nos que a doutrina italiana trilha um caminho certo, na medida em que busca adaptar os rigores do Direito Penal ao multiculturalismo tão presente naquele país. No Brasil, por outro lado, parece que ainda engatinhamos no tema, que é visto por muitos como um tabu, já que justificaria, em tese, crimes cometidos por questões econômicas, em razão da deficitária assistência do Estado.

2.2.3. Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio ou dano à coisa

Um dos crimes que sofreu maior alteração com a reforma introduzida pela Lei n.º 85/06 foi o crime de “ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio ou dano a coisa”, que teve sua estrutura bastante alterada. A primeira parte remanesceu quase intacta, sendo retirada apenas a expressão “religião do Estado”; já a segunda, que antes tutela a ofensa praticada pelo fato ocorrido em função religiosa (que, agora, faz parte da primeira), passou a ser um tipo derivado, uma qualificadora, incriminando aquele que, muito mais do que ofender, efetivamente destrói os objetos de caráter religioso:

Art. 404. (Ofensa a uma confissão religiosa mediante vilipêndio ou dano à coisa). Aquele que, em local destinado ao culto, ou em local público ou aberto ao público, ofendendo uma confissão religiosa, vilipendia com expressões injuriosas coisa que é objeto de culto, ou são consagradas ao culto, ou são destinadas necessariamente ao exercício do culto, ou comete o crime em razão de funções religiosas, realizada em local privado para celebração do culto, é punido com pena de multa de 1.000 a 5.000 euros.

Aquele que publicamente e intencionalmente destrói, desperdiça, deteriora, torna inservível ou suja coisa que é objeto de culto, ou são consagradas ao culto, ou são destinadas necessariamente ao exercício do culto, é punido com reclusão de até dois anos.[20]

Com relação ao bem jurídico tutelado, cabem os mesmos comentários elaborados para o artigo anterior, com o acréscimo de que, aqui, existe a menção expressa à publicidade da ofensa, assim como no § 166 do StGB, sendo, então, verossímil dizer que, neste caso, a tutela penal recairia sobre a paz pública, assim como quer MANTOVANI[21].

As ofensas devem ocorrer em face dos diversos objetos religiosos, que são muito bem definidos pela doutrina:

a) “coisa que é objeto e culto”: são aqueles objetos que o fiel venera, como as imagens sacras, as relíquias, o crucifixo, a hóstia consagrada, a estátua, etc.;

b) “coisa consagrada ao culto”: são aquelas consagradas pelo bispo, ou benzidas pelo sacerdote, como igreja, altar, cálice, ostensório, aspersório, incensório, tabernáculo, etc.;

c) “coisa necessariamente destinada ao culto”: são todos os objetos, não benzidos, sem o qual é impossível desenvolver a atividade litúrgica ou realizar os ritos sacros (paramentos, velas, flâmulas, etc.).[22]

O delito, nas duas formas, há de ser praticado publicamente, pois, caso contrário, não haverá ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma, seja qual for.

Na primeira parte, tutela-se de maneira menos rigorosa a ofensa perpetrada mediante expressões injuriosas, vilipendiadoras, que ofendam os objetos destinados ao culto. Na segunda parte, é a tutelada a conduta daquele que expressa seu escárnio ou intolerância através de ações físicas, destruindo o objeto religioso.

2.2.4. Perturbação de funções religiosas do culto de uma confissão religiosa

A norma que sofreu menos alterações com a promulgação da Lei n.º 85/06 foi, certamente, a do art. 405 do Código Penal italiano. Da sua redação original, apenas a expressão “do culto católico” foi substituída por “culto”, e o artigo passou a ter a seguinte redação:

Art. 405. (Perturbação de funções religiosas do culto de uma confissão religiosa): Aquele que impede ou perturba o exercício de atos, cerimônias ou práticas religiosas do culto de uma confissão religiosa, os quais ocorrem com a assistência de um ministro do culto ou em local destinado ao culto, ou em local público ou aberto ao público, é punido com reclusão de até dois anos.

Se ocorrer violência à pessoa ou ameaça, se aplica a reclusão de um a três anos.[23]

O bem tutelado pelo crime é a liberdade de culto, não em seu sentido individual, pessoal, de possibilidade de frequentar ou não o culto, mas em seu aspecto coletivo, público, de se permitir que o culto seja realizado sem interferências ou perturbações deletérias[24].

A conduta tutelada consiste em, alternativamente, impedir ou perturbar a cerimônia ou prática religiosa de qualquer culto, seja ele católico ou não. Conforme anota a doutrina, “há ‘impedimento’ quando se obstaculiza eficazmente a preparação, o início ou o prosseguimento do ato, ou quando se determina a sua cessação; há, ao contrário, ‘turbamento’ quando se altera, se impede o regular funcionamento do ato, etc., no seu aspecto temporal ou formal”[25].

O tipo apresenta, ainda, três elementos normativos: ato, cerimônia e prática religiosa. O ato são as funções essenciais ao culto, católico ou não (v.g. sacramento, no culto católico); a cerimônia é o ato formalizado, com características decorativas e complementares ao ato (religioso), tal qual um procissão ou cântico; já as práticas religiosas são os ritos observados pelos fiéis, orientados ou não pelo ministro religioso. Aqui, cabe ressaltar que, apesar da forte ligação de tais termos com o Direito Canônico, de onde, inclusive são extraídas suas definições, devem ser, na atualidade, estendidos a todas as religiões.

As mesmas reflexões realizadas quando estudamos o art. 403, sobre a possibilidade de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade no caso concreto em razão do exercício do direito de liberdade religiosa, são cabíveis aqui.

No mais, o tipo trás ainda uma figura qualificada na sua segunda parte, com uma pena consideravelmente mais elevada no caso da perturbação ou do vilipêndio resultar em violência à pessoa ou ameaça. No caso, é interessante notar que, em tese, não seria concebível pensar em exercício regular do direito de liberdade religiosa, vez que, tal liberdade não poderia ser motivo de exclusão da ilicitude quando ocorre um desforço físico, contudo, os fatores religiosos poderiam servir, eventualmente, como causa de exclusão da culpabilidade, caso o sujeito incorresse em erro.

2.2.5. Crimes contra os cultos permitidos pelo Estado

A Lei n.º 85/06 revogou o artigo 406 do Código Penal italiano, que dispunha sobre os crimes cometidos contra os cultos permitidos pelo Estado, através da seguinte redação:

Art. 406. (Crimes contra os cultos permitidos pelo Estado): aquele que comete um dos fatos previstos no artigo 403, 404 e 405 contra um culto permitido pelo Estado é punido com as penas dos artigos referidos, contudo a pena será diminuída.[26]

O enunciado da norma do artigo previa a possibilidade de extensão das normas penais contidas nos arts. 403, 404 e 405 aos que cometessem crimes contra o sentimento religioso daqueles que professavam religiões não católicas (religião do Estado), mas aceitas pelo Estado. O termo italiano “ammesso” significa, na melhor tradução, aquele que é reconhecido, e, a sua utilização na norma demonstra que o legislador de 1930, eivado pelos ideais fascistas, considerou que alguns cultos não católicos não apresentavam perigo à ordem pública e deveriam ser permitidos e, inclusive, incriminada a sua perturbação.

Contudo, com a promulgação da Constituição de 1946 o artigo caiu em forte desuso, já que não havia mais a distinção entre cultos autorizados ou não autorizados, e, com o advento da referida Lei que reformou toda a sistemática dos crimes contra o sentimento religioso, o dispositivo foi extirpado do ordenamento.

2.3. Crimes contra o respeito aos mortos

O capítulo II, do Título IV, do Código Penal italiano “é dedicado à tutela do respeito aos mortos, ‘ um dos mais antigos, profundos e humanos sentimentos de caráter quase instintivo, tanto que se impõe, geralmente, aos seres mais insensíveis e malvados’. Mas, na realidade, a objetividade jurídica do ‘respeito aos mortos’ não é hoje tão incontroversa”[27].

Numa análise histórica mais atenta, a ilicitude da conduta que atentasse contra o sentimento de respeito aos mortos, na Itália, era tida quase como um direito natural. Não sem razão, pois a cultura italiana fortemente católica e, também, vinculada aquela ideia romana de culto aos antepassados, sempre buscou a preservação dos vínculos afetivos entre os vivos e os mortos.

Contudo, atualmente, muitos doutrinadores têm questionado a capacidade dos sentimentos serem considerados bem jurídico-penais. ROXIN[28], cujo pensamento será por nós brevemente analisado ao tratarmos do Direito Penal alemão, discorre sobre tal impossibilidade. Na doutrina italiana, FINDACA e MUSCO[29] e MANTOVANI[30], questionam a legitimidade do sentimento como bem jurídico-penal. O último, inclusive, propõe, como já dissemos, que assim como nos artigos do Código Penal alemão (StGB), o bem jurídico tutelado seria, na verdade, a paz pública.

Em razão das peculiaridades de cada um dos tipos, discutiremos mais pormenorizadamente o bem jurídico-penal nos comentários.

2.3.1. Violação de sepultura

O primeiro crime tutelado pelo capítulo é a violação de sepultura, disciplinado pelo enunciado da norma do art. 407 do Código Penal italiano.

Art. 407. (Violação de sepultura): Aquele que viola uma tumba, uma sepultura ou uma urna é punido com reclusão de um a cinco anos.[31]

O bem jurídico-penal tutelado pela conduta, além do questionável sentimento de respeito aos mortos, é, também, a saúde pública, já que, a inumação irregular de cadáveres pode dar causa a problemas sanitários.

O verbo violar, no tipo em comento, possui, segundo a doutrina, um significado normativo-social: todo e qualquer comportamento que a comunidade considera lesiva à paz dos mortos[32], como abrir o caixão, retirar a tampa da sepultura, etc. É o mesmo sentido apresentado pelo primeiro verbo do crime do art. 210 do Código Penal brasileiro (“violar”), porém bastante diferente do segundo (“profanar”), que corresponderia ao tipo de vilipêndio de tumba no Código Penal italiano, que será comentado a seguir.

Assim, como no nosso ordenamento, só há violação se a ação é ilegítima, pois, se autorizada por lei ou pela autoridade competente, não haverá que se falar em crime.

A conduta deve recair sobre uma tumba, uma sepultura ou uma urna, que são assim definidas pela doutrina:

 “Tumba” e “sepultura” são consideradas sinônimos para fins de tutela penal e tidas como locais adequados para dar asilo ou repouso aos cadáveres. Se distinguem, segundo alguns, pelo fato de que a tumba é uma sepultura elevada do solo (do grego tumbos), e a sepultura é escavado na terra (do latim sepelire, soterrar); e, para outros, porque a primeira, essencialmente, é mais majestosa que a segunda. (...). “Urna funerária” é a caixa ou vaso que guarda as cinzas dos cadáveres submetidos ao processo de exumação.[33]

Nosso ordenamento, atento ao fato de que tumba e sepultura são sinônimos, previu apenas a violação da última, assim como da urna funerária. Contudo, é certo que tal retórica representa a eloquência que o regime fascista, notadamente populista, deu ao seu Código Penal.

No mais, o crime é doloso, se consuma no momento em que ocorre a violação, e é passível de tentativa.

2.3.2. Vilipêndio de tumba

Ao invés da síntese adotada pelo legislador penal brasileiro, ao elaborar o tipo de “violação de sepultura” (art. 210 do CP), o legislador italiano tipificou o vilipêndio de tumba[34] em uma norma própria:

Art. 408. (Vilipêndio de tumba): Aquele que, em cemitérios ou em outros locais de sepultamento, comete vilipêndio de tumba, sepultura ou urna, ou de coisas destinadas ao culto dos mortos, ou à defesa ou ornamento dos cemitérios, é punido com reclusão de seis meses a três anos.[35]

A conduta incriminada se assemelha ao verbo “profanar” do art. 210 de nosso Código, na medida em que o termo vilipêndio tem o mesmo significado daquele apresentado pela inconstitucional norma do art. 402 do Código Penal italiano: desprezar, zombar, etc.

A conduta pode recair tanto sobre o próprio sepulcro (ou urna), quanto sobre outros objetos destinados ao culto do falecido, ou à defesa ou ao ornamento do cemitério. “Os primeiros são aquelas coisas que servem para manter viva a memória do falecido, como cruzes, estátuas, lápides, etc.; os segundos, aqueles que servem para a proteção do cemitério, isto é, do local destinado à disposição dos restos humanos”[36].

2.3.3. Perturbação de funeral ou de serviço funerário

O art. 409 do Código Penal italiano disciplina o crime de “perturbação de funeral ou de serviço funerário”, com o seguinte enunciado:

Art. 409. (Perturbação de funeral ou de serviço funerário): Aquele que, fora dos casos previstos no artigo 405, impede ou perturba funeral ou serviço funerário é punido com reclusão de até um ano.[37]

O tipo incriminado é a perturbação ou o impedimento e, nesta medida, o artigo italiano se assemelha muito ao crime de “impedimento ou perturbação de cerimônia funerária” disciplinado pela norma do art. 209 do nosso Código Penal. Contudo, enquanto no Brasil a conduta recaí sobre o enterro (“transporte do corpo do falecido”[38]) ou cerimônia funerária (“ato religioso ou civil, em homenagem ao morto”[39]), na Itália, deve recair sobre o funeral ou sobre o serviço funerário, que são assim definidos:

“Funeral” (do latim funus, morte ou da funalia, cordas encharcadas de alcatrão que vinham enfrente ao morto, ou de fumus, por indicar a combustão do cadáver) é o ato que se celebra em honra ao defunto, antes do transporte do corpo ao local de sepultamento.

“Serviço fúnebre” são todas as outras cerimônias inerentes ao falecimento, diversas do funeral, como a embalsamação, cura do corpo, cremação. Deve se tratar de um funeral ou de um serviço fúnebre de natureza civil ou próprio de um culto diverso do católico, em razão da cláusula de reserva “fora dos casos previstos no art. 405 do Código Penal”.[40]

Interessante notar que, com a nova redação do art. 409, que instituiu o enunciado complementar (ao enunciado principal do tipo) “fora dos casos previstos no art. 405”, o crime em comento só poderá se perfazer caso a conduta ocorra em cerimônia funerária de caráter civil (não religioso) já que, caso exista qualquer conteúdo religioso no ato, a conduta recairá no referido art. 405 do Código Penal italiano.

2.3.4. Vilipêndio de cadáver

Na norma do art. 410 do Código Penal italiano é disciplinado o crime de vilipêndio de cadáver:

Art. 410. (Vilipêndio de cadáver): Aquele que comete ato de vilipêndio sobre um cadáver ou sobre suas cinzas é punido com reclusão de um a três anos.

Se o culpado deturpa ou mutila o cadáver, ou comete, ainda, sobre ele atos de brutalidade ou de obscenidade, é punido com reclusão de três a seis anos.[41]

A conduta incriminada é a de vilipendiar, já comentada por nós, e se assemelha ao crime homônimo disciplinado pela norma do art. 212 do Código Penal brasileiro.

Na Itália, assim como no Brasil[42], se discutiu se o natimorto constituiria ou não um cadáver, tendo prevalecido a corrente afirmativa, que considera o feto com razoável desenvolvimento, ainda que natimorto, um cadáver. Outra questão bastante debatida é se os esqueletos constituem ou não cadáver, havendo alguma prevalência da tese afirmativa.

O tipo prevê ainda uma causa de aumento de pena no caso de mutilação ou deturpação do cadáver, ou em caso de atos de brutalidade ou obscenidade. A mutilação é a retirada de algum membro ou parte do corpo sem vida, a deturpação é qualquer outra alteração, que não caracterize mutilação.

Os atos de brutalidade são a prática de condutas “violentas”, mas que não causem mutilações ou a deturpação do corpo (v.g. chutar o cadáver), e as condutas obscenas são aquelas que têm caráter indecente ou grosseiro, podendo, inclusive, ser condutas de caráter lascivo.

2.3.5. Destruição, supressão ou subtração de cadáver

No extenso tipo do art. 411 do Código Penal italiano, o legislador tutelou o crime “destruição, supressão ou subtração de cadáver”:

Art. 411. (destruição, supressão ou subtração de cadáver): Aquele que destrói, suprime ou subtrai um cadáver, ou parte dele, ou subtrai ou desperdiça as cinzas, é punido com reclusão de dois a sete anos.

A pena é aumentada se o fato é cometido em cemitérios ou em outros locais de sepultamento, de depósito ou de custódia.

Não constituí crime a dispersão das cinzas do cadáver autorizada pelo oficial do estado civil, em razão da expressa vontade do defunto.

A dispersão das cinzas não autorizada pelo oficial do estado civil, ou efetuado de maneira diversa àquela indicada pelo defunto, é punida com reclusão de dois meses a um ano e com multa de 2.582 a 12.911 euros.[43]

A conduta incriminada pela norma é alternativa, e implica na destruição, supressão ou subtração do cadáver. Os termos possuem significado e significação correlata aos da língua portuguesa, sendo a “destruição” entendida como a desintegração da essência do objeto (cadáver); “supressão” como o ato desaparecer com o objeto, porém sem destruí-lo; e, finalmente, “subtrair”, que é entendido como o ato de retirar ilegitimamente o objeto do local onde se encontrava, tornando-o, assim, indisponível[44].

A conduta pode recair tanto sobre o cadáver em sua integridade, quanto sobre partes dele. Com relação a tais conceitos, remetemos o leitor às normas já comentadas.

O tipo italiano é quase idêntico brasileiro do art. 211 do Código Penal, com exceção de que, na legislação italiana, a ocultação de cadáver é disciplinada de forma autônoma, no art. 412, que será comentado em seguida.

Contudo, antes, cabe salientar que em nosso ordenamento, em razão da linguística do tipo do art. 211 do CP, é impossível se falar em subtração de partes do cadáver, pois, como bem assevera Janaína Conceição PASCHOAL[45], “as partes dos cadáveres estão fora do comércio, não se podendo conceber o furto de cérebro e dos dentes dos mortos, ainda que seja possível conferir alguma finalidade econômica às partes subtraídas”.

Ainda, é de se notar, que o terceiro enunciado disciplina uma causa de exclusão da tipicidade, que é a autorização da autoridade civil (oficial do estado civil), realizada em acordo com a vontade do de cujus. A existência de uma norma neste sentido denota um rigor excessivo, já que a dispersão das cinzas, para que não se caracterize o crime, tem de ser previamente autorizada pela autoridade competente, que o fará apenas quando houver expressa autorização.

Na verdade, não se protege a saúde pública, ou mesmo qualquer outro bem jurídico neste sentido, mas sim a vontade do pré-morto, que é levada às últimas consequências, fazendo com que a norma penal sirva de garantia do cumprimento de uma obrigação civil.

O quarto enunciado, no mesmo sentido, pune de forma atenuada quem dispersa as cinzas sem autorização regulamentar ou de forma diversa daquela estabelecida pelo pré-morto.

Em que pese a atenuação do tipo derivado em relação ao tipo principal, a própria ideia da incriminação daquilo que deveria ser tratado como um ilícito civil demonstra o apego do legislador italiano aos ditames do pacto lateranense, denotando um raciocínio pouco lógico, que prioriza a incriminação da violação da vontade testamental, a derradeira vontade, em detrimento de uma solução civil mais adequada.

2.3.6. Ocultação de cadáver

Ainda, o Código Penal italiano tutela, individualmente, na norma do art. 412, o crime de ocultação de cadáver:

Art. 412. (Ocultação de cadáver): Aquele que oculta cadáver, ou uma parte dele, ou esconde as cinzas, é punido com reclusão de até três anos.[46]

Diferentemente da subtração e da supressão, a ocultação tem um caráter temporário, intermitente, sendo que a conduta incriminada consiste no ato de ocultar um cadáver ou parte dele, ou esconder as cinzas. A ocultação pressupõe apenas a dissimulação do cadáver, de maneira que este possa ser devolvido rapidamente[47] e com sua integridade preservada.

Ao contrário do que ocorre no Brasil, onde a ocultação e a subtração de cadáver são disciplinadas pela norma do mesmo artigo, na Itália, em razão da existência de dois tipos e a notória maior gravidade do crime de subtração do art. 411, criou-se um conflito de tipicidade quase insolúvel.

A doutrina[48], de forma muito pouco convincente, afirma que, caso o agente tenha a intenção de permanecer temporariamente com o cadáver ou com parte dele, configura-se o crime em comento, agora, se o agente almeja permanecer com o “objeto” por tempo indeterminado, incorrerá no tipo do art. 411 do Código Penal italiano.

2.3.7. Uso ilegítimo de cadáver

Fechando de forma não tão retumbante o prolixo Capítulo II, do Título IV, do Código Penal italiano está a norma que tutela o crime de “uso ilegítimo de cadáver”:

Art. 413. (Uso ilegítimo de cadáver): Aquele que disseca ou de outra forma utiliza um cadáver, ou parte dele, com finalidade científica ou didáticas, em casos não permitidos pela lei, é punido com reclusão de até seis meses ou com multa de até 516 euros.

A pena é aumentada se o fato é cometido sobre um cadáver, ou sobre parte dele, que o culpado sabia ter sido por outro mutilado, ocultado ou subtraído.[49]

A norma é um resquício do fascismo e do pacto lateranense, e demonstra a oposição entre a Igreja Católica e o desenvolvimento científico, no início do séc. XX. A finalidade de tal dispositivo é reprimir os possíveis abusos cometidos na utilização de cadáveres para fins científicos ou didáticos.

Contudo, não vislumbramos nenhum bem jurídico-penal tutelado pela norma. Se a possibilidade do sentimento ser considerado um bem jurídico é bastante controvertida, o quê se dirá de uma tutela de função de administrativa, que pune a falta de autorização legal (de Direito Administrativo) para utilização do cadáver para fins didáticos ou científicos, que são fins certamente legítimos e necessários para o desenvolvimento da sociedade.

A conduta incriminada é a dissecação ou a utilização ilícita de cadáver ou de parte dele:

“Dissecar” significa abrir, talhar, seccionar com finalidade de realizar estudos anatômicos.

“Utilizar de maneira diversa” significa utilizar o cadáver para fins científicos sem alterar a sua integridade.[50]

Os fins científicos são os fins próprios das disciplinas médicas para as quais é consentido o uso de cadáveres, e finalidades didáticas são aquelas próprias da escola de medicina[51].

Em nosso ordenamento, a conduta de estudantes de medicina que utilizam “ilegitimamente” um cadáver ou parte dele é evidentemente atípica, pois, se a conduta não tem a finalidade de vilipendiar o pré-morto, e nem mesmo de destruir a integridade física de seu corpo, não havendo que se falar em crime, diferentemente da legislação italiana, que, neste caso, levou a proteção do sentimento aos mortos até as últimas consequências, criando uma norma absurda.

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Sobre o autor
Matheus Herren Falivene de Sousa

Advogado. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Matheus Herren Falivene. Os crimes contra a liberdade religiosa e contra o respeito aos mortos na Itália e na Alemanha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3458, 19 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23273. Acesso em: 24 nov. 2024.

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